A vocação globalizadora da Bahia é evidente até na aparência. Basta uma olhada mais atenta ao atlas que até uma criança percebe: o estado é nariz de um focinho de outro com o Brasil e a própria América do Sul. O formato ‘Cornetto’, gordinho em cima e com um rabinho em baixo, acompanha o continente desde que ele se separou da Pangeia, mas nem sempre foi compartilhado com o país e, principalmente, a terra de todos os santos.
Em 1530, primeira vez em que a Bahia apareceu no mapa, a antiga capitania hereditária era resumida a um par de linhas que iam em direção ao interior. As fonteiras eram marcadas com foz de rios: a São Francisco ao norte e Jequiriçá ao sul.
O território entre os limites somava pouco mais de 400 km, bem menos dos mil quilômetros que separam o ponto mais ao norte da Bahia até a fronteira com o Espírito Santo.
Para dobrar de tamanho e sair das linhas da antiga capitania para as curvas que hoje formam o estado, a Bahia conquistou territórios, e perdeu alguns outros, se envolveu em disputas com Espírito Santo e Pernambuco e até deu um calote em Minas Gerais. Tudo isso contando com uma boa dose de alinhamento político – ou puxa saquismo, se preferir – com a coroa portuguesa para se beneficiar na maioria das disputas.
“Temos que estudar a formação territorial da Bahia tendo em conta que as divisas e fronteiras eram instáveis e reversíveis, que um espaço poderia ser conquistado pelos luso-brasílicos e depois perdido para as populações indígenas, que constantemente faziam incursões para retomada de territórios e lutavam pela manutenção de seus territórios nativos. A questão das divisas é um tema bastante atual e a formação histórica das fronteiras deve ser vista não como uma decisão da administração colonial, mas sim como um jogo instável de negociações feitas e refeitas minuciosamente em situações cotidianas e contingenciais”, detalha Hélida Conceição, historiadora e professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
Bandeirantes originais
A Bahia é viciada em pioneirismos. Enquanto os paulistas se gabam pelos bandeirantes, os baianos já se aventuravam pelos sertões mais de um século antes. Até o termo “bandeiras” foi criado por aqui, mas apropriado pela historiografia sudestina. Por isso, essas incursões que partiam de Salvador nos séculos XVI e XVII são, atualmente, conhecidas como “entradas sertanistas”.
Esse movimento foi fundamental para o conhecimento do interior do país e, consequentemente, expansão do território baiano para oeste. Essas entradas eram financiadas por capitais particulares, mas também poderiam ser parcialmente patrocinadas pela coroa portuguesa.
A primeira entrada que se tem notícia foi realizada por um português chamado Gabriel Soares de Souza. Ele saiu de Salvador e percorreu, durante 8 anos, os caminhos do sertão, com a ajuda de populações indígenas que já possuíam algum conhecimento sobre o interior da capitania da Bahia. Outros nomes importantes desse movimento foram Antônio Dias Adorno, neto de Caramuru, Belchior Dias Moréia e Vasco Rodrigues de Caldas.
Essas expedições baianas chegaram até os territórios onde hoje ficam Goiás, Minas Gerais e Piauí. Sempre margeando rios como São Francisco, Paraguaçu, Verde, das Contas, Jequitinhonha, Grande, Mucuri, entre outros.
“A formação atual da Bahia não foi exatamente o resultado direto e a-histórico das entradas sertanistas, mas o resultado histórico de longa duração da dinâmica de formação de divisas. A conquista do sertão foi um passo fundamental para a expansão do povoamento no interior. Muitos indivíduos que eram proprietários no Recôncavo solicitaram terras sob o regime de sesmarias nos sertões da capitania, e esses sertões estendiam-se muitas vezes até o Piauí e Maranhão. Havia diversas alegações para solicitar essas terras: as mais frequentes eram alegar que não possuíam terras para criar seus gados, pois o Recôncavo não era exatamente a melhor área para a criação bovina”, esclarece Hélida.
