InícioEditorialO fim de uma loja com 68 anos de Comércio

O fim de uma loja com 68 anos de Comércio

No dia 7 de janeiro de 1953, o português Manuel Cardoso Moreira da Silva atracou no Porto de Salvador, após semanas atravessando o oceano, vindo de Vila do Conde, Portugal. Assim que pisou em solo baiano, foi direto para a Loja Império, no Comércio, para seu primeiro dia de trabalho no país desconhecido. De empregado a dono, trabalhou no mesmo lugar durante 69 anos, até a última quinta-feira, quando sua loja não resistiu à crise e deixou de ser uma das lojas mais antigas a resistirem no antigo centro comercial da capital. Aos 83 anos, seu Manuel lamenta não ser mais viável vender roupas e outros artigos masculinos que o fez sobreviver durante tanto tempo em Salvador. 

Se o comércio já não estava bem, piorou com a pandemia. Mesmo assim, Manuel tentou resistir bravamente num lugar que já foi badalado, mas atualmente o que se vê são lojas vazias e com pouco público. Ao decidir fechar, escolheu vender todos os seus produtos pela metade do preço e contou com a ajuda do filho, Alberto, que teve sua mensagem viralizada nas redes ao contar a dor do pai de perder seu estabelecimento e rotina diária. 

“Pessoal, a loja de meu pai faliu. Estamos vendendo tudo pela metade do preço a preço de fábrica. Olhou o preço na vitrine só paga metade daquele valor. Com esse valor vamos tentar fazer um acordo com os tempos dos empregados. Ele chegou de outro país aos 13 anos e trabalhou até hoje aos 83 anos. Segundo o advogado na frente do caso, o meu pai pode perder até 30% da aposentadoria [pelas dívidas]. [Ele] está meio depressivo e se sentindo envergonhado com isso tudo…”, dizia um trecho da mensagem, circulada nos aplicativos de mensagem. Viralizou e, em três dias, Manuel conseguiu vender 95% de toda mercadoria. 

“Foi algo que me surpreendeu. Meu pai é muito conhecido aqui no comércio, todo mundo sabe de sua história e da loja, uma das mais antigas daqui. Mas o que teve de gente que veio na loja por causa da minha mensagem, poxa, muito bom. Conseguimos vender praticamente tudo e vamos honrar os dois funcionários que temos”, disse Alberto Cardoso, biólogo que veio de Manaus para ajudar o pai no processo de fechamento. Ele faz um pós-doutorado onde divide seu tempo entre o Amazonas e a Bahia. Contudo, sua viagem para Salvador só estava programada para o próximo semestre. 

“Para conseguir antecipar  o voo, precisava desembolsar mais de R$ 3 mil reais. Não tinha condição. Contudo, colegas biólogos fizeram uma vaquinha e pagaram esta taxa. Foi o que me salvou”, disse Alberto que, além de organizar o fechamento, também precisou cuidar do pai, nitidamente abalado com o fechamento. 

No primeiro momento, Manuel não queria falar. Enquanto vendia as últimas peças da loja, os olhos se enchiam de lágrimas, mas o consolo vinha dos próprios clientes, que lotaram a loja nos últimos três dias de liquidação. “Não fique assim, Manuel. Você fez história aqui e merece aplausos pela sua luta aqui. Nunca se esqueça das coisas boas por causa de uma situação ruim. Agora você vai descansar e curtir sua família”, disse Marilucia Carvalho, de 75 anos e cliente da loja há mais de 30. Ela sempre comprou roupas para o marido e filhos na loja de Manuel. Ela comprou R$ 300 reais em produtos e só pagou R$ 150. 

Seu Manuel e o filho, Alberto, na despedida da loja (Foto: Ana Albuquerque/CORREIO)

Muito mais que um comerciante, o português era um defensor do Comércio. Todos os lojistas da área lembram com carinho a luta de Manuel pelo funcionamento do Plano Inclinado, que fica ao lado da Loja Império. “Ele colocava cartazes, pedia que o Plano funcionasse. O Plano ficou um tempão fechado na época do prefeito João Henrique. Todo dia ele brigava, já era conhecido nos jornais. Perdemos um defensor aqui”, disse o lojista Cardoso, que lamenta mais um fechamento de uma loja. “Já estava ruim. A cidade está cheia de shoppings, pouca gente vem comprar aqui. Concorremos também com a internet e ainda veio a pandemia para lenhar tudo. Teremos mais lojas fechando”, completou. 

Com um olhar marejado, Manuel ficou relutante em falar. Pediu para não ser fotografado, mas logo foi baixando a guarda. “Tentei sobreviver neste tempo de crise e pandemia. Me falaram para desistir, mas continuei tentando até onde deu. O que estou vendendo aqui… [longa pausa]. O que estou vendendo aqui é para honrar meus dois funcionários. Tudo que vender aqui á para pagá-los. Não quero mais lucro”, disse Manuel, enquanto fechava uma conta de R$ 950, onde o rapaz acabou pagando R$ 475 no pix. “Comprei cueca, meia, bermuda, calça, camisa social, tudo que você imaginar. Não queria comprar nesta situação. Eu até comprava aqui, mas recebi uma mensagem no zap que estava fechando e vendendo tudo com 50% de desconto. Acabei vindo”, disse Valdir Ramos.

Para Manuel, resta a lembrança. “Quando era funcionário, fiquei 20 anos sem férias, pois meu tio, que me trouxe de Portugal, disse que era coisa de vagabundo férias. Acabei me tornando sócio e vi a época de ouro daqui, quando era o centro de Salvador. Hoje acabou, é muito difícil conseguir sobreviver neste abandono. Me entristece demais”, completou seu Manuel, que agora pretende curtir mais a netinha e seus bichos. Não são as férias que ele queria. “Meu pai sempre trabalhou aqui, preservando este comércio. Ele respira esta cidade, era remador em Itapagipe e voltava todos os dias para cuidar da loja, desde os 13 anos. Ele é um guerreiro e sobrevivente deste momento tão difícil para todos”, completa o filho Alberto. 

O restante das mercadorias vão ficar na casa de Manuel, que dará um jeito de vendê-los. “A dona do imóvel pediu a loja imediatamente, só conseguimos vender até quinta. Ela ainda queria que deixássemos a loja como pegamos. Quem lembra como era a loja há 50 anos?”, completa Alberto. Segundo o Ministério da Economia, no Boletim do 2º quadrimestre de 2021 sobre as empresas brasileiras, 484.553 foram fechadas no país. Ainda segundo o boletim, publicado em setembro de 2021, 60.900 empresas em toda Bahia fecharam as portas no período de um ano. 
 

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