InícioEntretenimentoCelebridadeSucesso com Alcione, música ‘Ilha de Maré’ quase foi roubada na maternidade

Sucesso com Alcione, música ‘Ilha de Maré’ quase foi roubada na maternidade

Walmir Lima, hoje aos 91 anos, e em foto com Alcione nos anos 70. Meio século depois, ela voltou a gravá-lo: ‘Santo Amaro é uma flor’, canção dele com Edil Pacheco, está no mais recente álbum da Marrom (Fotos: Acervo pessoal)

A meio quilômetro da Maternidade José Maria de Magalhães Netto, em Salvador, nascia, há quase meio século, saudável e pesando uma tonelada de baianidade, um dos maiores sucessos do samba nacional. ‘Ilha de Maré’, canção de Walmir Lima que fala de uma criatura que deixa o território insular para desaguar na Lavagem do Bonfim, foi composta um tanto longe da região dos festejos, no bairro do Pau Miúdo. Foi lá, na Rua 20 de Agosto, 132, que um dos maiores sambistas da Bahia, hoje com 91 anos, compôs um dos grandes sucessos da carreira de Alcione, num momento em que a cantora maranhense buscava se consolidar entre as grandes vozes da MPB.

O que pouca gente sabe é que a canção por pouco não foi roubada, numa trama até hoje mal explicada, mas que não sai da memória do compositor. “Apareceram uns indivíduos, não vou dizer os nomes, que arranjaram uma mulher (como laranja), e botaram ela pra me desfazer, dizer que a música era dela, porque eles não esperavam que eu fizesse aquela música. Ficaram com inveja”, considera o compositor, ao citar o complô desfeito por uma esperta conduta tomada por ele.

Quase um ano antes, logo que deu à luz os primeiros versos da canção, Lima viajou ao Rio de Janeiro e registrou o que já estava feito. A música ficou ali, à disposição de alguns, e sempre que alguém ouvia, se impressionava. 

Desafio
O nascimento de ‘Ilha de Maré’, aliás, é reflexo de uma má impressão que alguns músicos e críticos cariocas famosos tiveram sobre os compositores baianos. Conta Walmir que, num evento organizado pelo órgão de turismo governo da Bahia, nomes como o do maestro Júlio Medaglia e do cartunista Jaguar, comentaram que “a Bahia não compunha nada para as festas de largo”. “Aquilo me doeu”, admite Walmir, que encarou como um desafio.

E como todo bom desafio pressupõe uma missão, ela acabou sendo dada por uma amiga: Valneides, moradora de Ilha de Maré que o interpelou e criou as condições para viabilizar o processo. “Ela me disse assim: ‘Walmir, você faz músicas pras escolas de samba, pra bloco, por que você não faz música pra minha terra? Eu vou lhe dar um fim de semana lá, pra você’”, convidou a embaixadora de Ilha de Maré (que Walmir não sabe dizer o paradeiro), sem saber ela que estava mudando a história da música brasileira. 

Quando pegou o barquinho e o violão e desceu para a ilha, parte da canção já ressoava na mente do compositor. “Então, eu tava com a ideia na minha cabeça, da crítica dos caras lá do Rio… E eu já tinha a cabeça dessa música. Quando voltei de Ilha de Maré, que eu saltei do barco na Ribeira, botei minha família no carro e fui na Igreja da Conceição pra ver o que é que eu podia fazer pra acabar de terminar a música”, recorda.

Registro providencial
Semanas depois, o tetracampeão do carnaval da Bahia – foi o compositor de quatro sambas-enredos vencedores da folia baiana, na era pré-trio elétrico – desembarcou no Rio com sua obra em progresso, gestada do ressentimento com alguns colegas sudestinos.

“Passei no Rio, na minha editora da época, deixei a cabeça da música e já peguei uns trocados. Eu ter deixado lá foi a minha felicidade, porque quando a música começou a estourar, apareceram esses indivíduos… Só que os ladrões ficaram chupando dedo, primeiro porque já tava registrada. Lá na hora da conversa, o cara (da editora) disse: ‘minha senhora, vá embora, porque senão eu vou mandar a polícia lhe recolher. Essa música já está registrada desde o ano passado’”, relata.

