Era madrugada quando o filho de Izildinha Almeida começou a ter febre e se queixar de fortes dores na barriga, seguido de vômito. Como o garoto tinha apresentado uma convulsão recentemente, a mãe seguiu direto para emergência, pensando ser uma nova crise convulsiva. Poucas horas depois, o menino estava sendo direcionado para a sala de cirurgia: era apendicite. “Fiquei louca quando vi meu filho na maca indo fazer uma cirurgia com apenas 4 anos de idade. Fiz promessa de dar um caruru todo ano se ocorresse tudo bem, além de um presentão para ele”, lembra Izildinha. Se tem um órgão do corpo que gera medo e o senso comum de que não serve para nada, este é o apêndice. Porém, cientistas estão provando que não é bem assim.
De fato, o apêndice pode ser um perigo iminente quando apresenta um quadro grave de inflamação, que pode ocorrer em qualquer momento de nossas vidas, a qualquer hora, em qualquer lugar. Ao longo dos anos, o pequeno órgão grudado (e pendurado) no intestino era tido como uma estrutura vestigial, uma espécie de sobra da evolução humana que não servia mais para nada. No entanto, a ciência passou a estudar mais o apêndice e conseguiu encontrar suas funções no organismo. Ele é um importante aliado no sistema imunológico e reposições de bactérias benéficas para nossa flora intestinal.
Pense num apêndice como uma pequena bolsa que guarda bactérias benéficas para a saúde. Ele fica na pontinha do intestino, geralmente pendurado. Quando perdemos bactérias benéficas, como um tratamento com grandes doses de antibióticos, contra um câncer ou até uma forte diarreia, por exemplo, o apêndice entra em cena para repovoar a flora intestinal.
“Ela é uma estrutura alongada, como um dedo de luva, de 5 a 10 cm. Existem em outros animais e se imaginava que ficou no ser-humano após um processo evolutivo, mas aparentemente perdeu sua função. Hoje sabe-se que seu tecido linfóide protege nosso intestino”, disse a Gastroenterologista Delvone Freire, professora da UniFTC
Graças a cientistas da Universidade Duke, nos EUA, foi possível descobrir esta função para o apêndice. Nem é novidade, pois este estudo foi divulgado em 2007. Uma pesquisa mais recente, elaborada por Microbiólogos australianos da cidade de Melbourne, foi além: apontou que o apêndice também ajuda no sistema imunológico, servindo como repositor natural de células conhecidas como linfócitos inatos (ICLs). Eles possuem um papel fundamental no combate a microorganismos invasores no sistema digestivo. “Descobrimos que os ILCs podem ajudar o apêndice a potencialmente replantar bactérias ‘boas’ dentro do microbioma – ou comunidade de bactérias – no corpo. Um microbioma equilibrado é essencial para a recuperação de ameaças bacterianas à saúde intestinal, como intoxicação alimentar”, disse a cientista líder da pesquisa, Gabrielle Belz, na publicação do estudo, na revista Nature Immunology.
Então ficar sem o apêndice significa que não poderemos mais repovoar nossa flora intestinal? A resposta é não. O indivíduo vai ficar sem a reposição natural de bactérias benéficas, precisando, em alguns casos, fazer transplante fecal para repovoar a flora intestinal. Vão colocar fezes com bactérias novas no seu intestino, literalmente. Mesmo assim, devido à sua fama de ser supérfluo para o corpo humano, já foi muito comum fazer a retirada do apêndice de forma ‘preventiva’. Militares que trabalhavam em áreas remotas e sem atendimento médico próximo, além de exploradores de lugares remotos, por exemplo, retiravam o apêndice para evitar possíveis inflamações no meio do nada.
Era muito comum a retirada preventiva até o final dos anos 90, mas atualmente os médicos não recomendam a retirada sem necessidade. O médico que fizer o procedimento pode responder criminalmente por mutilação, inclusive. Já existem estudos em que antibióticos podem resolver a obstrução no local, sem a necessidade de cirurgia. Por enquanto, sua retirada só deve ser feita quando inflama, transformando-se em apendicite, com risco de rompimento. Neste caso, a procura ao médico deve ser imediata, pois o apêndice se torna um perigo à vida.
Só para se ter uma ideia, a Bahia registrou, em um ano, 5.100 procedimentos de apendicectomia, com 28 óbitos (de fevereiro de 2021 a fevereiro de 2022), segundo o SUS. Muitas mortes são consequências de um atendimento tardio, pois a inflamação do apêndice pode fazer o aparelho se romper, levando o paciente à morte por infecção generalizada.
O tatuador Matheus Lagos viveu de novo. No final do ano passado, ele começou a sentir dores abdominais que, segundo ele, pareciam gases. Matheus imaginou que a culpa era do salgado que havia comido na rua mais cedo. Entretanto, as dores aumentaram e a namorada, estudante de medicina, desconfiou que poderia ser algo no apêndice. Porém, nenhum exame apontou apendicite na UPA e ele voltou para casa sem resolução. Foi uma semana com dores, idas e vindas ao hospital, até que uma ultrassom finalmente detectou o problema, mais de oito dias depois das primeiras dores.
“Acredito em negligência. O primeiro médico não soube o que eu tinha. Quando finalmente confirmaram apendicite, o apêndice já tinha rompido e já havia sério risco de morte. Precisei fazer cirurgia de emergência, rezei muito, mas deu tudo certo. Mas foi um risco grande que corri, vivi de novo”, lembra Matheus.
Matheus chegou no nível quase letal do apêndice. Quando ele é rompido, até o bolo fecal pode escapar do intestino para o restante do corpo.
