De duas semanas para cá, já são três madrugadas que Janaína Britto, 40 anos, é acordada pelo barulho de gritos e pedradas nas janelas de casa. O alvo dos agressores é o filho dela, uma criança de apenas 12 anos que dorme em um dos dois quartos e escuta tudo o que acontece.
Os apedrejamentos começaram quando Janaína decidiu lutar para que o filho, um menino transgênero, seja chamado pelo nome social (nesta reportagem, ele será identificado por R). O uso de nome social para menores de 18 anos nas escolas é um direito reconhecido por lei desde 2016 mas que, em Poções, no sudoeste baiano, não tem sido respeitado.
A escola municipal onde R. estuda diz precisar de uma ordem da prefeitura de Poções para que o tratamento dispensado ao garoto mude. Procurada por Janaína, a vereadora Larissa Laranjeiras (PCdoB) apresentou um Projeto de Lei (PL), há um mês, que propõe que as pessoas transgênero sejam chamadas pelos nomes sociais nas escolas. O projeto não foi posto em votação.
Ao descobrir que a proposta seria lida na noite de 23 de maio, um pastor da cidade conclamou a comunidade evangélica: “Caso você não tenha o compromisso, estaremos um monte de evangélicos na Câmara. Para que os vereadores se sintam inibidos a não votar nessa aberração”.
A chamada surtiu efeito, pois evangélicos compareceram à Casa Legislativa. O pastor ficou em pé, em um canto. No outro, estava R., acompanhado pela mãe e duas amigas. Embora o projeto fosse apenas ser lido, os religiosos se anteciparam.
Há vereadores que já indicaram publicamente que se o projeto for para um pleito, serão contrários. Um deles afirmou, na sessão de segunda-feira (30), que não poderia “receber imposição de ninguém”, citou a Bíblia e concluiu que ‘sua ideologia deve ser respeitada’.
Os ataques contra R. são acompanhados por organizações como a Aliança Nacional LGBTI, a Associação de Famílias Homotransafetivas e a Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB – Bahia. Para Janaína Abreu, membro da comissão, os ataques contra o garoto de 12 anos se configuram em “racismo por transfobia”. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal enquadrou a transfobia como um crime de racismo.
Violência afasta transgêneros da escola
Janaína não acha que sejam só os evangélicos que agridem a ela e ao seu filho. O ódio plantado pelo pastor contaminou gente já disposta a odiar. E foi a força desse sentimento que quebrou uma das janelas da casa dela, na madrugada da última quarta-feira (02), e aprisionou a ela e ao filho. Antes, os ataques tinham assustado, mas não deixaram provas físicas. A polícia chegou tarde demais para encontrar os responsáveis – no dia seguinte.
À tarde, estava prevista uma reunião na escola onde R. estuda. Apesar do horror da madrugada, Janaína optou por ir.
“E foi muito estranho. Foi ali que consegui entender meu filho. Quando a professora dele perguntou: A mãe de A. (nome de batismo de R. ou ‘nome morto’, como pessoas trans chamam o nome ao qual abdicam por não representar suas identidades de gênero) está aí? Pensa numa dor que me deu”, conta.
Quando R. comunicou, há três meses, a identidade de gênero dele, Janaína desconfiou da violência que estava por vir. Sem saber a quem recorrer na cidade, onde não tem familiares, buscou grupos de mães de transgêneros e que atuam na causa LGBTQIA+. Não parou até conseguir respostas para a pergunta: “O que fazer agora?”.
Janaína e o filho: apedrejados pela transfobia (Foto: Ingrid Martins) |
Uma das primeiras decisões dela foi recolher documentos que, teoricamente, garantiriam a R. o nome. O principal deles era uma determinação do Ministério da Educação, a instância educacional do Brasil, em 2018, que autorizou o nome social de transgêneros e travestis nas escolas, para minimizar uma das faces da violência contra essas pessoas.
O MEC prevê que basta os representantes legais de estudantes solicitarem na escola a alteração do nome. Toni Reis, pós-doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná, participou da formulação do parecer do órgão e garante que a identidade de gênero do filho de Janaína deve ser respeitada – não só por humanidade, mas porque a lei obriga.
“Quem regulamenta a educação é o MEC. Se eles [escola] não acatarem o pedido, vamos fazer do caso de R. exemplo para o Brasil”, afirmou.
O pesquisador é diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI, que já notificou extrajudicialmente a Secretaria de Educação de Poções. “Os gestores estão ignorando. Se não formos atendidos, acionaremos o Ministério Público”, explicou Amanda Souto, advogada integrante das associações Aliança Nacional LGBTI e das Famílias Homotransafetivas.
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a violência afasta as pessoas transgênero da formação educacional: 56% delas não terminam o Ensino Fundamental.
Desde o dia em que teve o direito negado pela escola, essa estatística é um dos temores de Janaína. O filho, até o momento, faz questão de ir às aulas. “Ele não é de família rica. Se não estiver bem na escola, não vai ter portas abertas”.
