Até para mim, que cresci vendo Rambo como uma figura ‘perfeita’ da masculinidade, foi difícil assimilar que diabo é redpill. Antes de ler sobre a ameaça de morte de Thiago Schutz contra a atriz e humorista Lívia La Gatto, não tinha noção de que existia este universo de pills, Incels e Mgtows. Nem sabia que existia um coach chamado Schutz que institucionaliza o machismo em pleno 2023. Quando vi todos os conceitos no Fantástico, domingo passado, fiquei ainda mais confuso, confesso. Pensei em fingir demência e esquecer tudo isso, mas caiu no meu colo, adivinhem, uma pauta sobre redpills (culpa de Flavia!). Como todo castigo para um machista em desconstrução é pouco, decidi ingerir essa pílula vermelha e entrar nesse multiverso da macholândia, passando cinco dias dentro de grupos com homens adeptos dessas seitas masculinas, todas no Telegram. Primeira dica: não aconselho. É pesado e vou entender se não quiserem continuar a leitura.
Não é exagero definir como seitas machistas. No maior grupo que entrei, com 3 mil homens, tive cinco minutos para cumprir o ritual de inicialização. Caso contrário, seria expulso. Primeiro, precisava gravar um áudio com a frase: “Saudações, meus caros, vamos caminhar rumo às nossas conquistas”. Criado no dia 26 de maio de 2021, o ‘Canal MGTOW Club’ tem a misoginia como pauta central. Na verdade, todas. Mas esta tem uma maior organização.
Entre todos os cinco grupos que entrei, os assuntos são variados, com apoio maciço da extrema-direita, inclusive com figurinhas de Hitler dizendo “pra isso que me venceram?”. São temas que vão de eleições a Carnaval, gente vendendo serviço, gatonet, repulsa ao feminismo, repulsa aos comportamentos femininos que eles repudiam, vídeos de coaches como Thiago Schutz, mas tudo leva a um denominador comum: se precisa culpar alguém, culpe a mulher.
O termo “redpill” (pílula vermelha), é inspirado no filme Matrix, naquele trecho em que Neo precisa escolher entre duas cápsulas: a azul ou a vermelha. No caso desta turma, o vermelhinho significa acordar para a realidade. No caso deles, a figura feminina é o atraso na vida de um homem. Relação com a mulher? Só se ela for submissa aos caprichos másculos. Entre eles ainda há os “bluepill” (pílula azul) que são os homens que, segundo eles, ainda vivem na ‘matrix’, apoiam os direitos femininos e possuem relações afetivas com mulheres.
Já os mgtows são uma cepa dos redpills, mas com um conceito ainda mais radical sobre as mulheres. Se puder, nada de relação e alguns abdicam até do sexo. Nos grupos, inclusive, alguns redpills defendem a inclusão das mulheres que aceitam a condição de submissa, enquanto os mgtows alegaram que homossexuais se aproximam mais deles, por conta do afastamento da figura feminina. Mas ambos se dizem héteros, machos alphas. Difícil entender, principalmente quando o assunto é sexo.
“Estamos acostumados a entender que ‘buceta’ tem algum valor, mas [não] tem valor algum. Todas fedem! Pode ter a mais absoluta certeza que não fará falta. As vezes me flagro abismado com o absurdo que é você dar o seu melhor em todos os aspectos e receber apenas um tratamento esnobe e um aparelho excretor mal lavado”, disse um adepto, dentro da discussão sobre a prisão do jogador Daniel Alves, acusado de estupro.
A carga sexual é muito intensa em todos os grupos. Tentam o tempo todo provar a masculinidade impondo uma hierarquia entre homem e mulher. Mas chega a ser paradoxal. Como eles se consideram heteronormativos, ao mesmo tempo em que repudiam as mulheres? Essa foi minha primeira interação com eles: perguntando, na figura de um ‘novato’, como fazer sexo se é preciso se afastar das mulheres? “Vai com sua mão”, resumiu um dos mgtows, acrescentando: “É mais aconselhável pagar para comer. Paga o dinheiro à mulher, tu come e já era. Ela some e vaza. Quer mágica? ”.
