InícioEditorialA heterossexualidade feminina é ou não é uma maldição?

A heterossexualidade feminina é ou não é uma maldição?

Nesta semana, a primogênita de Madonna afirmou, pra quem quis ouvir, que gostar de namorar homens é uma “maldição”. Nenhuma novidade. Essa conversa é recorrente, inclusive entre as minhas amigas. Eu mesma já cansei de repetir isso e pedir, ao encantado, a graça de uma súbita, satisfatória e consistente bissexualidade, que acho a orientação sexual mais legal e prática. Tô esperando até hoje. Sentada (não importa onde). É que também não existe a “cura hetero”, ninguém muda – ou amplia – objeto de tesão apenas por querer. Sendo assim, sem racional solução, a pessoa tem que se conformar com o que é, se aceitar e pronto acabou. Mesmo quando o que somos nos causa alguns desgastes. A vida é assim. O encontro entre a estrutura social e desejos sexuais individuais pode ser mais ou menos problemático, a depender da estrutura social e da qualidade dos desejos. Por exemplo, numa estrutura social machista, é algo bem trabalhoso ser uma mulher desperta (a filha de Madonna não seria uma “Alice”) e ter desejo sexual por homens. Acho que é sobre isso que Lourdes Maria tá falando. Aos 26 anos, ela parece bem angustiada por entender que o tesão, quando em contradição com a racionalidade, gera imensos conflitos. Compreendo totalmente. Acho legítimo. É sério, né presepada não. Por isso que ela é assunto, aqui, hoje. Porque trouxe uma questão de muitas de nós. “Eu sou dolorosamente hetero. É terrível. Eu gostaria que não fosse assim, mas, infelizmente, essas são as cartas que recebi. Estou amaldiçoada, atormentada por gostar desses homens”, Lourdes disse assim, desse jeitinho quase adolescente, mas eu entendi cada sílaba. A bichinha ainda tá mais lascada do que eu por ter conhecido a verdade tão cedo. Aos 26, eu não tinha esse veredito e achava que “ser feliz no amor” era apenas rota do indivíduo, sorte ou azar pessoal, “dedo podre” ou dedo bom. Também que o “amor” tinha o poder de se sobrepor a questões culturais e solucionar conflitos, se fosse “real”. Sabia de nada, a inocente. Para mulheres heterossexuais, a banda toca bem diferente. Sob a “bênção” da ignorância, a mulher vai sempre achar que o “defeito” do homem da vez é só dele, uma avaria específica daquele exemplar. Percebe que delícia? É só dispensar o elemento e partir pro próximo que vai dar tudo certo, era aquele que não prestava. Se o próximo também der defeito, foi falta de sorte, tenta de novo, ué. Terceiro ou quarto “boy lixo” e podemos pensar em “dedo podre”, fazer melhores escolhas, a mulher questionar a si mesma o motivo de repetir determinado “padrão”. A inocência de não perceber contextos pode resultar (e resulta, muitas vezes) trágica, mas há o lado bom de apenas flanar ou “bestar sem dar fé”, como dizia minha quase avó. “Problemas amorosos”, chamamos assim. Até que. Um dia (é só um exemplo), você recebe a visita do boy e ele usa o banheiro. Você vai ao banheiro em seguida, e percebe microgotinhas de urina pulverizadas no vaso sanitário e ao redor dele. Você não consegue mais apenas limpar, pensando “coisa de homem, normal”. Muito menos dar aquela risadinha, porque ter macho em casa “é bom”. Também não quer comentar com ele e pedir que não repita a grosseria. O que você faz é respirar fundo pra não gritar com o pretendente. Passa o papel com álcool na força do ódio pensando “evém outro” e se entendia automaticamente com o cidadão que, depois de pulverizar seu banheiro com urina, descansa em seu sofá de pernas abertas como se os testículos estivessem inflamados. Tudo na mais perfeita normalidade para a mulher que você não é mais. Você até quer transar, pra não perder a viagem. Mesmo assim, passa a achar tudo meio chato porque já conhece o filme: o desrespeito pelo espaço doméstico, o gestual “espaçoso” – e/ou outros detalhes que você aprendeu a decodificar – são apenas elementos, aparentemente banais, do grande conjunto de modos e costumes com os quais ele, mais cedo ou mais tarde, vai tentar lhe atropelar. É tudo uma coisa só. Ele está imerso nisso. É incontornável. Pronto. Você acordou. Você juntou os últimos pontinhos, visualizou o desenho e nada será como antes, mais. É nesse dia – ou num dia muito parecido com esse, mudando só o “gatilho” pra usar palavra da moda – que a sua heterossexualidade, se você é mulher, vira maldição. Piora um pouco mais quando você, na “pós-graduação”, lê os livros “A perversidade do homem submisso”, “Ele quer mulher forte só pra tentar dominar” e “Por que eles não entendem o que a gente fala”. (Esses livros eu vou escrever, perainda, tenha calma.) (Todos com termos e intertítulos bem incompreensíveis pra a academia achar relevante.) Numa mesa da qual participei, certa vez, na Universidade Federal da Bahia, um homem defendeu, em voz alta, que nós, mulheres, precisamos treinar alguma luta ou comprar arma e aprender a atirar. Isso, para que estejamos protegidas contra eles, os homens, que ele próprio reconhecia como um grupo humano perigoso, pelos condicionamentos culturais. Isso está gravado. Eu disse que ele também cometia, naquele momento, violência contra nós. É que, em vez de atuar no problema (a violência masculina contra mulheres), oferecia como solução que nós nos preparássemos para lutar. Espia: contra eles. Não gosto de luta, não quero matar ninguém com uma arma, não quero virar assassina. Só queria mesmo poder viver meu desejo em liberdade e paz. Ele mesmo dizia que isso era impossível, que eu não estava segura e eu sei que é verdade. Ele não entendia o motivo pelo qual eu não queria “me defender”. Ele não conseguia admitir que eu pudesse ter a opção de escolher entre treinar ou não uma luta e sobre a arma nem vou comentar. Ele me cobrava que eu agisse diante do obrigatório, necessário e perfeitamente natural (na opinião dele) medo que eu deveria ter de humanos do sexo masculino, inclusive daqueles com os quais eu me relacionasse intimamente. Ninguém goza em alerta, eu quase falei. Nem no corpo nem na alma. Mas olhei para a cara daquele homem e tive certeza de que ele não ia entender. Desisti. Como tantas vezes, em diferentes relações com homens, abandonei o barco, cansada. É o de sempre. São os fatos. Agora, volte à vaca fria, aí. Me diga se essa menina Lurdinha não tem razão. Por tudo e portanto, a heterossexualidade feminina é ou não é uma maldição? Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo

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