Que bloco é esse? A pergunta feita por Paulinho Camafeu em 1974 para introduzir o Ilê Aiyê ao mundo no Carnaval do ano seguinte já não é feita com a mesma intensidade em 2024, mas não porque o bloco, o 1º voltado exclusivamente para a comunidade preta em Salvador, perdeu a força. Após 50 anos, a resposta está na ponta da língua de quem desfila nas ruas da capital baiana durante a folia, entre locais e turistas.
O “mundo negro” dentro da Bahia mostrado em 1974 através da ideia revolucionária de Vovô do Ilê saiu das aspas e ganhou o mundo de forma literal. Não há quem não responda a pergunta com outra música de volta: O mais belo dos belos, o charme da Liberdade. E nem pegue ninguém ou toque, essa é a hora de ver o Ilê Aiyê passar.
“A nossa maior conquista com o Ilê Aiyê é ter semeado a questão da negritude, do orgulho de ser negro. De abrir espaço para profissionais negros serem exaltados, como a obra da sede do Ilê, que foi feita por um arquiteto negro, Pedro Rosa. A gente não desiste nunca, o negro é sempre o vilão e a gente sempre está tentando reverter essa situação”, afirma Vovô do Ilê.
Foto: André Frutuoso
Quem diria que subir a ladeira do Curuzu em 1974 daria acesso não só ao bairro da Liberdade, um dos mais populosos de Salvador, mas também ao mundo através da música e da arte. A conquista do Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil, que nesta sexta-feira (1) completa 50 anos de existência e resistência negra no Carnaval de Salvador e na cultura mundial, é cantada aos quatro ventos e celebrada pela comunidade.
“O Ilê surgiu para ser um bloco carnavalesco, um bloco afro só composto por negros e dirigindo por negros, mas o Ilê se tornou uma referência nacional de combate ao racismo a partir das suas ações e sua resistência. Das suas músicas denunciando o racismo, empoderando as pessoas negras, resgatando o orgulho de ser negro, contando histórias. Tudo isso fez o diferencial do Carnaval do Ilê”, conta Vovô ao Bahia Notícias.
Apesar de cantar pautas sociais nas ruas, o bloco passou a atuar de forma mais ativa nas causas extra festa através de Mãe Hilda. Vovô conta que a festa ficava com ele e Apolônio Souza de Jesus Filho, o Popó do Ilê, enquanto Mãe Hilda dava ao Ilê os rumos necessários para que o bloco deixasse de ser apenas algo visto em fevereiro, para ser vivido nos 12 meses do ano.
“Os blocos por aqui não faziam nada, quando o Ilê começou a fazer os ensaios as pessoas foram à loucura. No início elas ficaram meio assustadas, por causa da repressão, mas depois a periferia inteira se deslocava para o Curuzu para participar dessa festa. A partir dos anos 80, 90, quando começamos, através de minha mãe, a ter atividades extra carnavalescas com as escolinhas no terreiro, os cursos profissionalizantes, nós começamos a fazer a diferença na comunidade como um todo.”
Foto: Arquivo
Ao site, Vovô contou que não criou o bloco com a expectativa de que ele fosse durar 50 anos, mas que tudo com o Ilê aconteceu de forma natural, apesar das adversidades e da luta por espaço e investimento.
“Tudo foi acontecendo naturalmente. Eu queria ser carnavalesco, queria curtir o Carnaval e não via espaço. Via muitos blocos compostos por pessoas brancas, via os blocos de índio, os blocos de samba, era tudo misturado, mas o Ilê nunca conseguia ganhar o Carnaval. Com o crescimento do bloco, a chegada de novos associados, nossa característica maior de sempre desfilar no Curuzu, o ritual com o candomblé quando minha mãe decidiu sair no bloco, tudo isso nos fortaleceu. Tivemos muitas dificuldades de dinheiro, de patrocínio, apoio, mas nunca desistimos e continuamos aqui.”
Para Vovô, o Ilê carrega consigo uma grande conquista desde a sua criação, ter semeado o orgulho de ser negro na Bahia, no Brasil e no mundo. “O Ilê conseguiu mobilizar isso. Poucos anos após a criação do Ilê, surgiram novos blocos, em 1976 e na cidade toda e no Brasil. Hoje você vê essa movimentação no Acre, em Brasília, em Minas, Maranhão. Todo lugar tem blocos com essa característica afro percussiva. Começamos a sair do Brasil, muitos integrantes do bloco acabaram ficando por lá, mas deram continuidade a nossa história”.