Caroço
Lembra que nossos avós diziam que engolir caroço de fruta pode prejudicar o apêndice? É senso comum, mas existe um fundo de verdade como causa da apendicite. Para entender melhor, é preciso saber o que leva ao processo de inflamação no local.
“Existe a válvula de Gerlach entre o intestino e o apêndice [uma espécie de canal]. A apendicite ocorre geralmente na obstrução deste local, que leva justamente a inflamação. Um caroço de tangerina que se solta do bolo fecal pode parar lá e obstruir o lugar, sim. Mas não significa que todo caroço fará isto. Pode ser qualquer alimento que, de alguma forma, está inteiro e acaba parando ali. A pessoa pode passar a vida toda comendo caroço e não acontecer isso. É imprevisível” disse o médico cirurgião, Marcos Reis, que assegura: “é a cirurgia mais comum na área abdominal de cunho emergencial, sem dúvida”. Procuramos a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) para um detalhamento nos atendimentos e um ranking de cirurgias feitas no Estado. “Apendicite não é uma doença de notificação, por isso não temos os dados solicitados”, respondeu o órgão, em nota.
Tem prevenção? Médicos e especialistas sugerem uma dieta a base de fibras para evitar esta obstrução. Porém, não assegura uma vida sem a possibilidade de apendicite. O maior cuidado, na verdade, é com a rapidez na identificação do problema. Este, sim, vai salvar vidas. Uma prova disso é o aumento no número de óbitos por conta do apêndice no primeiro ano da pandemia. Segundo o SUS, em 2020 foram 879 pessoas mortas por conta do apêndice no Brasil, contra 770 no ano anterior. O aumento foi justamente pela dificuldade de atendimento no período onde o foco era o combate a covid-19.
O conhecimento de Manuela Braga ajudou no atendimento rápido da filha Magaly, de cinco anos .O caso foi em novembro do ano passado.
“Achamos, de início, que ela comeu algo e não fez bem. Ela começou a vomitar, demos Buscopan e botamos para dormir. Mas ela vomitou a noite toda e amanheceu com febre. Como sou enfermeira, associei tudo. Perguntei também onde estava a dor na barriguinha. Fiz a manobra de Blumberg e ela gritou de dor. Fomos diretamente para a emergência. Ela entrou 11h na emergência e 19h já estava na mesa de cirurgia. Não rompeu, mas estava grave. A recuperação foi rápida”, conta.
Como não existe uma idade específica para a inflamação, é bom ficar atento com as crianças. A manobra de Blumberg, feita por Manuela na filha, é crucial. Na parte direita da barriga, abaixo do umbigo, aperte o local e solte, como uma massagem. Se a dor se tornar crítica na manobra, a possibilidade é grande de ser apendicite.
O caso da pequena Magaly terminou bem, assim como o filho de Izildinha, no início da matéria. Hoje com 41 anos, seu filhote é justamente o autor desta matéria. Não tem mais caruru todo ano, pois a promessa era até os 15 anos completos. Mas o presente, um disco do Balão Mágico, guardo até hoje, assim como uma cicatriz na barriga de 5 centímetros. “Foi um susto horrível, mas os médicos foram rápidos e isso que salvou sua vida. A recuperação também levou muito tempo. Imagine segurar uma criança de 4 anos repousando em casa durante um mês, sem poder correr? Você não parava quieto”, lembra Izildinha.
O procedimento é menos complexo que há 35 anos. Na época, só existia a possibilidade de cirurgia tradicional, onde é feito um corte de 5 cm no abdômen, o que já era uma evolução. Até os anos 70, os cortes eram maiores, chegando a 10 cm. Atualmente, o mais comum é a laparoscopia, procedimento realizado em Magaly, inclusive. São feitos três pequenos cortes de 1 cm, quase uns furinhos, onde são introduzidos uma câmera e materiais cirúrgicos para a retirada do apêndice. Fica sem cicatriz e a recuperação leva menos de uma semana, diferente do corte tradicional, com um mês de repouso pós-cirúrgico.
Mesmo assim, a depender dos casos, a cirurgia convencional ainda pode ser realizada, principalmente se o apêndice, ao invés de estar solto como um rabinho, estiver grudada na parede do intestino, conhecida como serosa. É raro, mas acontece. Neste caso, vai precisar cair na ‘faca’.
“É um assunto bem interessante. Eu poderia dizer que existem prevenções contra o apendicite, mas não tem nada comprovado cientificamente. Não tem idade específica, apesar de acontecer em adultos jovens com mais frequência. Mesmo assim, não é para achar que qualquer dor de facão é o apêndice inflamado. Você vai sentir dores constantes no abdômen, abaixo do umbigo, ao lado direito. Também vem febre baixa, náuseas e vômito. Neste caso, faça a manobra de Blumberg e procure o médico. Lá, faremos exames preliminares, como de urina, pois pode ser até uma infecção urinária. As cólicas femininas também podem camuflar. É um assunto bem complexo, viu, mas necessário”, completa o médico Marcos Reis.
Apendicite
Prevenção
Não existe nenhuma comprovação científica, mas médicos recomendam uma alimentação rica em fibras. Contudo, não é certeza de que não vá ocorrer o apêndice. Até um caroço da salada pode obstruir o local.
Sintomas
Febre baixa, vômitos e dores no lado direito da barriga, abaixo do umbigo. Caso tenha estes sintomas, faça a manobra de Blumberg. Na parte direita da barriga, abaixo do umbigo, aperte o local e solte, como uma massagem. Se a dor se tornar crítica na manobra, a possibilidade é grande de ser apendicite.