Foto: Mauricio Tonetto / Governo RS
Governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite 11 de novembro de 2023 | 13:47
Eduardo Leite caminhava em São Paulo com o namorado, Thalis Bolzan, na mesma época em que seu primeiro mandato como governador do Rio Grande do Sul (2019-2022) se aproximava da segunda metade. Ainda era início de relacionamento, mas um prazo se impunha, como o político gosta de recordar.
O filiado ao PSDB tinha se colocado a meta de não deixar o cargo sem antes revelar sua homossexualidade, um passo até então considerado por muitos perigoso, mas ao mesmo tempo corajoso.
Leite recomendou a Thalis que tratasse de deixar os parentes cientes de sua orientação sexual (o pai ainda não sabia), porque era questão de tempo até ele próprio “sair do armário”, como se diz popularmente, e tornar pública a relação.
Nada disso era mais segredo para a família do governador.
O resto da história se desenrolou, em boa parte, diante dos olhos do país.
Na tarde de 1º de julho de 2021, Leite gravou uma entrevista remota para ser exibida naquela noite no “Conversa com Bial”, da TV Globo, antecipou-se a qualquer pergunta de Pedro Bial sobre o tema e lançou: “Eu sou gay”.
As três palavras tinham, naquele momento e contexto, múltiplos significados.
O gaúcho, hoje com 38 anos, rompia um tabu da política brasileira, mas também era cotado para se candidatar à Presidência, processo que tomaria forma em novembro, com ele disputando contra João Doria, então governador de São Paulo, as prévias para escolher o postulante tucano ao Planalto.
O país já vislumbrava uma eleição polarizada entre Jair Bolsonaro (PL) e Lula (PT), num clima de guerra cultural, com as questões de gênero levadas ao debate pelo grupo do ex-presidente sob um prisma de discriminação. A fala de Leite seria politizada, era inescapável. E assim se mantém.
Nos bastidores, sobrevivem discussões sobre um eventual cálculo do gaúcho, com menções a oportunismo, jogada eleitoreira e desespero por visibilidade. Tudo é negado. As especulações são perpetuadas por integrantes do partido quando falam sob anonimato. Publicamente, só elogios.
A primeira vez que Leite teve sua imagem projetada nacionalmente foi nos idos de 2012, aos 27 anos, quando se popularizou na internet com a fama de “prefeito gato de Pelotas”, a cidade onde nasceu e que habita o imaginário popular, de modo preconceituoso, como terra de homossexuais.
Leite manteve a privacidade, mas não forjou uma personalidade heterossexual, embora tenha se envolvido com mulheres até se deixar relacionar com um homem pela primeira vez, aos 25 anos.
Ouviu piadinhas ao longo da vida e, a cada eleição, voltava o fantasma de ver a questão explorada por adversários. Numa das vezes, correu a internet uma foto de Leite na praia ao lado de um homem identificado como seu companheiro. Era, na verdade, um de seus irmãos.
A decisão de se abrir foi precedida de conversas com amigos que sabiam de sua vontade de mirar a Presidência, como o apresentador Luciano Huck (que também ventilou uma candidatura) e o publicitário Nizan Guanaes. No círculo íntimo, o assunto era tratado sem melindres.
Quando a produção de Bial agendou a participação no programa, o jornalista já sabia da intenção. Leite tinha para si que, quando concretizasse o anúncio, deveria fazê-lo na televisão. De preferência, em um espaço amistoso e respeitoso. O programa já tinha interesse em recebê-lo, e tudo se encaixou.
Restou, contudo, uma celeuma. A jornalista Consuelo Dieguez tinha acabado de publicar na revista Piauí uma extensa reportagem sobre o governador que continha a informação da homossexualidade e reproduzia frases atribuídas ao político, em sintonia com as proferidas por ele a Bial.
No programa, o tucano declarou que nunca tinha falado sobre o assunto até então, o que Consuelo rebate. A repórter, uma das mais respeitadas da publicação, esperneou na época e ainda hoje, procurada pela Folha, critica o governador por ter, na visão dela, omitido que a afirmação não era totalmente inédita.
Em resumo, é uma controvérsia sobre “furo”, o jargão jornalístico para informação dada em primeira mão.
Confrontado com a queixa, Leite também demonstra incômodo, nega ter adiantado a revelação à revista Piauí e diz ter falado a verdade no programa. Consuelo sustenta que o tema da homossexualidade foi conversado entre eles e que informou o entrevistado de que isso constaria no texto. Ela optou por evitar destacar o assunto nas páginas, sob o argumento de naturalizá-lo.