“AS PESSOAS, ANTES DE SEREM CAPITALISTAS, SÃO RACISTAS”
Crítico da forma como a verba dedicada aos blocos afro é distribuída no Carnaval, Vovô tem opinião firme sobre o assunto e faz questão de alfinetar sempre que pode quanto às diversas restrições que ele, e outros diretores de blocos afro, encontram ao buscar o apoio financeiro de instituições e governos.
Para além da verba, o idealizador do Ilê faz uma crítica forte ao comportamento criminoso enquanto sociedade soteropolitana: o racismo enraizado. Vovô pontua que a capital baiana foi o local onde racistas encontraram para se sentirem confortáveis em praticar o crime.
Foto: André Frutuoso
“Salvador foi o lugar onde o racismo se instalou e se deu de bem, apesar desses adjetivos todos que Salvador tem, ela continua uma cidade muito racista. As pessoas sempre têm resistência de apoiar, de juntar sua marca com a negrada, apesar de nós sermos maioria no consumo, eu falo muito que o empresariado, as pessoas que estão no governo, municipal e estadual, elas podem até tentar, mas os assessores dificultam. É muita exigência de documentação que eu não sei se vejo essa exigência para os artistas brancos que são contratados na cidade. Eu sinto que as pessoas, antes de serem capitalistas, são racistas. Eles deixam até de ganhar o dinheiro deles, mas não querem juntar a marca deles com a negrada.”
TRANSFORMAÇÃO ATRAVÉS DA JUVENTUDE
Vovô pontua que um dos caminhos para mudar o cenário é investir na juventude, mas naquela que tem interesse de lutar junto pela busca de espaço e respeito e não quem queria apenas se tornar conhecido por uma causa sem batalhar junto.
“Ainda vamos ter que lutar bastante, conscientizar a juventude negra que tá vendo as coisas acontecendo, mas está fazendo vista grossa. O pessoal gosta muito de panfletar, mas na prática, na hora de atuar, as pessoas estão muito no discurso. Todas as nossas conquistas, a questão de cotas, tudo que nós conquistamos, a lei no 10.639, por exemplo, antes mesmo de ter essa lei promulgada, isso já acontecia dentro dos colégios onde o Ilê atuava”, afirmou.
Foto: André Frutuoso
A lei em questão foi a de 2003, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
Para Vovô, o futuro ainda é de muita briga. “A gente ainda vai ter que batalhar muito para mostrar nosso valor, estar sempre alerta. Tem pessoas que não percebem o que acontece, dizem que nunca foram discriminados, mas por não ter conhecimento de causa”.
No bate-papo, Vovô ainda citou a importância de ter nomes negros ocupando espaços em todas as áreas, a exemplo do futebol, que influencia tantos jovens e consegue prender a atenção de tantas pessoas. “Aqui no Brasil, só temos a Ponte Preta com um presidente negro. A direção de clube de futebol são todos brancos. Poucos treinadores negros tem destaque, e as pessoas acham isso normal”.
Dentro do Ilê, Vovô conta que o propósito é dar voz e oportunidades para pessoas negras em primeiro lugar. “Aqui no Ilê, todo mundo que trabalha com a gente foi formado aqui, fazemos tudo para que esse movimento não acabe. A gente não é eterno e se quisermos dar continuidade, precisamos dessas pessoas”.
A MUSICALIDADE QUE INSPIRA
A conta é básica, são 50 anos de Ilê Aiyê e 40 anos de axé music. Na analogia com a pergunta clássica do quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? O llê vence a disputa, que é inexistente pois há um consenso: o axé não seria o que é hoje sem os blocos afro.
O tópico interliga com a declaração anterior sobre dar continuidade ao que foi feito anteriormente. Em meio aos debates do que foi embora e do que permanece, o axé sempre aparece como algo que tem ocupado a lembrança do público. Já o Ilê segue latente e acaba se tornando o respiro do gênero musical que fez do Carnaval o que ele é hoje.
Foto: André Frutuoso
“Sempre estamos com artistas da terra, que dão visibilidade nacional ao Ilê e é uma troca justa. Temos muitos artistas que são parceiros [Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Beto Jamaica e Baiana System se apresentam no show especial de 50 anos do bloco]. Muitos começaram a sua carreira com o Ilê Aiyê e eles sabem que a revolução dos tambores influenciou muito a música baiana. O axé music surgiu depois dos blocos afro, o pessoal usava pouca percussão aqui, o timbau, atabaque, esses elementos fomos nós que trouxemos para a musicalidade baiana. Não é difícil ter esses parceiros.”