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Baile da morte: as misteriosas ‘epidemias de dança’ em Estrasburgo e em Salvador

Para os inimigos do fim, que estão desesperados com o término do Carnaval e querem dançar atrás do trio elétrico eternamente, vamos aproveitar a ressaca e entrar no multiverso da loucura?

Imagine que o recente pedido de Xanddy Harmonia, sobre ter 10 dias de folia, seja atendido. Aliás, muito além disso. A festa de 2023 foi tão boa (e foi mesmo), que o prefeito Bruno Reis resolveu decretar quatro meses de trio na rua. Todo dia tem Bell Marques, Daniela Mercury, Armandinho, BaianaSystem… Ninguém mais para de dançar.

Após 15 dias de badalação intensa, e o povo dançando sem descanso, a primeira pessoa tomba no chão, mortinha. Como uma epidemia, ninguém mais consegue parar de dançar.

De repente, uma média de 15 foliões morrem atrás do trio, diariamente. Gente desfalecendo em consequência da dança que parecia interminável. Dezenas de pessoas afetadas por uma pandemia: dançaram até morrer.

Voltemos à realidade do nosso multiverso. Pode parecer filme de ficção científica ou encheção de linguiça deste repórter, mas isto aconteceu de verdade na França, em 1518, e algo menos grave (sem mortes) em Salvador, em 1882.

Dança da morte
Se você quer que o Carnaval nunca acabe, melhor rever seus conceitos e prestar atenção nesta história que se encaixa bem para um pós-festejos. Já ouviu falar na epidemia da cidade francesa de Estrasburgo? Lá, quiseram que essa fantasia fosse eterna. E muita gente morreu de tanto dançar. 

Tudo começou com uma foliona. O nome dela não era Ivete Sangalo, mas Frau Troffea. Não se sabe ao certo o que ela tomou, pois ainda não tinham inventado o Beats sabor caipirinha, mas essa francesa saiu de casa e começou a dançar numa praça da cidade, em pleno verão europeu. Tudo isso sem música.

De repente, outras pessoas foram ‘contaminadas’ e também começaram a jogar as cajás. Ninguém conseguia mais parar e, no pico desta epidemia, 400 pessoas estavam bailando de forma contínua. Se tornou um Carnaval fora de época, mas de forma mórbida, pois pessoas começaram a bater a caçoleta, literalmente. 

Não se tem o número exato de pessoas que morreram. Documentos da época apontam que, após um período intenso de dança, cerca de 15 ‘bailarinos’ morriam todos os dias, geralmente por infarto, derrames cerebrais e exaustão.

A epidemia intrigou médicos e políticos da época, que não tentaram impedir o povo de dançar. Muito pelo contrário. Deram mais dias de ‘festa’, como se o Xanddy medieval tivesse sido atendido.

Colocaram bandas na rua, abriram salões de festa e até palcos foram montados para que todos continuassem quebrando. O diagnóstico da época para a doença dançante: sangue-quente. A solução foi deixar esta corrente sanguínea esfriar, mas a epidemia durou quatro meses e muita gente morreu.  

Em Salvador já aconteceu um surto parecido, em Itapagipe. Será que corre este risco em pleno Carnaval? (Foto: Paula Fróes/CORREIO)

O surto coletivo terminou de forma natural. De repente, as pessoas pararam de dançar e voltaram para suas casas, como uma quarta-feira de cinzas depois do arrastão. Este fenômeno foi objeto de estudos de diversos autores e o que não falta é teoria. A primeira delas é um fungo que teria contaminado o trigo na colheita da época. A turma fez pão com estes trigos contaminados e bateu aquela onda em Frau Troffea, que dançou durante seis dias seguidos e depois sumiu. Outras pessoas também acabaram comendo o fungo conhecido como ferrugem dos cereais (ou ergot), e entraram no clima da dança, como um surto coletivo.