Primeiros mapas do interior do Brasil foram feitos por sertanistas (Foto: Reprodução / Biblioteca Luso Brasileira) |
Anexação de Porto Seguro e Ilhéus
Em meados do século XVIII, o diplomata português Marquês de Pombal queria aumentar o poder do Rei de Portugal e, consequentemente, diminuir da influência dos donatários na colônia. Para isso, extinguiu definitivamente o sistema de capitanias hereditárias e concentrou o poder em torno de Rio de Janeiro e Salvador.
Neste processo, a Bahia ganhou “de presente” duas capitanias: Porto Seguro e Ilhéus, que eram autônomas até por volta de 1750.
“Os capitães donatários cobravam impostos, criavam vilas, nomeavam autoridades. Tudo isso fazia com que essas regiões fossem mais ligadas a esses senhores do que ao Império Português. E isso era algo que desagradava a coroa, ainda mais por se tratar do período do descobrimento de pedras preciosas em Minas Gerais. O rei queria o dinheiro para ele, não para terceiros”, conta o historiador Francisco Cancela, professor da Uneb e especialista na História de Porto Seguro.
A escolha da Bahia para anexar essas duas capitanias se deu pela proximidade geográfica e também pela importância de Salvador, que era a capital e maior cidade da colônia naquele momento.
“Ilhéus e Porto seguro foram capitanias empobrecidas (em relação a Bahia, Pernambuco e São Vicente), que tiveram uma proeminência política a ponto de poder sustentar-se de forma autônoma. Além disso, a presença das populações indígenas de forma ostensiva impediu que a conquista territorial se efetivasse, tal como ocorreu em relação ao norte da Bahia no sentido do Rio de São Francisco”, explica a professora Hélida.
Além disso, também marcou o fim da rivalidade de disputa territorial entre Ilhéus e Porto Seguro. As regiões eram grandes produtoras de pau-brasil e qualquer território a mais significava mais madeira para explorar.
“Os limites eram bem fluídos, com muitos conflitos para delimitar o marco da divisão entre as duas capitanias. Teoricamente, elas estavam divididas pelo rio Jequitinhonha, mas, no século XVII, o donatário de Ilhéus pagou um cosmógrafo para que ele fizesse um mapa colocando o limite no rio Santo Antônio, fazendo-o ganhar um território a mais de madeira para cortar”, explica Francisco.
Além da madeira, as duas capitanias eram grandes produtoras de alimentos para abastecer Salvador e Rio, principalmente a mandioca. Tanto que isso provocou um episódio curioso da história brasileira chamado de “Conchavo das Farinhas”.
“No século XVII, os produtores de farinha de mandioca entraram em uma disputa contra os governantes de Salvador. Eles eram obrigados a vender seus produtos apenas para a capital que pagava um preço tabelado, o que motivou sua revolta. O preço da farinha em Pernambuco, por exemplo, estava bem maior e eles queriam vender para lá, mas não era possível. Neste contexto os agricultores iniciaram uma espécie de “greve” que deixou Salvador sem farinha por um período”, conta o historiador.
Nortes de Minas e do Espírito Santo deveriam ser nossos
A anexação de Porto Seguro, no entanto, também foi envolta em disputas, pois ela não foi inteiramente integrada à Bahia. O principal motivo foi a falta de clareza do real tamanho das capitanias naquele período.
Explica-se: as fronteiras litorâneas eram bem definidas pela foz dos rios, mas a oeste não se sabia onde cada uma terminava. Inicialmente, o marco era o Tratado de Tordesilhas, que ninguém fazia ideia de onde passava exatamente. Depois, com o Tratado de Madrid, em 1750, ficou ainda mais confuso, pois tudo era Brasil e não havia, geralmente, delimitadores naturais.
O norte de Minas Gerais, na região de Montes Claros, é um desses lugares que ficaram no limbo. Em tese, por Tordesilhas, ela deveria pertencer a Porto Seguro e, consequentemente, anexada à Bahia. Só que ali era uma “terra de ninguém”, praticamente sem ocupação colonial.