A reportagem tentou contato tanto com a escola frequentada por R., quanto com a Secretaria Municipal de Educação. As ligações não foram atendidas. O funcionamento nas repartições públicas está afetado pela maior celebração religiosa da cidade – a Festa do Divino Espírito Santo.
Convidado para um aniversário na praça onde acontece a festa católica, R. não irá participar. A mãe, por ora, quer resguardá-lo.
‘Poções não é para amadores’, diz professor
Em Poções, vivem, em média, 50 mil pessoas, calcula o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nascida em Minas Gerais, Janaína se mudou para lá quando R. tinha 2 anos. A mudança, na verdade, era um retorno. Na adolescência, levada pela mãe, Janaína tinha morado lá, onde conheceu o pai dos seus dois filhos mais velhos.
“O que eu pensava é que por ser uma cidade de interior, eles poderiam sair, eu teria mais controle da situação”, lembra.
O pai de R. nunca participou da vida do menino e o paradeiro dele é desconhecido. Decoradora de bolos de festas, foi essa ocupação que garantiu o sustento dela e de R. – os outros dois filhos recebiam a pensão do pai.
“Não sou uma aberração”, diz menino transgênero (Foto: Ingrid Martins) |
Depois que o caçula assumiu sua identidade de gênero, Janaína, que em tudo apoiou o filho, perdeu os clientes. No sábado passado, dos nove pedidos, seis não foram buscados. Hoje, ela e a criança sobrevivem de doações.
“Costumo brincar: Poções não é para amadores. É uma cidade conservadora. Você vai no comércio, não há um gay assumidamente trabalhando. Travesti e pessoas trans? Existem, mas não estão lá”, diz Célio Meira, professor e um dos fundadores do coletivo Nós da Diversidade.
Na sala de aula, Célio aborda questões de gênero. Já discutiu com colegas por esse motivo. Quem o diz que o assunto é “mimimi” ouve em resposta: “Mimimi é ‘minha misericórdia para a sua miopia’”.
Oficialmente, é a primeira vez que uma mãe luta pelo direito do filho ser chamado pelo nome social na cidade. Mas, isso não assegura que ele é o único caso. Autora do PL que aguarda votação, a vereadora Larissa Laranjeiras afirma que três jovens estudantes já a procuraram diretamente.
“A realidade dessas pessoas que chegaram até a mim, são pessoas jovens, sem apoio da família, eles não vão conseguir bancar a mudança”.
Foi na escola que Janaína ouviu de uma professora que era “muito cedo para isso. Você não pode incentivar”. Janaína pensa o contrário: “Não acho 12 anos cedo para uma pessoa ser feliz”.
Crianças trans existem
A 450 quilômetros de Poções, funciona o Ambulatório Transexualizador do Hospital das Clínicas, em Salvador. A unidade atende, de forma multidisciplinar, pessoas travestis e transgênero em busca de terapias hormonais. Há uma ala dedicada a atender os mais jovens, às sextas-feiras.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) permite, desde 2019, que crianças transgênero sejam acompanhadas por equipes multidisciplinares.
“A transgeneridade é descoberta em qualquer momento. Por menor que seja a criança, ela pode não se sentir pertencente ao gênero que foi designado a ela no nascimento”, explica José Antônio Faria Júnior, doutor em Endocrinologia, responsável pelo atendimento de jovens e professor da Universidade Federal da Bahia.
O acompanhamento de pessoas mais jovens pode ter início na puberdade. Biologicamente, nos designados meninos no nascimento, entre 9 e 14 anos, e nas designadas meninas, entre 8 e 13. “Quando essa puberdade começa, podemos bloqueá-la, evitando o aumento do volume da mama, por exemplo, em caso de meninos transgênero”, explica José.
O bloqueio da puberdade é possibilitado por uma substância chamada acetato de leuprolida. Em termos mais simples, o médico explica como funciona:
“É um stop [parada] na puberdade. Imagine que você se sente uma menina e começa a secretar hormônios masculinos, isso vai incomodar muito. O bloqueador vai interromper isso”.
As intervenções irreversíveis são proibidas até os 16 anos, quando pode ter início a prescrição de hormônios masculinos ou femininos. O bloqueio puberal pode ser interrompido, sem danos, caso a criança não se identifique como transgênero na vida adulta. “Pesquisas apontam que a criança que se identificar como transgênero no final da puberdade será transgênero na vida adulta”.
Em Poções, Janaína ainda não planeja a vinda R. para Salvador, para ser atendido no ambulatório das Clínicas. A demanda mais urgente é garantir o básico – o nome do filho – e o fim dos ataques.
Um dia antes do fechamento da publicação desta reportagem, R. enviou uma mensagem para ser publicada junto com o texto. Em uma folha de caderno, ele escreveu: