Sentada em uma das cadeiras da recepção, Luísa*, grávida de sete meses, aguarda atendimento médico. Não está lá para saber se o bebê cresce saudável – ela sabe que não. Cinco dias antes daquela última consulta, a gestante e o marido haviam decidido como ia querer se despedir da filha e conversaram com o obstetra sobre a antecipação do parto. Ao nascer, a menina deve repousar no colo do pai enquanto a mãe reza.
Nos três meses anteriores, Luísa, que balança uma das pernas enquanto espera o médico, foi acompanhada pelo Ambulatório de Cuidados Paliativos Perinatais da Maternidade Climério de Oliveira, em Salvador. Esse serviço, o primeiro do tipo na Bahia, atende famílias que se deparam com a finitude da vida quando ela mal começou. “Não conhecia esse trabalho”, conta Luísa, em uma tarde do fim de janeiro deste ano.
A filha dela tinha Síndrome de Edwards, doença genética rara que gera problemas como má formação de órgãos e, na maioria das vezes, é fatal antes do nascimento ou no primeiro ano de vida. A perspectiva era de que a bebê, a menos que fosse entubada para ter a chegada da morte prolongada (o que os pais não queriam), vivesse poucas horas – ela nasceu sem vida, no início de fevereiro.
“A gente sabe de toda a situação. Não tem o que a gente possa fazer”, afirma Luísa, antes do parto. O pai pensa igual, o que não simplifica a situação. “Por mim, ela nasceria bem”, diz ele, ciente da impossibilidade do que deseja. Os familiares deles desconheciam o estado da bebê.
Luisa e o marido falaram abertamente sobre a filha no ambulatório de cuidados paliativos que funciona nas manhãs de sexta na maternidade e promove mudanças na filosofia de trabalho das equipes diante da morte. Todos os dias, ao menos três crianças nascem na maternidade. Ano passado, foram 27 óbitos fetais.
“Em maternidade, não se fala só de nascimento, precisamos, infelizmente, também falar da morte. As pessoas, para escolherem, precisam conhecer, se despir do preconceito, do medo”, diz Lília Embiruçu, médica pediatra, neonatologista e paliativista que criou e coordena o ambulatório.
Na madrugada do início de fevereiro, a menina nasceu, sem vida, por um parto normal. Os desejos dos pais foram respeitados: a mãe, que é espírita, viu a bebê e rezou por ela, que ficou no colo do pai.
“Foi uma experiência que me transformou porque eu tive o reconhecimento de que minha bebezinha está bem e no céu. Fiquei com medo, mas fui fortalecida”, diz Luísa.
O trabalho pela vida
Nas tardes de quinta, uma comissão de cuidados paliativos – formada por oito pessoas, entre médicas, psicóloga, enfermeira e técnica de enfermagem – discute os casos acompanhados pelo ambulatório. Em grupo, formado a partir da estruturação do serviço de paliação, elas tabulam dados e escrevem protocolos para fixar a paliação na maternidade. No ano passado, 70 atendimentos foram realizados pelo serviço.
As demandas de pacientes vêm do ambulatório de Medicina Fetal, que diagnosticam doenças limitadoras da vida durante o pré-natal, ou de encaminhamento de outras unidades públicas de saúde. Famílias de bebês prematuros extremos são pacientes em potencial.
Os cuidados paliativos são uma abordagem terapêutica que cuida dos sintomas físicos tanto quanto do sofrimento psicológico, espiritual e social, tantas vezes ignorados pelos métodos tradicionais no caso de doenças incuráveis.
Desde 1998, a OMS reconhece a validade dessa prática para os períodos que antecedem e sucedem o parto ou a interrupção da gravidez, o que inclui a sensibilidade de não deixar uma mãe enlutada ficar na cama ao lado de uma puérpera com o filho nos braços.
Durante o ciclo de atendimento no ambulatório, os pais descobrem como podem criar vínculos com seus bebês e participam da construção de um plano de cuidado baseado em seus valores e crenças.
Esse documento pode incluir aspectos da vida – como se os pais querem batizar os filhos na sala de parto ou desejam algum ritual específico – e da morte – como questões de sepultamento. As definições surgem conforme as consultas, que duram mais de uma hora cada, progridem.
Demanda tempo o processo de elaborar os dois extremos da humanidade. Alguns pacientes chegam a perguntar se podem se considerar mesmo pais e mães. Entre as mulheres, é comum o sentimento de culpa, como se fossem responsáveis pelo estado de saúde dos filhos.
Lília Embiruçu: a criadora do ambulatório de cuidados paliativos (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Um dos procedimentos, se eles assim desejarem, é a criação de uma caixa de memórias, em que são depositados símbolos da gestação, como fotos, roupinhas e o que mais quiserem.
