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As sete facadas na razão

O serviço foi muito bem feito.

Conseguiram fraturar o Brasil.

O mal é muito fácil de ser colocado em prática, e nos últimos anos houve uma campanha maciça, promovida por setores conservadores e reacionários, e por detentores de privilégios históricos no país.

O objetivo era se odiar a esquerda, introjetar ideias absurdas como ameaça comunista, banheiro unissex, fechamento de igrejas e kit gay, frear direitos de setores desfavorecidos, e uma devida democratização de recursos, oportunidades e acessos.

A tática é simples. Basta você incitar a ameaça do diferente, nas diversas camadas. Se você é branco, hétero, sulista ou sudestino, e cristão, fica fácil. Todo resto está querendo direitos que vão destruir sua vida, e mudar comportamentos, referências, morais e éticas.

Mas as gradações dos golpistas seguem abraçando outros grupos. Você pode ser nordestino, mas branco cristão e hétero, então o problema não é o nordestino – como na lista do sudestino ou sulista -, mas os negros, índios, gays e macumbeiros (sic); por exemplo. E por aí vai. Ao ponto de até mulheres negras lésbicas e nordestinas conseguirem achar alguém mais desfavorecido social e simbolicamente para ser um problema em atacar seus direitos, também.

É uma lavagem cerebral onde o que está em jogo são privilégios, protagonismos e um imenso medo de se perder o (pouco, às vezes) que se tem. E uma cruzada moral, mesmo que vinda de gente imoral em diversos aspectos.

O discurso é muito bem direcionado. As fake news são muito malfeitas, mas funcionam. Por mais tosca que seja a notícia, sempre há alguém que acredite na mensagem do whatsapp, e ao se demonizar a imprensa, botando toda ela (risos e mais risos) como esquerdista, não adianta se mostrar dados, fatos. A verdade nítida e objetiva passa a ser mentira, e as fake news são o último reduto da verdade plena.

Nisso, há uma ideia também de agrupamento. As pessoas, que poderiam buscar cada vez mais sua individualidade, buscam no agrupamento um motivo para se sentir melhor. Isso serve pra time de futebol, estilo de roupa, música, religião, etc. Ser mais um ajuda a ser alguém. Então, um seleto grupo de defensores de valores tradicionais, da família, da propriedade e de Deus, vira um símbolo de resistência e comunhão de pensamento e comportamento.

As pessoas realmente passam a acreditar numa realidade paralela. Houve fraude nas eleições, há um plano comunista, uma ditadura do STF, um risco de ditadura gay, desrespeito aos princípios cristãos, sexualização das crianças e artistas mamando no erário. A lista é longa, e as mentiras da lista, infinitas e irreais.

Mas as pessoas realmente passam a acreditar numa realidade paralela. Parecem querer viver uma luta do bem contra o mal.

Ficam cegas a qualquer indício de realidade que fuja aos seus delírios.

A invasão dos prédios federais, dia 8 de janeiro, não foi sequer o paroxismo dessa loucura  desenfreada, muito bem programada e articulada pela extrema direita.

E, de repente, ouço pessoas dizendo que a esquerda precisa chegar a essas pessoas.

Estar no templo evangélico, dialogar com o sudestino branco motorista de táxi, e, de repente, querem dar ao governo a tarefa de uma psicologia social das massas, de uma reparação intelectual de determinados setores.

Criticam a comunicação ruim, a falta de ações concretas que cheguem à realidade dessas pessoas.

Pode ser.

Eu, particularmente, não vejo uma saída assim. 

Duvido muito que alguém deixe de acreditar em seu whatsapp, ou seu pastor, ou em seu blog de fake news, para se sensibilizar com uma aproximação da esquerda através da comunicação e das redes sociais; para além de uma abordagem mais pessoal que todos nós podemos fazer; e eu e vários que conheço, com toda educação e compreensão, vêm fazendo sem êxito há anos, também..

Não acreditar nisso parece ser uma perda de esperança no diálogo, da minha parte. Pelo contrário.

Escrevi uma peça sobre isso, onde me pergunto sobre a possibilidade de criarmos novas regras, estabelecermos novos acordos para um momento onde faltam ferramentas mais laras de dissuasão da crise profunda em que mergulhamos.

Como acredito na arte que pergunta, não na que responde, Fantasia de Guerra foi um texto escrito pensando no mundo atual, criando uma realidade fictícia onde um soldado e um andarilho se encontram em meio a uma guerra, e começam a estabelecer uma relação lapidada pelo tempo, com todas as asperezas de seu caminho. O enigma se estabelece. E os questionamentos se afloram.
Como dialogar com gente que apela ao terrorismo, que acredita numa cruzada contra forças malignas comunistas? Como trazer estas pessoas para a realidade? 

Sigo não me cansando de perguntar; e minha peça está em cartaz incansavelmente questionando a cada apresentação tudo isso. 

Sigo ansiando que o tempo saiba responder. 

A tarefa é árdua e temos um longo caminho de questionamentos a fazer. 

Mas estou certo de que se essas pessoas não quiserem rever suas ideias, ou não passarem por um choque de realidade muito grande, teremos uma realidade rachada, com um imenso buraco negro sugando a luz de parte da população.

Eu realmente queria começar 2023 falando mais de arte, beleza, cultura. Trazendo reflexões estéticas, observâncias cotidianas e problemas e questões mais comuns.

Mas as sete facadas num Di Cavalcanti são simbolicamente sinais de alerta, e nos prendem a um passado ainda recente que insiste em tirar nossa paz.

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