“Foi o oposto do estardalhaço que ele fez no Bial”, diz, sem disfarçar o aborrecimento.
No dia seguinte à entrevista na Globo, a revista decidiu deixar sua reportagem aberta para não assinantes no site. A edição impressa já tinha indo para as bancas, segundo a autora, que relata ter enviado um exemplar para Leite e sua assessoria no dia da gravação com a Globo, feita em São Paulo.
A própria emissora antecipou o burburinho naquele 1º de julho. Uma notícia no site do jornal O Globo, horas antes de ir ao ar o papo com Bial, reproduziu recortes da conversa, algo atípico. No intervalo do Jornal Nacional, uma chamada da atração também destacava o testemunho.
A repercussão, como esperado, foi tremenda. Leite e sua equipe dizem que os ataques em redes sociais foram minoria e que o apoio prevaleceu. Depois, viriam ofensas homofóbicas do bolsonarista Roberto Jefferson e comentários de duplo sentido de Bolsonaro, a quem tinha declarado apoio em 2018.
Fábio Bernardi, marqueteiro do gaúcho nas campanhas a governador e nas prévias tucanas, diz que não participou das discussões que precederam a entrevista a Bial nem calculou uma estratégia, mas sabia do desejo de Leite de trazer a questão à tona antes de encerrar o mandato.
Para o publicitário, as acusações de uso eleitoreiro são desmentidas pelo risco a que Leite se expôs. “Se ele pensasse eleitoralmente, o risco maior era de perder, e não de ganhar, no Rio Grande do Sul”, diz. Leite acabou não concorrendo ao Planalto, mas à reeleição no RS -algo que ele chegou a prometer que não faria.
No PSDB, a história deu margem a muito disse me disse.
Tucanos que fecharam com o gaúcho nas prévias dizem que a revelação pouco antes da disputa fratricida foi, na verdade, uma vacina. Um grupo próximo a Leite acreditava que detratores acabariam manipulando de forma negativa a questão pessoal do adversário, que já era conhecida nos bastidores do partido.
A divisão profunda que marcou as prévias vencidas por Doria dá até hoje o contorno da desavença tucana, com aliados do paulista manifestando certa resistência à ascensão de Leite, que preside o PSDB e ainda busca trilhar o caminho ao Planalto. O paulista, por sua vez, se desfiliou e largou a vida pública.
Poucos tucanos ligados a Doria afirmam que o movimento de Leite foi positivo -a maioria, apesar de admitir que o gaúcho ganhou fama, avalia que a repercussão foi ambígua e que o governador passou a ser cobrado a apresentar uma lista de serviços à causa LGBTQIA+, que era tímida.
Neste ano, sob o comando de Leite, o PSDB encomendou uma pesquisa nacional sobre a imagem do partido e incluiu uma pergunta sobre a possibilidade de o eleitor votar em um candidato abertamente homossexual. Os resultados não foram tornados públicos.
Leite, em entrevista à Folha de S.Paulo em agosto, disse que o tema figurou ao lado de outros como privatizações, drogas e aborto. “Não é uma questão eleitoral específica para ver a chance do Eduardo, mas para fazer uma análise comportamental, uma visão do eleitor.”
Falando sobre a importância de provocar avanços civilizatórios, refletiu: “Se você pergunta se o Brasil está preparado para ter um presidente gay, acho que, na verdade, a gente tem que fazer o Brasil estar preparado”.
Leite também optou por um jogo de palavras na entrevista a Bial, quando falou: “Sou um governador gay, não sou um gay governador. Tanto quanto [Barack] Obama nos Estados Unidos não foi um negro presidente, foi um presidente negro. E tenho orgulho disso”.
A escolha dos termos foi desaprovada na época pelo ex-deputado Jean Wyllys (hoje no PT, ex-PSOL), também gay. Para ele, as frases de efeito reforçavam “o estigma e a negação da identidade”.
Wyllys voltaria à carga contra Leite em 2023, num episódio simbólico de como o assunto passou a acompanhar a trajetória pública do governador. O petista usou a sexualidade do rival para atacá-lo pela decisão de manter colégios militares no estado, após medida de Lula na direção oposta.
Leite, que hoje em dia pode caminhar livremente com o namorado Thalis pelo Palácio Piratini, a sede do governo gaúcho, acionou o Ministério Público apontando homofobia. Em setembro, a Promotoria denunciou Wyllys à Justiça pelo crime de injúria, e o petista afirmou que o tucano usou litigância de má-fé.
Joelmir Tavares e Carolina Linhares / Folhapress