A ideia de criar um ambulatório de cuidados paliativos em uma maternidade surgiu em 2018, época em que a médica pediatra e neonatologista Lília Embiruçu, então coordenadora da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) neonatal da Climério, se aprofundava nos estudos sobre o tema. Sineide Coelho, superintendente da maternidade, aceitou a sugestão.
“A primeira coisa que você aprende sendo neonatologista é como reanimar o paciente. Você não aprende a ajudar alguém a morrer”, compartilha Lília.
No início, Lília atendia onde e como podia na Maternidade, que pertence à Universidade Federal da Bahia e faz parte da Rede Hospitalar Ebserh, que administra unidades de saúde vinculadas a universidades. Só em 2021 o serviço ganhou o espaço de um ambulatório, que hoje possui psicóloga e assistente social.
“Achavam que eu era doida [risos]. Era conhecida como ‘a médica que você chama quando não dá para fazer mais nada’. E não é nada disso”, conta Lília.
Na verdade, é o contrário. Se nascerem vivos, os bebês têm todos os sintomas tratados: não devem sentir dor. As mães, que trazem no corpo os sinais da perda, com as alterações emocionais e físicas que gerar um ser humano implica, podem escolher ter a lactação inibida por medicamentos.
A médica que agora assiste sua ideia se consolidar na maternidade colocava em prática preceitos semelhantes aos dos cuidados paliativos há ao menos duas décadas. Como pediatra de um centro de controle de transmissão vertical do HIV, em Vitória da Conquista, aprendeu que ninguém se resume a uma doença – todos têm história biográfica, social, psicológica.
“Somos ensinados a sermos médicos obstinados, fazer tudo pelo paciente. Mas esse ‘fazer tudo’ tem tanta abrangência. Fazer tudo pode ser segurar a mão de um paciente”, acredita Lília.
É o que a psicóloga Jiane Borges redescobre todos os dias. Durante os plantões na UTI, ela, que é referência do setor e atua no ambulatório, trabalha particularidades de cada paciente: há gestantes, por exemplo, que vêm do interior e descobrem tardiamente os diagnósticos que atravessarão suas vidas.
“Há situações muito diversas, então precisamos ampliar nosso olhar sobre a dor, isso exige cuidado e diálogo constante”.
Mães e pais que descobrem que os filhos têm doenças ameaçadoras de vida vivem o que a psicologia chama de luto antecipatório, quando a elaboração da perda começa antes da perda real.
“É impossível falar de cuidados paliativos sem falar de luto. Se há um diagnóstico de doença ameaçadora de vida, começa um processo de luto que precisa ser reconhecido. O suporte da equipe de saúde multiprofissional pode diminuir o risco de um luto mais complicado”, diz Jiane, que buscou se aprofundar em estudos em luto e cuidados paliativos.
Por isso, os rituais podem ser tão importantes. “Se eles não vão poder cuidar desse bebê depois, podem cuidar antes, e isso pode fazer toda a diferença. Eles [os pais] saem de lugar só de sofrimento para o processo de luto ativo, o que pode ajudar na elaboração da perda”, explica a psicóloga.
Jiane Borges, a psicóloga que defende olhar ampliado sobre a dor (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
O atendimento continua com aqueles cujos processos de luto se complicaram. Nas manhãs de quinta, desde 2019, Jiane atende, à distância ou pessoalmente, pacientes que perderam seus bebês. De acordo com o Ministério da Saúde, 3.893 bebês com 7 a 27 dias morreram no Brasil em 2022.
O início de tudo
Em um domingo de julho de 2018, Viviane Santos, 35, chegou para o que seria a primeira consulta do ambulatório em formação na maternidade. Grávida de gêmeas siamesas, unidas pelo tórax e abdômen, Viviane estava ali, com o marido e os pais, para conversar com Lília sobre as possibilidades para o futuro. Ouviram e falaram por três horas.
A gestação era de risco para a mãe e havia, ela conta, direito para interrupção da gravidez. No Brasil, o aborto é permitido em casos de risco à vida da gestante, gestação resultante de estupro e anencefalia fetal.
Desde janeiro, 1.616 gestantes fizeram abortos por razões médicas e legais, segundo a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). O ambulatório de cuidados paliativos perinatais da Climério acompanha o processo de decisão da interrupção da gravidez entre as pacientes atendidas.
Para Viviane, essa não era uma opção. No dia 22 de agosto de 2018, o parto aconteceu no Hospital Materno Infantil de Goiânia, referência no procedimento de separação de gêmeos siameses.
As meninas voltaram para Salvador em duas semanas: Débora, diagnosticada com uma cardiopatia grave e acúmulo de líquido no cérebro, e Catarina, mais estável. No último dia de vida de Débora, dois meses depois, Viviane acordou, supervisionou Catarina, tomou café e foi para UTI ver a outra filha.
