Role para ler A vida de um jogador de futebol interrompida por leptospirose, uma doença transmitida por ratos.
O casal de idosos que espera, em uma casa sobre o esgoto, por um pouco de água que, quando chega, normalmente é insalubre.
O cadeirante de 80 anos que vive sozinho em um barraco na favela, conformado com tão pouco, que só tem um balde para chamar de penico.
As crianças das palafitas que estão atrasadas na escola porque ficam doentes com frequência.
Eles são os rostos por trás das estatísticas do Brasil sem saneamento básico que ninguém vê ou finge que não existe porque é sujo, feio e fedido.
Gigantepela própria imundiceFalta de saneamento no Brasil mata e prejudica educação de crianças do Oiapoque ao Chuí
Isadora Teixeira e Igo Estrela30/03/2024 5:00, atualizado 30/03/2024 5:15
Seja de alvenaria ou de madeira, no asfalto, no rio ou no morro, as casas brasileiras são o retrato do mesmo cenário de descaso pelo governo, do Oiapoque ao Chuí. Segundo os dados do Censo 2022, divulgados no fim de fevereiro de 2024, 102,7 milhões de brasileiros vivem com algum tipo de privação de saneamento básico.
Isso significa que quase metade da população não tem acesso a abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, descarte correto do lixo ou drenagem das águas pluviais. Apesar do avanço nos últimos anos, o serviço mais distante da universalização é a coleta de esgoto, alcançando 62,5% da população brasileira. O percentual de cidadãos atendidos era de 44,4% em 2000 e de 52,8% em 2010.
É difícil acreditar que em 2024 há pessoas que, por causa da ausência do Estado, precisam criar gambiarras com mangueiras e usar baldes para abastecer com água a cozinha e o banheiro. Com o objetivo de mostrar essa realidade cruel, o Metrópoles percorreu 11.228 quilômetros de avião, carro, barco e ônibus de norte a sul do país.
Tão grande quanto a extensão do país é a desigualdade entre quem tem acesso aos serviços básicos e quem vive sem eles. O Brasil contemporâneo sem saneamento tem endereço: os bairros pobres onde a maioria dos moradores são negros e pardos. Esse grupo representa 55% da população brasileira, mas 68,6% deles vivem sem solução de esgotamento sanitário adequado.
Enquanto para 153 milhões de brasileiros o destino da urina e das fezes não é uma preocupação, para 49 milhões de cidadãos (24,26%) a solução para se livrar dos dejetos é uma fossa rudimentar, um buraco, uma vala ou, simplesmente, jogá-los direto no rio ou no mar. Todas essas opções, usadas por 24,6% da população brasileira, são consideradas inadequadas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab).
Jogar excrementos no mar é uma prática antiga. Anotações sobre a vida no Rio de Janeiro durante o século 19, reproduzidas no livro Lixo – A Limpeza Urbana Através dos Tempos, do professor e pioneiro da coleta seletiva no país Emílio Eingenheer, contam histórias de como homens escravizados chamados de tigres eram humilhados ao carregarem barris cheios de dejetos até a praia e, no meio do caminho, sujarem-se quando os frágeis tonéis de madeira não aguentavam o peso.
A falta de saneamento básico é um marcador da desigualdade territorial e social do Brasil. As consequências de uma vida em meio ao esgoto e sem água segura para beber são um ciclo vicioso para as famílias às margens dos serviços básicos. Mais suscetível a doenças, essa população, ignorada pelos governos, encontra mais dificuldades para estudar, conseguir um emprego melhor e, finalmente, ter a oportunidade de encontrar um lar atendido pelas redes gerais de água e de coleta de esgoto.
Rio de Janeiro (RJ)Na rua, na chuva ou numa casinha de sapêAs regiões sem coleta de esgoto e com acúmulo de lixo atraem ratos, que transmitem pela urina a leptospirose, uma doença silenciosa e que pode ser fatal. A enfermidade matou Guilherme Silva Valentim, 15 anos, em fevereiro de 2023, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O jovem jogador de futebol foi infectado dentro de casa, quando a água da chuva misturada com esgoto irrompeu a porta e inundou todos os cômodos do pequeno apartamento onde vivia com os pais e o irmão mais velho, na noite do dia 7 de fevereiro.
