InícioEditorialPolítica NacionalChico Liberato carregava a cultura popular em sua arte sofisticada

Chico Liberato carregava a cultura popular em sua arte sofisticada

Poucos artistas retrataram tão bem e com tanta originalidade o Nordeste brasileiro como o baiano Chico Liberato, que morreu na madrugada desta quinta-feira, aos 86 anos, em decorrência de infecção urinária e insuficiência renal.

E Chico realiza esse retrato do Nordeste sem folclorizar suas obras, o que é um grande mérito, afinal folclorizar a cultura nordestina sempre foi muito tentador. Esse registro estava em trabalhos como o filme Boi Aruá (1984), primeiro longa-metragem de animação do Norte-Nordeste, e os cartazes que criou para diversas edições da Jornada Internacional de Cinema da Bahia.

O escritor Claudius Portugal, que costuma assinar catálogos de exposições de artes, foi amigo de Chico e destaca que ele tinha uma forte ligação com a cultura popular: “Ele segue o que chamamos normalmente de ‘raízes’, o que leva a muitos caminhos, sendo, no caso dele, todos com a visão do povo, no sentido popular. Chico reinventou o Nordeste com suas crenças, esperanças e manifestações. Mas tudo isso, sem deixar de ser contemporâneo”.

César Romero, artista plástico e colunista do CORREIO, também destaca a relação de Chico com a região: “Ele tinha amor pelo Nordeste e pela cultura popular. Essa região está retratada de maneira exemplar na obra dele. Era um artista extremamente talentoso, mas de imensa simplicidade”.

Claudius Portugal diz que, embora retratasse o popular, Chico se aproximava da erudição em sua arte: “Ele está para as artes visuais assim como Elomar está para a música. Eles pegam a tradição, recriam e fazem algo muito sofisticado. O trabalho de Chico, embora regionalista, tinha precisão e técnicas cosmopolitas”.

O desenhista e muralista baiano Juarez Paraíso afirma que Chico dominava todos os gêneros e era capaz de criar obras que tinham suporte independente e “não eram apenas para serem colocadas na parede”. “Ele transformou a pintura em elementos tridimensionais, ligados ao Brasil e ao Nordeste, à cultura indígena e à arte negra. Tinha regionalismo, mas era voltado para linguagens universais”, defende Juarez.

Pioneirismo

Entre os trabalhos mais conhecidos de Chico, está a  animação Boi Aruá, para o qual foram realizados em torno de 30 mil desenhos, segundo estimativa de João Liberato, um dos cinco filhos do artista. O crítico de cinema Marcos Pierry define o filme, que pode ser visto na plataforma Itaú Cultural Play,  como uma revolução total: “Foi feito com alunos da Ufba e tinha trilha sonora de ‘europeus- baianos’, da escola baiana de vanguarda. Ele fez a ponte entre diferentes geraçãoes do cinema baiano e brasileiro. Boi Aruá crava esse pioneirismo de Chico na animação brasileira. E me interessa muito esse Chico ligado à vanguarda na Bahia e fora da Bahia”.

No YouTube, está disponível um curta-metragem de Chico, Deus Não Está Morto, de 1974. Gravado numa vila do Recôncavo baiano, mostra rituais em extinção, em que, simbolicamente, anjo e demônio disputam a alma de um folião. “Animal e vegetal se fundem em um mesmo cenário de ritmo, beleza e vitalidade ante o olhar do artista e sua câmera Super 8”, diz a sinopse.

“O filme tem trilha sonora de Ernst Widmer, que representava a vanguarda da música atonal europeia. Nele, Chico pega uma Super 8, faz suas colagens e realiza uma mistura de procedimentos com uma pequena câmera”, detalha Pierry. O crítico ressalta ainda o misticismo presente no filme: “Chico era carregado de um forte misticismo, era quase um índio em busca da seiva bruta e era muito ligado à questão da natureza”.

Nova figuração
 Chico Liberato integrou a Nova Figuração, que marcou os anos 1960 e tinha como referência a Pop Art americana e o Nouveau Réalisme francês. Além de Chico, outros representantes brasileiros desse período foram Antonio Dias, hoje com 80 anos; Geraldo de Barros (1923-1998) e Rubens Gerchman (1942-2008).