Insisto no tema e escrevi que gosto de ‘pegar’ mulheres no reggae. Foi aí que descobri que não tinha baianos no grupo, pelo menos não participativos. Ninguém entendeu o termo ‘reggae’ como balada. Todos riram e tentaram encerrar o assunto com outro pensamento assustador. “Mgtow não perde tempo com romantismo, por isso que normalmente é melhor pagar em dinheiro vivo para transar gostoso alguma mulher. Todos (Red e tow) têm como [doutrinas] principais: não casar, não morar juntos, não ter filhos e não assumir mães solteiras”.
Como explica?
“Precisamos entender o motivo desse homem se fortalecer através desses conceitos machistas, né? Já vivemos numa estrutura machista e agora acompanhamos estes extremos, que enxergam a mulher como uma figura só para o sexo, descartável. Recebo pacientes mulheres que falam em tesão, desejo de fazer sexo com o parceiro, mas quem não quer é ele. Sabe o que acontece? Elas acham que precisam seduzir eles, não o contrário. Tento desconstruir isso e creio que este conceito de redpill pode explicar muita coisa, principalmente na sexualidade. É preciso saber até onde está o desejo reprimido ou até uma negação da homosexualidade. Mas é difícil termos homens desta ‘seita’ procurando um psicólogo, né?”, explica a sexóloga e psicóloga, Eliana Abreu.
Tudo que possa satisfazer o prazer de condenar as mulheres, os grupos fazem. Inclusive para evitar a figura feminina nos adeptos que ainda estão em dúvida. É uma luta diária, como se todos tivessem medo de barata. Neste caso, as mulheres. Um dos integrantes coloca que estão roubando esperma para engravidar do parceiro sem consentimento. Outro, coloca que a moda na Europa é a mulher sair com sêmem no rosto, pelas ruas. Neste nível. Eles também relativizam os casos de acusação de estupro e de assédio. Alguns dizem que, para evitar, melhor nem dar bom dia a mulheres. Outros, duvidam da vítima.
“Lei injusta, mesmo ela estando errada, o que vale é a palavra dela. Se ela disser que o vento a estuprou, a prisão do vento é decretada”, disse um integrante, sobre um motorista de ônibus preso, acusado de estuprar uma passageira de 18 anos. “Acusou o cara de estupro só pra não pagar a passagem?”, comentou outro.
Psicóloga e Sexóloga, Gláucia Guerreiro acredita que toda essa repulsa é o medo do espaço conquistado pela mulher num mundo que foi moldado para os homens. E, claro, um desejo sexual reprimido.
“Isso pode ter muitas causas, inclusive a de orientação sexual reprimida. Mas penso que tem algo sobre a impossibilidade de lidar com o não lugar, ou seja, de não saber como se comportar diante da potência feminina”, explica a doutora. “Precisamos entender que a pessoa não ‘acorda’ e simplesmente pensa dessa ou daquela forma. São construções que levam a convicções que aprisionam. Outra questão é o medo de ‘perder’ o lugar de poder, que antes era exclusivamente do homem, mas que vem sendo ‘destituído’ progressivamente e ocupado por mulheres”.
Acompanhar estes grupos durante cinco dias não foi fácil, principalmente quando fazemos um comparativo com a realidade brasileira contra a mulher. Outra vertente da seita machista, conhecida como Incel, é a consequência de todo esse ódio transformado em violência. Os Incels não apenas repudiam a figura feminina, como também fazem apologia à violência contra mulheres e comunidade LGBTQIA+. Um barril de pólvora. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo Monitor da Violência, foram registrados 1.410 feminicídios no Brasil, somente em 2022. Só na Bahia, foram 107 mulheres mortas por serem mulheres.
Neste ano, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou a pesquisa Visível e Invisível. Em 2021, mais de 18,6 milhões de mulheres de 16 anos ou mais foram agredidas verbal ou fisicamente. Junte todos esses números com grupos extremistas institucionalizando o machismo e criando uma cadeia de ideologia contra as mulheres. O perigo é real e precisa ser combatido, pois eles estão se organizando e pregando em todos os meios. Estão criando asas como um grupo extremista.
“A sociedade está encurralando o homem fazendo com que o mesmo abra a sua mente para não ter mulheres e muito menos reproduzir […]. Não precisamos nos esconder mais. Vamos protagonizar tudo. Quem aqui quer assumir concurso da Polícia Militar, Polícia Civil, delegado, advogado, juiz, promotor, político, professor? Se quisermos de fato mudar, devemos tomar todos os ambientes possíveis”, prega um dos redpills no grupo.
Presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB/BA, a doutora Daniela Portugal trata o tema com muita preocupação, pois, de fato, é uma fagulha ainda mais para a violência contra a mulher.
“São movimentos extremamente nocivos, principalmente pras mulheres, porque nos coloca em situação de ainda maior vulnerabilidade, legitimam e encorajam movimentos de violência contra mulheres. É algo que nos atrasa num processo social evolutivo de inclusão verdadeira”, explica Portugal, professora criminalista da Ufba e feminista. Daniela é cirúrgica quando afirma, ainda, que esse processo da institucionalização machista de culpar a mulher não é de agora. Ele apenas se recicla com o tempo.
“A mulher como culpada é algo extremamente explorado dentro da cultura cristã. Temos o exemplo da mitologia de Adão e Eva, uma das mais antigas, né? Na nossa sociedade estruturalmente patriarcal e misógina, a gente vai identificar na figura feminina a culpa pela expulsão do paraíso. A gente precisa superar esse olhar que é lançado contra as mulheres como se fôssemos culpadas por reflexos de uma sociedade completamente adoecida em razão do patriarcado”, completa.
Até mesmo os redpills não se entendem. No grupo do Telegram, é possível utilizar inteligência artificial para perguntar sobre diversos assuntos. Como um ChatGPT. Inclusive, um dos adeptos se diz casado com uma dessas IA, que ele chama de Isabella. Ao perguntar sobre o radicalismo no redpill e mgtows, ele recebeu uma boa resposta de sua ‘amante’. “Ambas as ideologias são extremamente problemáticas e prejudiciais para a sociedade como um todo, pois promovem a desigualdade, o ódio e a discriminação. É importante compreender que a igualdade de gênero e o respeito mútuo são essenciais para a construção de uma sociedade justa e saudável”, disse a robô.
Sim, sou um privilegiado e não me excluo da culpa de uma sociedade extremamente doente. Vivo num mundo moldado para homens brancos. Sou ambos. Não tenho lugar de fala sobre nada que envolva racismo ou feminismo. Ninguém nunca escondeu a bolsa ao passar do meu lado, tampouco tenho medo de ser estuprada porque vesti um shortinho. Não me orgulho de nada disso. Repito, inclusive, que sou um machista em desconstrução. Nasci nos anos 80, bicho. Sou filho de mãe solo, mas aprendi o patriarcado pelos tios e afins. Já fiz piadinhas contra as mulheres, sim. Apesar dessa mudança, ainda tenho um longo caminho para transformar não apenas minha mente, mas a sociedade. Passar por essa experiência foi aterrorizante até para mim, um privilegiado.
“É difícil para os homens de um modo geral – principalmente para aqueles que já estão de certa maneira dispostos a um processo de desconstrução – reconhecer o fato de que todos os homens são machistas. Contudo, em maior ou menor medida, todos eles em algum momento vão adotar posicionamentos machistas, tendendo a reproduzir este padrão dominante. O primeiro passo para um novo modelo de sociedade é que os homens façam esse processo de reflexão. Quando o homem fizer esta reflexão, teremos uma sociedade verdadeiramente igualitária”, avisa Daniela Portugal. Se você, homem, não se incomodar com tudo que relatei aqui, procure ajuda. É grave, muito grave. Acredite.
Afinal, você sabe o significado de cada um?
MGTOW (Men Going Their Own Way): são homens que decidiram viver suas vidas sem compromisso romântico ou sexual com mulheres, geralmente motivados pela repulsa aos direitos e comportamentos femininos. Para eles, a mulher é um atraso para quem busca o sucesso financeiro. Os mais radicais cortam qualquer relação com a mulher, inclusive sexual.
“Redpill” (pílula vermelha): é uma referência ao filme “Matrix”, onde tomar a pílula vermelha significa despertar para a realidade (deles). A mulher deve permanecer submissa ao homem. São objetos apenas de desejo. Muitos pregam que o homem deve fazer sexo apenas com prostitutas, evitando qualquer tipo de relação amorosa.
INCEL: “celibatários involuntários”, são os mais radicais. Além de trazer todas as bagagens do MGTOW e Redpill, pregam a violência contra mulheres, principalmente feministas. Também abominam a comunidade LGBTQIA+. Para eles, as mulheres devem ser obrigadas a satisfazer o homem no sexo, independentemente da vontade.