Arquivo Pessoal
Jovem jogador de futebol foi infectado dentro de casa
Valentim, como o promissor jogador era chamado pelos amigos, nasceu e cresceu na região. Ele morava em um dos apartamentos no térreo do segundo bloco do condomínio. À frente, no primeiro prédio, reside seu avô. Era da janela do apartamento do patriarca da família que o menino via o Azulão, campo de futebol do bairro que fica do outro lado da rua, e sonhava em um dia viver do esporte.
A rua e a vala de esgoto separam a janela do campinho de futebol onde o menino treinava quando criança para transformar o sonho em realidade. Ele começou a fazer escolinha com 6 anos e passou pela base de times como o Grêmio e em projetos sociais como o Street Boys e, por último, o Instituto Luz. Mas aquela vala na frente de casa, que até então era só um obstáculo na rotina de Valentim, transportou a doença que tirou a vida dele.
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“Os ratos vêm do canal e também saem pelas duas caixas de esgoto no condomínio”, conta a mãe de Valentim, Andréa de Souza Silva, 36 anos. A leptospirose foi avassaladora. Valentim começou a reclamar de dor de garganta no sábado, 18 de fevereiro, foi para o hospital quatro dias depois, na Quarta-Feira de Cinzas, e morreu na madrugada seguinte. A missa de sétimo dia ocorreu na data em que Valentim faria 16 anos.
Andréa disse que o filho demorou para ser atendido. Em um período de 24 horas, o adolescente teve hemorragia e sua pele ficou inchada e amarela como a mãe nunca tinha visto antes. “É um descaso. Qual é a prioridade, senão a vida humana? O atendimento foi péssimo”, revolta-se. Ela lamenta que não existe vacina nem conscientização sobre a doença vinculada à falta de saneamento.
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Andréa faz questão de contar a história da morte do filho para nenhuma mãe passar pela mesma situação
A mãe de Valentim se dispôs a abrir a casa e contar a dramática história da família porque quer alertar sobre os riscos da leptospirose, doença que ficou sumida do noticiário nos últimos anos diante de emergências de saúde como a pandemia de Covid-19 e a epidemia de dengue.
“A população não é educada sobre os cuidados para evitar leptospirose. Por isso, todas as vezes que eu tiver oportunidade, vou falar da doença. Quero que as pessoas conheçam os riscos e os sintomas”, conta.
O ciclo do saneamento básicoOs vídeos salvos pela mãe eternizaram as palhaçadas do adolescente, que fazia todos rirem com as dancinhas e piadas durante as reuniões familiares em datas comemorativas e feriados. Além das imagens, Andréa guarda os uniformes de times de futebol tão preciosos para Valentim, que era flamenguista. “O sonho dele era ser jogador de futebol. Vivia para isso. Se ele estivesse de castigo e ficasse sem a bola de futebol, fazia uma bolinha de papel e jogava no quarto. Se eu tomasse, ele fazia embaixadinha de chinelo. Futebol era o amor da vida dele.”
Só depois que Valentim morreu e virou notícia nacional é que Andréa diz ter visto o governo agir contra os ratos da região. “Depois que ele faleceu, a prefeitura deu veneno para os ratos. Diminuiu. Antes, nunca vi fazerem isso”, conta.
O Brasil registrou 258 mortespor leptospirose em 2023 e 3.128
casos da doença em todo o país.
“Ninguém deveria morrer de leptospirose hoje. Em geral, morre-se de leptospirose porque o diagnóstico é tardio e o acesso ao antibiótico é demorado”, afirma a presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Onocko.
O caso fatal de Valentim é a comprovação de que a falta de saneamento básico é um problema de saúde pública. O Brasil registrou 128.912 internações e 1.493 mortes causadas por doenças associadas à falta de saneamento em 2021, segundo dados do DataSUS.
A pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Adriana Sotero explica que a leptospirose é transmitida pela urina do rato, mas há outras patologias relacionadas à ausência de saneamento básico que são perigosas à saúde humana, como diarreias, dengue e febre tifóide, causada pela bactéria Salmonella.
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Adriana Sotero, da Fiocruz, explica os perigos para a saúde quando o saneamento básico não funciona nas áreas urbanas
“A água contaminada com esgoto sanitário contém coliformes. As doenças feco-oral são a principal causa da morte ou de internação em crianças menores de 5 anos”, diz a pesquisadora.
