Laureado há quatro anos com o Prêmio Camões, Chico Buarque enfim recebeu a honraria ontem, em Sintra, Portugal. E fez um discurso emocionante, em grande parte dedicado à memória de seu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), autor do clássico Raízes do Brasil, e outras importantes obras do pensamento nacional.
“Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária”, confessou Chico.
O tom leve só mudou, cedendo espaço à ironia, quando o cantor e compositor falou sobre o contexto da premiação. “Nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula”, disse o artista de 78 anos. Explica-se: em 2019, o então presidente da República, Jair Bolsonaro, se recusou a cumprir o rito que o Camões exige e reconhecer seu mérito. “Já me perguntava se me haviam esquecido”, brincou.
“A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Prêmio Camões”, publicou numa rede social em 2019.
Em sua fala, Chico lembrou o início de sua carreira literária: “Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões”.
O escritor ressaltou a importância da presença de Luiz Schwarcz na cerimônia. Schwarcz é fundador da editora Companhia das Letras, que publica os livros de Chico no Brasil, como Benjamin e Budapeste. Estavam presentes também os escritores laureados pelo Camões Mia Couto e Manuel Alegre, além da cantora Fafá de Belém.
Apesar de receber o prêmio pelo conjunto da obra literária, Chico ressaltou o significado que sua obra musical tem para ele: “Por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim”.
“Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim”.
O presidente Lula representou o Brasil e estava acompanhado de Margareth Menezes, ministra da Cultura. “Esse prêmio é uma resposta do talento contra a censura; do engenho contra a força bruta”, disse Lula. Margareth havia se manifestado em um comunicado, distribuído antes da cerimônia: “Chico Buarque é um artista de uma envergadura tremenda, pela história, por tudo que já produziu, tanto na música, quanto na literatura”.
Prêmio Camões
O Prêmio Camões de Literatura foi instituído em 1988 e, segundo o site da Biblioteca Nacional – que participa da premiação – tem o objetivo de “de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural de nossa língua comum”.
Considerado hoje o mais importante prêmio da língua portuguesa, o Camões é entregue todo ano. A comissão julgadora é composta por representantes do Brasil, de Portugal e de países africanos de língua oficial portuguesa. O autor premiado recebe cem mil euros. Metade deste valor é subsidiado pela Fundação Biblioteca Nacional. Portugal arca com a outra parte.
Outros 12 autores brasileiros já haviam sido premiados antes de Chico Buarque: Raduan Nassar (2016); Alberto da Costa e Silva (2014); Dalton Trevisan (2012); Ferreira Gullar (2010); João Ubaldo Ribeiro (2008); Lygia Fagundes Telles (2005); Rubem Fonseca (2003); Autran Dourado (2000); Antonio Cândido de Melo e Sousa (1998); Jorge Amado (1994); Rachel de Queiroz (1993) e João Cabral de Melo Neto (1990).
Discurso de Chico Buarque – Prêmio Camões 2019
Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.
O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde – sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.
Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
Muito obrigado