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Saura, minha mãe e os lobos

Abriu uma loja de CD no Aeroclube, com muita coisa de música instrumental e clássica. Não lembro em que ano foi isso.

Sim, eu me piquei pro outro lado da cidade, para o Aeroclube Plaza Show, só para pesquisar algum CD especial que eu não tinha ou sequer conhecia.

Antes da internet, e das compras na internet, e de baixar música e filme com internet, não sabíamos quais os grandes lançamentos, novidades, que poderiam estar rolando mundo afora. Fosse no cinema, na música. Teatro, então… só saindo daqui pra ver.

O que me consolava eram as premiações, tantas equivocadas, mas, ao menos, referência, que víamos os resultados nos jornais; algumas revistas com sessão de arte e cultura; e as lojas de CD e as locadoras. Passei minha adolescência toda peruando a Loc Vídeo do Shopping Barra, e tentando varrer a sessão que não sei se era chamada de “filmes de arte”, ou “cult”. Ambos nomes ruins, mas talvez nem exista uma boa denominação pra essas coisas. Era quase funcionário mascote de lá.

Mas, antes mesmo de buscar varrer a filmografia (fracassadamente) de Carlos Saura, foi minha mãe quem levou Carmen (1983) para a gente assistir. Depois, Mamãe Faz 100 Anos (1979). Deitava no chão, ao lado da cama dela, pra ver os filmes. Eu ficava ligado no pé dela. Quando começava a mexer, e se enroscar um no outro, era ela chorando com a triste ou alegre beleza de um filme. Assim, conheci Saura, Fellini, Bergman… Depois, corri atrás de Cría Cuervos (1975), Ana e Os Lobos (1972), e segui correndo atrás de muito mais… mas os tempos foram mudando.

Chegou a internet. E com ela, o fim de muita coisa física. Locadoras, lojas de CD foram ficando obsoletas. Jornais e revistas impressos, também. As notícias correndo na ponta dos dedos, sem tempo para assentar coisas boas, guardar coisas úteis. E, curiosamente, como muitos filmes não chegavam aqui via cinema, eu acabei por desacompanhar a carreira de muita gente que admirava.

Pois, entrei na loja lá do Aeroclube e fui fuçar as estantes que me interessavam. De repente, deparei-me com um disco. Tango. Pela Deutsche Grammophon. Um filme de Saura com trilha de Lalo Schifrin. Só precisei ouvir 30 segundos da primeira canção e comprei o disco.

Já sabia o impacto que causaria em minha mãe. Cheguei em casa, chamei ela e botei no som. Como esperado, ela mexeu os pés, fez alguma interjeição e chorou, emocionada.

Sempre digo que é quando eu realmente sinto falta de minha mãe; quando se tratam de contemplações artísticas. Eu amava a sensibilidade, já sabia com o que ela se emocionaria, e, às vezes, escrevia já pensando nisso. Era tiro e queda; ela lia algo meu e vinha de lá chorando e perguntando porque eu escrevia coisas tão tristes, ou tão fortes…

Tango. Conheci a trilha antes do filme. Até finalmente assisti-lo, não sei se de um DVD comprado, emprestado, filme baixado, nem lembro mais.

O filme é uma aula de metalinguagem. Uma aula de fotografia. Saura costura uma trama  aparentemente simples com a complexidade da construção de imagens, de um processo criativo, e só o começo já vale a obra toda. O artista dizendo que vai começar o filme com ele escrevendo com o sol se pondo em Buenos Aires, e o mestre Vittorio Storaro nos mostra um belo enquadramento do artista escrevendo com o sol se pondo em Buenos Aires, e a trilha exagerando de beleza toda a cena.

Saura é o grande cineasta espanhol, depois de Buñuel. De alguma forma, retomou a tradição de seu país que o cineasta surrealista havia explodido em vanguarda. Conectou-se com Lorca, com o flamenco, com os ciganos, e depois de muito denunciar a opressão e o fascismo, resolveu se render à música, à dança e ao esplendor da forma, em filmes como o próprio Tango (1998), Flamenco (1995) e Iberia (2005).

Detentor de alguns dos maiores prêmios do cinema, viveu 91 anos entre a gente, produzindo beleza, provocando aspereza, mas agora não haverá mais Saura.

Como não há mais locadoras para buscar seus filmes, lojas para comprar suas trilhas; está tudo aqui na mão, e mesmo assim tudo tão disperso.

O mundo está sem minha mãe, sem Saura, e me sinto ainda mais em dívida com os dois, para provocar emoção, beleza e aspereza. 

Também por isso, sigo fazendo arte.

Os lobos seguem uivando, rosnando, atacando, até. Mas a grande caravana da arte seguirá passando, como os filmes de Saura e a lembrança da emoção de minha mãe.

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