As doenças decorrentes da falta de saneamento não estão relacionadas apenas à contaminação por água suja. “Existem enfermidades transmitidas por outros vetores. A dengue ou a Covid, por exemplo, podem ser associadas à ausência de abastecimento, uma vez que se a pessoa não tiver condições de lavar a mão constantemente e fazer hábitos de higiene ela tem chance de contrair vírus com maior gravidade e frequência”, pontua Adriana.
O efeito trágico para a vida desses milhares de brasileiros doentes pesa no bolso de todos. As despesas com saúde relacionadas às enfermidades por falta de saneamento chegaram a R$ 54,8 milhões no Brasil em 2021.
Óbitos e casos de doençasligadas à falta de saneamento básico no Brasil
ÁGUA POTÁVELEM FALTANo alto do Morro Dona Marta, na zona sul do Rio de Janeiro, o barraco de Rosalina Moreira Dias, 86 anos, tem uma vista privilegiada para o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor, alguns dos mais famosos cartões-postais do Brasil. Mas a beleza à frente, com a abundante água do mar que banha o Rio, não significava nada para a octogenária, que completava cinco dias sem água potável na tarde de novembro de 2023, quando a sensação térmica chegou a 60ºC. A Cidade Maravilhosa já não é mais a mesma que Rosa encontrou décadas atrás, quando chegou vinda de Jerônimo Monteiro, interior do Espírito Santo, carregando nada mais que três filhos e a esperança de uma vida melhor.
“Quando eu cheguei, tudo era mata virgem. Não tinha casa igual vocês estão vendo. Era só barraquinho de pau. Mas tinha água para tudo. Agora não tem”, lamenta Dona Rosa, que mora em um barraco com mais 10 pessoas da família. Ela conta que paga a conta de água mensalmente, mas, mesmo assim, o abastecimento falha com frequência.
Mas mesmo a população que está ligada à rede geral de água não tem garantia de abastecimento contínuo necessário para uma vida digna. Escovar os dentes todo dia, lavar louça, roupas ou apertar a descarga com frequência são algumas das atividades que 51,1 milhões de brasileiros (23,9% da população) foram impedidos de fazer diariamente por irregularidade no fornecimento de água, em 2022, de acordo com o estudo A Vida Sem Saneamento. O Plansab considera que as paralisações no fornecimento significam atendimento precário à população.
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Dona Rosa chega a ficar cinco dias sem abastecimento e precisa se virar para conseguir dar banho nos netos
“Passo mal para caramba. Quero tomar um banho para refrescar e não tem água”, reclama Dona Rosa. Naquela tarde em que o Sol castigava o povo da favela, o pouco que sobrou na caixa d’água, após cinco dias sem abastecimento, a octogenária usou para dar banho no bebê da casa e se refrescar. E acabou.
A família de Dona Rosa compra garrafa d’água para beber e fazer comida, mas, para todas as outras necessidades do dia a dia, eles precisam esperar a água chegar pelos canos.
No gogó e nos grupos de WhatsApp, o ativista local e guia turístico Thiago Firmino, 42 anos, convocou os moradores do Morro Dona Marta a protestarem contra a Águas do Rio, concessionária responsável pelo abastecimento de água na região e em 27 municípios fluminenses. Ele desce o morro, que conhece como a palma da mão, passando pela casa de Dona Rosa, convencendo os cidadãos a participarem da manifestação que pararia naquele fim de tarde duas faixas da avenida que separa o morro das ruas de Botafogo, bairro nobre da capital.
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Thiago Firmino mobiliza a comunidade do Morro Dona Marta para que lute a fim de que o saneamento chegue até o local
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A tubulação não chega para quem mora no topo ou no pé do morro
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A população faz protestos constantes para tentar regularizar a distribuição de água
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Os moradores precisam se virar para conseguir abastecer as suas casas de água
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O esgoto no Morro Dona Marta é aberto e passa pelas vielas até chegar à rua de entrada
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No Rio de Janeiro, é possível ver valas abertas por toda a cidade até perto do Estádio Maracanã
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As tubulações de esgoto são vistas por toda a cidade: de lagoas até….