Contudo, um dos maiores estudiosos do caso até acredita que tenha havido o tal fungo, mas ele não foi o fator crucial para a epidemia da dança. Apenas o gatilho inicial. O historiador estadunidense John Waller acredita que este tipo de fato tem mais associação a surtos psicológicos que trazem cargas de problemas sociais intensos que acabam se transformando em comportamentos extremos e coletivos, como a epidemia da dança. Parece um absurdo, mas não é. 

Salvador
Com suas devidas proporções, este conceito liga diretamente Estrasburgo a Salvador. Na época, o povo local vinha de um intenso frio, fome e extremismo religioso, fatores que contribuíram para o fenômeno dançante.

Voltemos à nossa capital. Após dois anos sem folia, por conta de um momento apocalíptico de pandemia, a avenida carnavalesca serviu de desabafo após longos períodos intensos de caos coletivo, seja na esfera da saúde, política ou econômica. Reparou que a turma neste Carnaval estava mais eufórica, inimigos do fim, indo para todos os lugares e querendo mais festa? Pois bem, é justamente sobre isso. A dança se torna uma forma de extravasar, mas também pode se tornar um surto perigoso.

“Uma pista importante para a causa desses surtos bizarros reside no fato de que eles parecem ter envolvido transe dissociativo, uma condição que envolve (entre outras coisas) uma dramática perda de autocontrole. É difícil imaginar pessoas dançando por vários dias, com os pés machucados e ensanguentados, exceto em um estado alterado de consciência”, disse John Waller, em artigo científico sobre o tema, publicado no site thelancet.com.

Ele é autor do livro ‘A Time to Dance, a Time to Die: The Extraordinary Story of the Dancing Plague of 1518’ (sem tradução no Brasil), que fala sobre o episódio. 

Waller ainda revela que o caso na cidade francesa não foi um surto isolado. Antes de Estrasburgo, mais especificamente em 1278, cerca de 200 pessoas começaram a dançar de forma descontrolada, durante dias seguidos, na ponte sobre o rio Mosela, em Maastricht, também na França. A ponte não resistiu e desabou, morrendo várias pessoas afogadas.

A compulsão agonizante de dançar se espalhou pela França e Holanda num período bem difícil para manter a saúde mental. Em 1491, na Holanda, freiras de um convento começaram a dançar sem parar, alegando espíritos demoníacos. 

“Na década anterior à praga dançante de 1518, a fome, as doenças e o frio terrível causaram desespero generalizado em Estrasburgo e arredores. Os preços do pão atingiram seus níveis mais altos em uma geração, milhares de fazendeiros e viticultores famintos chegaram aos portões da cidade e velhos assassinos como a lepra e a peste juntaram-se a uma nova e terrível doença chamada sífilis”, completa John Waller. Pegou a referência na atualidade? Em momentos extremos da sociedade, o cidadão acaba extravasando de alguma maneira, incluindo a dança. 

Caso Itapagipe
Sabe qual é a maior ironia do destino? Este fenômeno da epidemia da dança já foi registrada uma vez no Brasil e adivinha onde foi: em Salvador, mais precisamente em Itapagipe, no ano de 1882. Documentos da época apontam que mais de 40 pessoas começaram a dançar sem parar e até a prefeitura precisou intervir. 

A Câmara Municipal nomeou uma comissão de médicos para estudar o caso. Ninguém morreu e as autoridades tranquilizaram os soteropolitanos da época. Em artigo científico sobre o caso, a psiquiatra e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Ana Maria Galdini, lembra de um fato curioso.

“O parecer da Comissão foi publicado na Gazeta Medica da Bahia, em 1883, e dava à moléstia o nome de coreomania, literalmente, mania de dançar; popularmente, a ‘moléstia nova’ era chamada em Salvador de caruara ou treme treme”, lembra a doutora. Os termos parecem até música do carnaval, né? Inclusive a palavra ‘coreomania’ é uma linguagem antiga para, pasmem, coreografia. “Vem deslizando (vai), que eu ‘to gostando (vem)…”. O médico Nina Rodrigues, o mesmo que deu nome ao IML de Salvador, estudou o fenômeno e atribuiu a circunstâncias “meteorológicas, étnicas, político-sociais e patológicas”. 