“E o governo desejava que fosse assim, para se criar uma área chamada de ‘Zona Tampão’. Quando começou a mineração, a coroa impediu o acesso via litoral sul da Bahia para a região das Minas Gerais, em uma tentativa de coibir o contrabando. Essa região se tornou inabitada pela população portuguesa, mas com vários grupos indígenas”, detalha Francisco Cancela.
Essa indefinição permaneceu até 1808, quando Dom João VI declarou “guerra justa” aos grupos originários que viviam por lá. O rei definiu que qualquer português ou brasileiro que atacasse essas tribos poderia matar ou escravizar os indígenas, e ainda ganhar lotes de terra. E a maioria dos que toparam a missão genocida era formada por mineiros. Logo, a região tornou-se parte de Minas Gerais.
Outra disputa territorial com os mineiros aconteceu em 1910. Naquele ano, Minas negociou com a Bahia a compra de uma pequena faixa litorânea, com 142 km de extensão e 12 km de largura. Eles realizaram o depósito, mas os baianos jamais entregaram o território, deixando os mineiros a ver navios – só que de longe, pois seguiram sem mar.
Mapa do século XVI mostra como capitanias não tinham limites bem definidos a oeste (Foto: Reprodução) |
Já no embate com os capixabas, a Bahia inicialmente angariou o território que lhe pertencia: a região onde fica a cidade de São Mateus. No entanto, graças às disputas envolvendo a Independência da Bahia, acabou perdendo o local para o Espírito Santo.
Após Dom Pedro I declarar independência em 7 de setembro de 1822, as tropas portuguesas se refugiaram na Bahia, fazendo a província seguir sob domínio lusitano. A cidade de São Mateus, por outro lado, ficou do lado dos brasileiros e, para seguir independente, foi incorporada ao Espírito Santo.
“São Mateus era um dos principais portos da cabotagem (navegação que ocorria próxima à costa brasileira) justamente por ficar no meio do caminho entre as duas principais cidades do país na época, Salvador e Rio. Quando ocorre a independência, a Câmara de São Mateus adere ao movimento de imediato, com um ofício dizendo estar deixando a capitania da Bahia”, explica a historiadora Enaile Flauzina Carvalho.
Após o 2 de Julho, a Bahia até tenta reaver o território, mas os moradores da região preferem se manter no Espírito Santo – e assim segue até hoje.
Independência de Sergipe
Ao ler mais acima que o limite ao norte da Bahia na época das capitanias era o Rio São Francisco, o leitor mais atento pode se questionar: “mas a foz não é a separação entre Sergipe e Alagoas?” De fato é assim, mas essa divisa é algo recente. Durante a maioria da história, Sergipe foi parte da Bahia, mas conseguiu sua independência em 1820.
Se hoje ir de Salvador até Aracaju leva apenas quatro horas, entre os séculos XVI e XVIII o translado entre a capital e a comarca de Sergipe Del Rey, como era chamada na época, era muito mais complexo. Por isso, essa região ao norte da capitania se desenvolveu praticamente de forma autônoma.
A comarca gozava de certa autonomia, com um ouvidor instalado na cidade de São Cristóvão responsável por resolver os problemas da região e entrar em contato diretamente com o rei português. “Durante um grande período, Sergipe não tinha um vínculo muito forte com o resto da Bahia. Ele respondia diretamente à coroa, sem precisar da mediação em Salvador”, conta a professora de história Edna Matos, da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Apesar disso, a maioria da elite de Sergipe tinha ligações familiares com Salvador, tornando-os favoráveis à manutenção da região como uma mera comarca baiana. Essa questão dividia os sergipanos entre os que defendiam a independência e os pró-Bahia.
A tensão chegou ao ápice em 1817, durante os eventos relacionados à Revolução Pernambucana. Tropas de Sergipe subiram para lutar contra os revoltosos e venceram o conflito. Ao retornarem, pediram a Dom João VI a independência da região como “prêmio”.
“O rei acabou acatando o pedido, transformando Sergipe em uma capitania autônoma que deveria se reportar diretamente a Dom João. Ele tomou essa decisão por dois motivos: para manter sua imagem de monarca bondoso, que recompensa seus súditos, e para diminuir o poder exercido pela Bahia na região, pois se tratava de uma capitania com lideranças extremamente poderosas”, detalha.