“A Nova Figuração era um movimento internacional que se contrapunha à arte abstrata”, observa Juarez Paraíso, que realizou em 1964 uma exposição desse grupo na Bahia. Segundo Juarez, que conheceu Chico há mais de 60 anos, o colega formava uma base para as inovações das artes plásticas da Bahia, junto com outros artistas do estado, como Pasqualino Magnavita e Juraci Dórea.

Quando foi morar no Rio de Janeiro, Chico foi, segundo Juarez, um “embaixador” da Bahia naquele estado e fazia a ligação dos artistas de lá com os colegas baianos. Tanto que foi muito fundamental para a realização das bienais de arte da Bahia nos anos 1960, principalmente porque conhecia críticos e artistas relevantes.

Ritos de Passagem, outro filme de Liberato

Chico foi também um atuante gestor do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) de 1979 a 1991 e, nessa função, realizou importantes exposições, além de ter implementado oficinas que formaram artistas baianos das gerações seguintes. “Poucos artistas baianos contemporâneos não passaram por lá”, ressalta Claudius.

O escritor enfatiza ainda as exposições que Chico promoveu no MAM-BA, com destaque para duas delas: Cadastro e Proposta: “A primeira fazia um mapeamento de todo mundo que fazia arte na Bahia e a segunda tinha artistas selecionados”. João Liberato diz que o pai desejava democratizar os espaços: “O MAM era dominado por artistas locais. Então, o primeiro ato dele como direror foi a exposição Cadastro. Qualquer artista que quisesse expor poderia se inscrever. Então, tinha arte no banheiro, na escadaria… foi uma exposição meio escandalosa”.

Vida e família

Chico Liberato nasceu em Salvador, em 1936, numa casa no Polietama de Baixo, onde funciona atualmente o restaurante Q’Sopa. Sua família era bastante tradicional e seu tataravô foi governador da Bahia no século XIX. “A família não tinha ligação alguma com arte e era ligada engenhos de cana-de-açúcar. Mas meu pai, ainda na escola, aos seis ou sete anos, já desenhava nos cadernos”, diz o filho João Liberato, filho de Chico, músico e professor da Universidade Federal de Sergipe.

Chico, ao lado de Alba (à esquerda dele) e os filhos

Antes de ser artista profissional, Chico chegou a ser representante comercial e, mais tarde, foi para a fazenda de cacau de um cunhado, no sul da Bahia. Lá, assumiu o compromisso de plantar seringa, um cultivo promissor na época. Foi nesse período que começou a ter contato com povos indígenas, por quem criou profundo apreço e cuja cultura marcaria parte de suas criações. “Mas ele percebeu nessa época que não tinha a ver com o mundo rural da Bahia, com essa mentalidade coronelista. Então, foi de mala e cuia para o Rio de Janeiro, para conhecer uma cultura cosmopolita”, diz João.

Cândida-Luz Liberato, filha de Chico e produtora cultural, de 54 anos, lembra que o pai permitia que os filhos circulassem livremente pelo ateliê dele, na casa onde o artista viveu até o fim da vida, no bairro de Trobogy. “Os amigos dele reclamavam e diziam que não conseguiam trabalhar na nossa casa, porque a gente estava sempre junto e às vezes até sujava os trabalhos deles”, lembra Cândida-Luz. Ela também recorda que aos quatro anos de idade atuou num filme do pai, junto com a irmã, Ingra, hoje atriz, que protagonizou a novela Ana Raio e Zé Trovão (1991), na TV Manchete. Ingra esteve também em Segundo Sol (2018), na Globo.

Foi no Rio de Janeiro que Chico conheceu Alba, com quem se casou em 1965 e viveu até o final da vida. Ela, que era professora normalista, foi aluna dele num curso de artes, onde se conheceram. Embora estivesse no Rio era também baiana, como Chico e havia se mudado para lá com a família, aos 15 anos de idade. Juntos, Chico e Alba tiveram cinco filhos: Cândida-Luz; Ingra; Flor; João e Tito. O artista deixa também nove netos.
 

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