O decreto federal que regula o uso da força policial no Brasil, publicado no Diário Oficial da União dessa terça-feira (24/12), não foi bem recebido por alguns governadores e integrantes da oposição no Congresso Nacional, principalmente da “Bancada da Bala”. Os deputados se organizam, inclusive, para adotar medidas visando a revogação do texto.
A atualização das regras foi assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O decreto estipula condutas para o uso de armas de fogo, instrumentos não letais, abordagens, buscas domiciliares e atuação dos policiais penais nas unidades prisionais. Uma das medidas principais é a proibição do uso de arma de fogo contra pessoa desarmada que esteja em fuga ou contra veículo que desrepeite bloqueio policial.
Um dos primeiros a reagir publicamente ao texto foi o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União). Ele classificou o decreto como “engessamento das forças policiais” e como uma “chantagem explícita contra os estados”, ao impor aos governadores sanções de “acesso aos fundos de segurança e penitenciário”, caso não sigam as “diretrizes do governo do PT”.
“O texto evidencia que a cartilha do governo Lula para a segurança pública foca apenas em crimes de menor potencial ofensivo, como furtos. Mas não estamos na Suécia. A realidade brasileira é marcada por narcotraficantes violentos, equipados com um vasto arsenal, que travam uma verdadeira guerra contra o Estado Democrático de Direito”, expôs Caiado.
“Mais uma interferência”, diz Ibaneis
Outro que reagiu de forma contrária ao decreto foi o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB). Em entrevista ao Metrópoles, ele avaliou que o decreto é “mais uma interferência do governo federal na autonomia dos estados e do DF, ferindo a Constituição”.
Recentemente, em 19 de dezembro, o governador e deputados do DF no Congresso Nacional conseguiram derrubar a proposta da União de alterar o cálculo do Fundo Constitucional do DF (FCDF), responsável pelo custeio das forças de segurança e o auxílio nos gastos com saúde e educação.
A proposta estava inclusa no pacote de corte de gastos do governo federal e sugeria que o fundo fosse reajustado a partir da inflação, não mais pela variação da receita corrente líquida. Porém, cálculo elaborado pelo próprio governo federal revelou que a mudança representaria menos R$ 800 milhões nos cofres públicos da capital, só no primeiro ano.
Reação de governadores do Sul e Sudeste
Em novembro deste ano, os governadores dos estados das regiões Sul e Sudeste, também expressaram, em documento, posicionamento contrário a qualquer medida limitadora da ação policial. A “Carta de Florianópolis” foi divulgada ao final do 12º Encontro de Integração Sul e Sudeste (Cosud).
“Somos contra qualquer proposta que enfraqueça os estados e reduza sua capacidade de agir de forma rápida e adequada às necessidades locais. A segurança pública deve ser construída com base na colaboração, no respeito às diferenças regionais e no fortalecimento das capacidades locais, e não por meio de uma estrutura centralizada que limita a eficiência e amplifica a burocracia”, diz o texto.
O documento foi assinado pelos seguintes governadores: Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo; Cláudio Castro (PL), do Rio de Janeiro; Romeu Zena (Novo), de Minas Gerais; Renato Casagrande (PSB), do Espírito Santo; Ratinho Júnior (PSD), do Paraná; Jorginho Mello (PL), de Santa Catarina; e Gabriel Souza (MDB), então governador em exercício do Rio Grande do Sul.
“Bancada da Bala” quer revogar decreto
Entre os deputados federais, o decreto sobre as regras do uso da força policial também rendeu reações contrárias. Integrante da chamada “Bancada da Bala”, o deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS) adiantou que vai apresentar um projeto de decreto legislativo para revogar o texto assinado pelo presidente Lula.
“As novas restrições impostas pelo governo federal dificultam a atuação policial e favorecem a impunidade. Precisamos de uma polícia fortalecida e com autonomia para agir, não de medidas que engessem sua capacidade de proteger os cidadãos”, alegou o parlamentar.
