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Festa, revolta e amor à Bahia: a volta do desfile da Independência às ruas

Os dois carros que levam a cabocla e o caboclo acabam de passar pelo Barbalho, e Marise Oliveira, 63, chorou de novo. São 20 anos derramada pela mesma cena – a celebração à Independência da Bahia, no 2 de julho de 1823. “Quando você tem amor pelas coisas é assim”, diz. Quase em frente a ela, um cartaz em outro sobrado dizia: “Independência é uma ova, voltamos à escravidão”.

Depois de dois anos sem a festa popular, anos de perdas e mudanças provocadas pela pandemia da covid-19, baianos voltaram às ruas no dia em que a independência completou 199 anos. Cada um, como costuma ser, experienciou um retorno: uns se emocionaram, como Marise, alguns perguntaram “Que independência é essa?”, outros acompanharam os políticos e os mais festeiros seguiram as fanfarras.

“É um dia especial, mas falta muita coisa para sermos independentes, principalmente o respeito”, disse Fabrício Gomes, 38, que iniciava o filho de dois anos, Maurício, na tradição naquela manhã de sábado. 

Sob chuva no início do trajeto, a cabocla e caboclo foram guiados da Lapinha à Praça Thomé de Souza por 100 funcionários da Prefeitura de Salvador, organizados no Batalhão Quebra-Ferro.

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Parte da família Alves – Iracema, Douglas e Damião – fez o percurso ao lado das cordas. Cosme, pai de Iracema e irmão de Damião, empurrava a cabocla desde os anos 70. Em março, faleceu.

“Hoje seria o aniversário dele. Tive a ideia de a gente vir para cá festejar onde ele sempre festejava”, contou a filha. 

Em 730 dias sem o cortejo do 2 de julho, outros dois integrantes – Lourival e Geraldo –  que participavam do Batalhão por três décadas faleceram. Os antigos colegas rememoraram a dupla. Pelas ruas, havia novatos e os veteranos. “Eu nasci nesse clima de desfile, desde cedo estou aqui”, disse Lélia Marques, 92, guiada em uma cadeira de rodas pela neta, Samantha, 37.

Na sacada de uma casa, Marina Borba, seis meses, apareceu com vestes indígenas. Os caboclos são símbolos da guerra pela independência  e não só vão em cima dos carros, na frente do cortejo, como são reverenciados em fantasias. Há 45 anos, Romilda Anunciação, 52, veste-se de Maria Quitéria, outra heroína da independência.

“Para mim essa data representa também a minha liberdade. Eu, como Maria Quitéria, fugi de casa, lutei, criei minhas filhas sozinha”.

Como Marise, Romilda é do grupo dos emocionados. “É por amor. Amor à liberdade, a Maria Quitéria. É uma data muito linda”.

Pela tradição, o esforço

Descalço, Marcelo Rocha, 32, chegou à Lapinha 6h30. Acompanhado de outros 19 homens, faz parte dos Guaranis, grupo criado em 1939, em Itaparica. Com arco e flecha, cabaças e o atabaque, eles simbolizam o caboclo. “Um orgulho. Venho de baixo de chuva, de sol”, contou ele, que tomou o ferry-boat vir a Salvador. Outros 15 integrantes foram para São Félix, no Recôncavo Baiano, outro território que lutou pela emancipação local.

Os guaranis acompanham de perto o trajeto percorrido pelo caboclo e a cabocla, que neste ano foram vestidos, respectivamente, das cores do Brasil e da Bahia. Atrás vinham os políticos e grupos sindicais e partidários. Na descida da Lapinha para o Barbalho, duas mulheres se estranharam.

Uma trazia um adesivo de Lula (PT), candidato à presidência que compareceu no cortejo, pregado na blusa. A outra era eleitora do presidente Bolsonaro (PL), que reuniu eleitores em uma motociata que seguiu do Farol da Barra para a Boca do Rio. “Gasolina tá 7,30”, disse a primeira e saiu andando. Os presidenciáveis Ciro Gomes (PDT),  Simone Tebet (MDB) e Sofia Manzano (PCB) também apareceram.

O clima foi de paz. Os moradores dos bairros pelos quais o desfile passa colocavam o papo em dia, entre a passagem do caboclo e da cabocla e a vinda dos políticos. Já os comerciantes aproveitavam para lucrar. Às 9h17, a tenda da “Feijoada do Chuco” estava lotada. Emanoel Farias, 42, o “Chuco” em questão, pretendia vender 70 pratos da refeição. O valor, para duas pessoas, era R$ 45. 

Os pleitos: ‘A carne mais barata do mercado é a negra’

Cada um fez próprio trajeto do desfile. A Ladeira do Boqueirão, por exemplo, é tida como um ponto estratégico para quem vai em protesto. “Aqui estamos de frente para o cortejo”, explicou Suely Santos, 58, funcionária pública que integra a rede Mulheres Negras da Bahia. No cartaz que levou, a frase: “A carne mais barata do mercado é a negra”.

Para ela, o 2 de julho teve ainda mais significado neste ano: “É a retomada da democracia que é uma criança ainda. Estamos em um retrocesso violento. Desde criança, trazida pela família, e depois com as próprias pernas, entendi o 2 de julho como espaço de luta e insurgência”. 

“Sei que não adianta em nada, mas eu ia fazer aqui um cartaz para colocar”, Marcelina Brito, 81. Depois de perder o acesso a uma das aposentadorias, vive com um salário-mínimo (R$ 1,2 mil). “Vim porque gosto de me divertir e venho sempre pela tradição. Mas vim com raiva”. A vizinha Edna da Encarnação, 80, que a acompanhava, “estava feliz, porque sempre vinha e por rever amigos”.

Depois dos 10 minutos de atraso para a saída, o caboclo e a cabocla chegaram 30 minutos antes do programado, 10h30, ao caramanchão montado na Praça Thomé de Souza, de onde seguiram para a Praça do Campo Grande. Em frente à Câmara Municipal, pessoas fizeram fila para tocar nos caboclos e, algumas delas, para rezar para eles. 

Quietinha, com flores na mão, Alice dos Santos, 72, se aproximou do caramanchão. “Peço a eles que venham benções e saúde, não estou muito bem”, disse. Logo em seguida, os Guaranis cantaram seu hino: “Por ele eu lutarei pela defesa do Brasil”.

Em 2023, estarão de volta para celebrar os 200 anos da Independência da Bahia. 

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