“As condições político-sociais referidas, que estavam ainda bem próximas em 1890, eram o fim do regime monárquico e do escravismo; Nina Rodrigues lembra que estes fatos decorreram de processos históricos que forçosamente deveriam ter semeado a desconfiança e a insegurança entre as pessoas do povo que, sem participar diretamente destas profundas mudanças institucionais, eram muito atingidas por suas conseqüências”, completa Galdini.

Há o que temer?
Afinal, é possível acontecer um novo surto desse em Salvador? Hoje, com a evolução da medicina e diversas formas de tratamento contra um surto é bem difícil. No máximo, alguém pode querer quebrar o recorde de Bandana Nepal, que detém o recorde do Guinness de mais tempo dançando sem parar. Ela ficou 126 horas bailando de forma ininterrupta, em 2019.

Bem menos que nossa personagem da França, Frau Troffea. Mas nada impede que ocorra algo semelhante e de forma coletiva, pois a emoção contagia. Ou você não fica com vontade de dançar quando vê amigos dançando na festa também? É um exemplo simples, mas que mostra como é possível ser contaminado pela dança, mesmo que de forma involuntária. É como bocejar quando alguém próximo boceja.

“Espero que não aconteça aqui em Salvador, né? Eu acho que já basta os dias de Carnaval que temos. É uma festa que mobiliza muita coisa na nossa cidade, principalmente para quem vive da folia”, comenta a psiquiatra Patricia Gidi.

Segundo ela, é preciso “ter um equilíbrio em tudo e mais 10 dias de Carnaval pode não ser saudável.” “A gente pode trazer um pouco para nossa realidade o que aconteceu na França. Temos o fator social, mas também sabemos do aspecto contagioso das emoções. Temos estudos que mostram, por exemplo, que a felicidade ‘contamina’ as pessoas. O convívio com pessoas depressivas também pode afetar o humor negativamente”, complementa. 

Se conseguimos sobreviver à zona de perigo deste carnaval, melhor nos prepararmos para o ano que vem. O Fuzuê começa um dia depois da festa de Iemanjá, no dia 2 de fevereiro. Depois, Furdunço e carnaval. Se pretende dançar sem parar, melhor saber seus limites e não ultrapassá-los. 

“A dança tem seus benefícios e, como psicóloga e artista da dança, tento indicar e auxiliar os meus clientes para a prática da dança. Porém, quando praticada em excesso, pode causar estresse mental, desgaste e exaustão do corpo físico. É necessária a pausa e descanso do corpo, eu  passei por uma maratona de 6 dias intensos dançando durante 6h no trio e percebi o quanto o meu corpo clamou por um momento de descanso”, disse a psicóloga e dançarina profissional, Luana França. Ela é dançarina de Daniela Mercury. 

O que fazer para evitar contratempos na dança? “Como professora, sempre conscientizo meus alunos sobre a importância de realizar os exercícios de alongamento e aquecimento antes de qualquer atividade, ajudando assim a fortalecer a musculatura e deixando aquecida para uma rotina intensa, evitando lesões. Além do autoconhecimento para não ultrapassar os seus próprios limites tanto física, quanto psicológica. E, por último, porém não menos importante, uma alimentação saudável e descanso”, completa Ticiane Brito, professora de dança do Grupo Perfil de Educação.

A dança e o surto coletivo sempre estarão bem próximos de manifestações populares, como a folia momesca. Ela faz parte dos riscos eminentes de um caos da felicidade. Como diria Chico Buarque, é “uma ofegante epidemia que se chamava carnaval…”.

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