A tentativa de assalto, na verdade, só demonstrava a potência da composição, que também é assinada pelo parceiro Lupa – é dele a inserção de ‘comadre’ e ‘compadre’ na letra.

“Essa música veio com uma força… Não seria ela que iria ‘puxar’ o disco de Alcione. Seria ‘Pra que chorar’, feita por um grande poeta que tem uma estátua em Itapuã”, brinca Walmir, se referindo obviamente a Vinicius. A festa de largo escolhida para cumprir o desafio dos conterrâneos do Poetinha foi a Lavagem do Bonfim, como se sabe.

Reduto de bambas no Pau Miúdo
E a pessoa que acaba unindo, mesmo que indiretamente, Walmir Lima e Alcione, é a mesma que juntou diretamente Caetano Veloso e Gilberto Gil: o produtor musical Roberto Sant’Anna, então diretor de gravadora, que apresentou os cantores tropicalistas anos antes. Dedo bom. “Sant’Anna me disse: ‘todo mundo manda letra, fita pra mim, só você que não manda’. Aí eu mandei. Ele levou lá para o estúdio e, de repente, alguém ouviu. Alcione pegou e levou pra casa, ela e o companheiro dela da época ficaram loucos com a música, mas perderam a fita. Então, ligaram pra Raimundo Carvalho, diretor da Polygram aqui em Salvador, e ele foi me procurar.”

Gravação refeita, reenviada, música gravada pela Marrom, sucesso em todo o Brasil, mas nada de Walmir Lima conhecer a artista pessoalmente. Até que, certo dia, a estrela maranhense pintou para fazer um show em Salvador. Foi Walmir quem foi lá vê-la? Nada disso. Ela foi até a casa dele, no Pau Miúdo, então um dos principais redutos do samba nacional.

“Alcione foi uma amizade que foi se prolongando. Ela quis gravar ‘Bom Jesus dos Navegantes’ em 79, foi quando Beth Carvalho tinha vindo aí em casa e tinha gravado ‘Dindinha Lua’, que foi sucesso também”, citou ele, também autor de ‘Castelo de Areia’, gravado por Jorge Aragão, e ‘Encrespou o mar’, por Clementina de Jesus. “Eu não faço música de encomenda. As minhas músicas são coisas que nascem, que vem de dentro. Essas músicas feitas de encomenda não ficam”, chancela o compositor, que como se vê era muito bem frequentado.

Walmir tenta puxar Beth Carvalho pra dançar durante um caruru em sua casa, no Pau Miúdo (Foto: Acervo Walmir Lima)

Ainda na casa do Pau Miúdo, que tinha algumas paredes ainda por rebocar, recebeu algumas vezes estrelas como Cartola, Dona Zica, Nelson Cavaquinho, Jorge Aragão, além da turma do Fundo do Quintal. Citado em ‘Tenda dos Milagres’, de Jorge Amado, era tratado carinhosamente pelo escritor por ‘Warmir’. “O livro levou meu nome pelo mundo. Está em mais de 40 línguas, até em croata”, gaba-se.

De Dorival Caymmi – compositor nascido no Cabula, onde Walmir hoje vive com esposa e filha –, recebeu até o bastão de guardião do samba. “Um dia, eu encontrando com Caymmi em Salvador, ele disse assim: ‘você é a minha continuação aqui na Bahia’. E tinha gente que ficava com inveja por aqui também”, relembra, deixando claro que o mau olhado estava por toda parte. 

Walmir com a filha, a cantora e compositora Gabriela Lima, na primeira vez em que cantaram juntos no Terreiro de Jesus (Foto: Acervo da família)

Além de compositor, Walmir também é cantor – o primeiro a gravar uma composição de Zeca Pagodinho, ‘Dez Mandamentos’ –, e segue vendo brotar admiradores. Neste sábado (14), tocou no Samba da Resistência, na Itapuã de Vinicius, e nesse embalo vê desabrochar também a garantia de que seu legado será perpetuado: sua filha, a cantora Gabriela Lima, estrela em ascensão, nascida em berço esplêndido, já faz seus sambas na Lavagem do Bonfim.

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