O problema é que a Bahia não aceitou de bom grado a decisão. Contando com o apoio das lideranças sergipanas de origem soteropolitana, os baianos enviaram mais de mil soldados para Sergipe para recuperar o território perdido.
Os militares baianos iam batendo de porta em porta, perguntando o desejo dos moradores. Após essa consulta popular, chegaram à capital São Cristóvão e retiraram o governador do poder, colocando no lugar alguém alinhado com os interesses da Bahia: Pedro Vieira de Melo.
Esse golpe não foi recebido por algumas câmaras municipais, principalmente a de Itabaiana, que ameaçou iniciar um movimento contrário aos baianos. “Havia o medo de uma guerra civil entre baianos e sergipanos”, pontua Edna Matos.
Para acalmar os ânimos, Dom Pedro I, já após a independência, interveio e, com um decreto de 1824, confirmou o status de Sergipe como uma província independente.
A questão do São Francisco
No mesmo período em que confirmava essa independência, Dom Pedro I recompensou os baianos com um território ainda maior: a comarca de São Francisco.
Ainda na época colonial, foi definido que a divisa entre Bahia e Pernambuco seria marcada pelo Rio São Francisco. O norte e oeste do Velho Chico era pernambucano, enquanto a região ao sul e leste eram terras baianas.
O pacto na questão leste e oeste foi quebrado em 1824, como represália a Pernambuco pela Confederação do Equador, movimento separatista que aconteceu naquele estado. Para afastar a comarca de São Francisco da “má influência” dos rebeldes pernambucanos, Dom Pedro anexou essa região à Bahia.
“Eu, enquanto pernambucana, encaro essa perda de território para a Bahia como uma afronta”, enfatiza a historiadora Gizelly Medeiros. “Pernambuco sempre teve uma veia revolucionária, já a Bahia estava alinhada aos interesses dos poderosos. E por isso quase sempre levava vantagem nessas disputas territoriais”, alfineta.
Apesar da afronta, os pernambucanos da época não fizeram muito esforço para reaver a região que hoje abriga cidades como Barreiras, Luís Eduardo Magalhães e Correntina. “Era uma comarca que ficava bastante distante e não possuía fortes laços com Recife. Fora que, na época, era um lugar quase desabitado, que não dava muito retorno econômico”, conclui Gizelly.
Nordeste era assim em até 1817: Sergipe era baiano e Barreiras e pernambucana (Foto: Reprodução) |
Mais de um século depois, o jogo virou. Hoje a região é uma das principais produtoras de soja do país e se tornou tão rica que hoje almeja independência da Bahia.
A história da criação do estado de São Francisco, que teria Barreiras como capital, é antiga. Um dos primeiros defensores da tese foi o Barão de Cotegipe ainda no século XIX, mas a proposta não foi para frente.
Em 2011, por proposta do deputado federal Oziel Oliveira, a ideia voltou à discussão. No entanto, após interferência do então governador Jaques Wagner, o projeto foi arquivado na Câmara em 2015.
Atualmente, não existe nenhum projeto em tramitação propondo a independência do território, que conta com pouco mais de um milhão de habitantes. Mas o desejo de se emancipar segue forte em parte da população.
“Parece que a Bahia não nos reconhece como seu território. Eles não investem aqui. O aeroporto de Barreiras, por exemplo, está em péssimas condições. O governador quer recolher os impostos da região, que é bastante rica devido à soja, mas não reinveste”, reclama a historiadora de Barreiras, Inês Pitta.
Ela também aponta que a distância para a capital, de quase 900 km a partir de Barreiras, fez a população do oeste desenvolver uma relação mais próxima com outros estados.
“Brasília e até Goiânia estão mais próximas do que Salvador. Parte da nossa cultura se assemelha bem mais à do Centro-Oeste do que a baiana. Grande parte dos nossos habitantes vieram do Sul do Brasil. Todas essas questões culturais, somadas ao descaso que sentimos do governo estadual, motivam essa tentativa de independência”, esclarece a moradora de Barreiras.