Débora e Catarina nasceram unidas pelo tórax (Foto: Acervo Pessoal) |
Um raio de sol iluminava a pele da neném. A quantidade de oxigênio nela estava abaixo do normal. A UTI parecia silenciosa.
“Eu disse: ‘mãe, você está tão linda, parecendo sua irmã”.
Ela já sabia como gostaria de se despedir da filha e intuía ter chegado a hora, ao ver os sinais vitais dela em queda. Uma plantonista, então, pôs o bebê nos braços de Viviane, que começou a acarinhá-lo. Marcos chegou a tempo de se despedir. Viviane falou como estava feliz em ser a mãe de uma menina tão batalhadora. Do pai, Débora ouviu que seria uma filha lembrada e honrada.
“Não houve desespero de aparelho apitando. Foram os cinco minutos mais longos da minha vida, mas ela podia descansar. O processo em si me ensinou que o importante da vida é o agora”, diz Viviane, que, como o marido, considera um presente ter podido se despedir.
Até então, ele tinha má impressão de médicos, por maus tratos que sofreu fora dali. Dias antes da morte de Débora, por exemplo, foi impedido visitá-la no Hospital Ana Nery – ela ficou lá uma semana antes de ir para o Climério. “Mesmo ela podendo falecer a qualquer momento não me deixaram ver minha filha”.
“Estamos em um momento de tecnologia extrema. Mas há momentos em que a vida se impõe em condições limitantes. Precisamos respeitar esse processo. Não porque não há nada a se fazer, porque há muito a se fazer, que é ter um cuidado técnico e humano”, diz Neulânio de Oliveira, secretário geral da Academia Nacional de Cuidados Paliativos.
Para ele, os entraves para que os cuidados paliativos perinatais ganhem mais espaço recaem na desinformação. Contra essa corrente, tornou-se obrigatório o ensino dos cuidados paliativos na grade curricular de Medicina, em dezembro passado, por determinação do Ministério da Educação.
“O desconhecimento traz insegurança de levantar discussões, como sobre a interrupção da gestação e o que é estabelecer um plano de cuidado”, diz Neulânio, que trabalha com cuidados paliativos perinatais desde 2018, no Hospital Materno Infantil de Brasília
O Brasil não possui política pública relacionada a cuidados paliativos, apenas uma comissão federal com diretrizes para o tema no Sistema Único de Saúde.
Uma mãe redescobre a maternidade
“Meu movimento todo é para que a gente fale mais sobre cuidado paliativo para gestantes “, diz Flávia Carvalho, servidora pública que se transformou em ativista pela sensibilização da perda neonatal e infantil depois da gestação da primeira filha, diagnosticada com síndrome de Edwards. Flávia foi atendida por cuidados paliativos desde o início da gravidez.
Hoje, há dez serviços estruturados de cuidados paliativos perinatais no Brasil, segundo a Academia Nacional de Cuidados Paliativos – o número não inclui iniciativas espontâneas de equipes. A Sesab afirma que há 36 unidades de saúde estaduais com cuidados paliativos na Bahia – cinco delas, maternidades.
Flávia e Helena (Foto: Acervo Pessoal/Senhoritas Fotografia) |
Helena nasceu, sem vida, em janeiro de 2021. Na sala de parto, tocavam as músicas escolhidas pelos pais dela, o que seguia o plano de cuidado traçado dois meses antes do parto.
“Vestimos ela, ela ficou nos meus braços. Apesar de tudo, foi um parto cheio de amor”, lembra Flávia, que logo descobriria que a experiência dela era minoria e que sua própria maternidade seria negada ao ter a licença do trabalho negada.
Quando se pôs em ambientes, como em grupos de mensagem, com outras mulheres que perderam filhos no período perinatal, se deparou com histórias como a de mães que são sedadas para que não vejam seus filhos mortos.
“Hoje a gente luta, em grupos, para que haja um protocolo a ser seguido nesses casos. Que não fique só no lugar da empatia”.
No último dia 1º de maio, Flávia e outras mães que participam de coletivos contra a violência obstétrica se reuniram com a Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres. De lá, saíram com a promessa de que será apresentada uma proposta de Plano de Atenção Obstétrica e Neonatal à Sesab.
Em casa, Flávia guarda uma caixa branca com lembranças da gestação e uma imagem de ultrassom de Helena. “Minha filha não é um assunto velado. Ainda choro muito, mas sabe quando você experienciou a pior dor do mundo? Sou mais intencional depois disso, sei que pode não haver outra oportunidade”.
Ela diz viver um grande amor à distância, porque as perdas sempre podem ter esse poder de mostrar a vida de outras formas.
*Nome fictício a pedido da entrevistada.