Outro que reforça o coro é o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF). Ele afirma ainda não conhecer o texto do decreto do governo, mas que acha “um absurdo” a medida. “O governo federal não apresenta nada para combater a violência ou a criminalidade. Não faz nada, nenhuma política para combater o avanço do crime organizado e fica querendo colocar amarras nas polícias”, posicionou-se.
O deputado aponta, ainda, que o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) “deveria se envergonhar de estar fazendo um papelão desse”.
Uso progressivo da força
Nessa terça-feira, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, defendeu que, “dentro do Estado Democrático de Direito, a força letal não pode ser a primeira reação das polícias”.
Para o ministro, “é preciso que se implante de forma racional, consciente e sistemática o uso progressivo da força. Só podemos usar a força letal em última instância. É preciso que a abordagem policial se dê sem qualquer discriminação contra o cidadão brasileiro, se inicie pelo diálogo e, se for necessário, o uso de algemas dentro dos regulamentos que existem quanto a esse instrumento de contenção das pessoas, evoluindo eventualmente para o uso de armas não letais, instrumentos não letais que não provoquem lesões corporais permanentes nas pessoas”.
Decreto é uma resposta à violência policial
O decreto federal surge em meio a uma série de episódios recentes marcados pela violência policial no Brasil, principalmente no estado de São Paulo. Desde o início de novembro deste ano, pelo menos oito casos foram denunciados como possíveis abusos de poder por parte de agentes de segurança pública no estado.
Em nota ao Metrópoles, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo disse que as forças de segurança recebem treinamentos e têm seus procedimentos constantemente aprimorados, seguindo e respeitando a política de Direitos Humanos.
Por parte da PM, alega o órgão, “as abordagens obedecem aos parâmetros técnicos disciplinados por Lei e são padronizadas por meio dos chamados Procedimentos Operacionais Padrão (POP). Os policiais são submetidos a capacitações teóricas e práticas para atualizar e aprimorar as atividades de policiamento e o relacionamento com a sociedade”.
Jovem baleada por agentes da PRF
Na noite dessa terça-feira, houve mais um registro de ferimento grave ocasionado pela ação policial no Brasil, desta vez, no Rio de Janeiro. Juliana Leite Rangel, 26 anos, foi baleada na cabeça durante uma abordagem da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na Rodovia Washington Luís (BR-040), em Duque de Caxias. Ela estava em um carro com a família, a caminho da ceia de Natal, quando o veículo foi alvo de disparos.
O pai da vítima, Alexandre da Silva Rangel, 53, dirigia o veículo. Ele disse que, ao ouvir a sirene do carro da polícia, ligou a seta para sinalizar que ia encostar o carro na rodovia. No entanto, segundo ele, os agentes saíram do veículo oficial atirando.
Juliana está internada em estado gravíssimo. A PRF anunciou, nesta quarta-feira (25/12), que afastou os agentes envolvidos na ação.
Ponto a ponto do decreto federal
O teto do decreto federal sobre o uso da força policial dá ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a competência para editar normas complementares, além de financiar, formular, implementar e monitorar ações relacionadas ao tema.
O ministério vai oferecer capacitações sobre o uso da força para os profissionais de segurança e, em até 90 dias, deve editar a portaria detalhando os procedimentos.
Confira abaixo os pontos centrais do decreto:
— Não discriminação: profissionais de segurança pública devem atuar de forma não discriminatória, sem preconceitos de raça, etnia, cor, gênero, orientação sexual, idioma, religião, nacionalidade, origem social, deficiência, situação econômica, opinião política ou de outra natureza;
— Uso da força: texto estabelece que o recurso de força “somente poderá ser empregado quando outros recursos de menor intensidade não forem suficientes para atingir os objetivos legais pretendidos”;
— Uso de arma de fogo: instrumento será sempre “medida de último recurso” e deverá ser restrito aos profissionais devidamente habilitados.
O texto também estabelece que não é legítimo o uso de arma de fogo contra:
– pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros;
– e veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros.
Se o uso da força resultar em ferimento ou morte, a ocorrência deverá ser detalhada nos termos que serão elaborados pelo Ministério da Justiça.
Colaborou Juliana Arreguy