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… a beira da praia de Ipanema, um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro
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Na zona sul, a tubulação de esgoto desemboca entre as praia de Ipanema e do Leblon
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“Uma coisa é falar de desabastecimento no conforto do ar-condicionado. Sabe o que é ter uma senhora acamada dentro de casa tomando banho de água da mina? Vocês não têm noção disso”, falou Thiago, por telefone, a uma atendente da concessionária, tentando explicar a realidade do morro para quem é de fora.
No meio do caminho entre o pico da favela e o asfalto de Botafogo, mora Manoel Ferreira da Penha, de 80 anos. A diabetes lhe tirou a perna direita, obrigando o idoso a viver em uma cadeira de rodas. A kitnet dele fica na lateral das escadarias do Morro Dona Marta. A minicasa tem uma pia, fogão, geladeira e cama. Ao lado de onde dorme, o aposentado posicionou, debaixo de uma cadeira de banho, o balde que ele usa como banheiro. Ele faz as necessidades ali e depois joga no vaso sanitário, que fica em um cômodo separado, com um degrau alto demais para um deficiente.
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O idoso mudou-se há 20 anos de São Benedito, no Ceará, para o Rio de Janeiro. Há três dias sem receber água em casa, afirma que a situação é ruim, mas que já está acostumado. “A água é assim: tem mês que funciona direitinho, mas tem mês que falha. Às vezes o abastecimento chega um dia e no seguinte não aparece. O serviço nunca opera direito”, diz. A voz mansa e as poucas palavras sinalizam que o idoso se conformou em viver sem o básico e não tem mais condições de protestar por uma vida mais digna, dependendo dos vizinhos para ajudá-lo. “Eu tô sozinho, vou levando a vida assim mesmo, então não sinto mais nada.”
No morro onde falta água, o esgoto também é precário: sai das casas e corre pelas valetas de cimento rumo à cidade embaixo. “Até hoje, o nosso sistema de saneamento é arcaico. Você não anda na zona sul do Rio de Janeiro e vê excrementos na rua com mosquito e bicho”, disse o ativista Thiago.
Em outro ponto do Rio de Janeiro, uma água suja, resultado da mistura de esgoto com restos de lixo, desce pelo canal do Rio Joana, enquanto uma multidão caminha apressadamente em direção ao estádio mais famoso do país para assistir ao clássico Brasil e Argentina pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2026. O Brasil atrasado passa ao lado do Maracanã.
Indicadores mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), de 2022, revelam que apenas 52,2% do esgoto produzido é tratado. Significa que aproximadamente cinco mil piscinas olímpicas de excremento in natura são despejadas diariamente na natureza.
Esse índice ainda é baixo no país porque o serviço é caro e pouco atrativo à iniciativa privada, segundo o integrante do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) e doutor em Engenharia de Construção Civil e Urbana pela Universidade de São Paulo (USP), Ricardo Moretti. “A empresa recebe para coletar o esgoto não importa se ela limpa a água ou não. Por que os empresários vão acrescentar um processo que piora a rentabilidade financeira?”, destaca.
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O esgoto a céu aberto é um perigo para a saúde da comunidade e pode afetar até o rendimento escolar das crianças
No mundo em que a água é cada vez mais escassa, surge a urgência de reutilizar a água para atividades do dia a dia. “Existe uma tendência no mercado cada vez maior de reaproveitamento dessa água do esgoto, não necessariamente para potabilizar – como a Califórnia e Cingapura já fazem –, mas para finalidades industriais e lavagem de equipamentos, de pátios e de vias, por exemplo”, diz o chefe do Departamento de Engenharia Sanitária e Meio Ambiente da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Marcelo Obraczka.
Obraczka coordenou o projeto de um aplicativo apresentado em 2023 para permitir que os interessados em adquirir água de reuso, mais barata que a água potável, saibam onde há recurso disponível em estações de tratamento de esgoto.
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Marcelo Obraczka, da UERJ, acredita que há maneiras de reaproveitar a água tratada do esgoto
“Lembrando que, se eu não estou lançando o esgoto no corpo hídrico e estou reutilizando uma parte, deixo de lançar poluição na natureza”, enfatiza o professor da UERJ.
Leia aqui a resposta da
Águas do RioO abastecimento de água e a coleta de esgoto em 27 municípios do Rio de Janeiro é de responsabilidade da Águas do Rio, concessionária que deu lance de R$ 2,2 bilhões e venceu o leilão dos serviços, em 2021.
A concessionária afirma à reportagem que São Gonçalo, onde Valentim morreu por causa da leptospirose, tem problemas históricos de falta de saneamento. A empresa diz que “já reformou e modernizou as três estações de tratamento de esgoto: ETEs Apolo, Catarina e São Gonçalo”.
Segundo a Águas do Rio, o esgoto de São Gonçalo será utilizado para a produção de água de reuso a fim de abastecer o polo petroquímico Gaslub. “Além disso, o município está incluído no projeto de implantação de coletores de esgoto que, nos próximos três anos, vai criar um cinturão de proteção na Baía de Guanabara”, pontua.
Em relação ao Morro Dona Marta, a concessionária afirma que “o abastecimento é irregular e os problemas pontuais são prontamente atendidos”. Sobre o esgoto, a Águas do Rio informa que não foram identificados vazamentos durante a vistoria na região e diz que os moradores não são cobrados com tarifa pelo serviço.
A empresa afirma que há “ocorrências constantes de obstrução de galerias pluviais, com extravasamentos, devido ao lixo acumulado” na comunidade. “A concessionária promove ações de conscientização sobre o descarte adequado dos resíduos sólidos”, afirma.
A Águas do Rio informa que investiu mais de R$ 2 bilhões em dois anos de atuação nos 27 municípios fluminenses nos quais atua. “Mais de 980 km de redes de água e 122 km de redes de esgoto foram instaladas e/ou substituídas. Aproximadamente 270 mil pessoas tiveram água tratada e encanada em suas casas, pela primeira vez”. Segundo a empresa, “aproximadamente 83 milhões de litros de água contaminada com esgoto, que caíam diariamente nas praias oceânicas e na Baía de Guanabara, agora são direcionados para tratamento”.
“A Águas do Rio reafirma o compromisso de universalizar o acesso aos serviços de água e esgoto até 2033, de acordo com o Marco Legal de Saneamento e o Contrato de Concessão, com 99% da população atendida com fornecimento de água tratada e 90% com coleta e tratamento de esgoto”, conclui.
Oiapoque (AP)A vidanas palafitasO efeito da ausência de saneamento básico na saúde da população é pior na Região Norte do país, onde a incidência é de 13,24 internações causadas devido a doenças ligadas à falta do fornecimento de água ou da coleta de esgoto por 10 mil habitantes, de acordo com dados mais recentes do DataSUS, de 2021.
No Amapá, onde há água de sobra no Rio Amazonas, falta fornecimento dentro da casa dos moradores. O estado tem a pior cobertura de esgoto e rede geral de água: apenas 12% (24.239) das moradias têm acesso aos serviços, segundo o Censo 2022. Macapá, a capital, é a cidade com os piores índices de saneamento básico entre os 100 maiores municípios do Brasil.
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O Ranking de Saneamento 2023 é elaborado pelo Instituto Trata Brasil, organização social formada por empresas do setor, a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), e considera fatores como o atendimento de água e esgoto, tratamento de esgoto e investimento médio no setor por cidadãos.
A capital amapaense tinha 89,45% da população sem coleta de esgoto e 63,4% não era abastecida com água potável. O desempenho pífio está diretamente ligado ao baixo investimento no setor, de R$ 16,94 por pessoa. O valor está muito longe dos R$ 124,66 gastos por pessoa, em média, em São José do Rio Preto, no estado de São Paulo, cidade que ocupa o primeiro lugar no ranking, com 100% da população recebendo atendimento de água e 93,93% com acesso à coleta de esgoto.
Em Macapá, Raimundo Artemizie Moreira da Silva, 75 anos, e a esposa, Tereza Regina da Silva, 71, vivem um calvário todas as noites à espera daquilo que é de tão fácil acesso para milhões de brasileiros: a água.
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Casados há 54 anos, são acostumados com a companhia um do outro, na alegria e na tristeza. Mas, desde que deixaram o aluguel e se mudaram para o bairro Congós, eles têm vivido mais desgosto do que felicidade. “Ah, minha filha, a água? A gente passou a noite todinha acordado para pegar uma gota”, contou Regina à reportagem em uma tarde de novembro em que Macapá sofria com forte seca após estiagem que já durava 40 dias.
No momento em que o casal conversou com a reportagem, a residência estava sem água há nove dias. “O problema de abastecimento não acontece somente na minha casa. O vizinho também sofre com a falta de água”, conta Regina.
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Tereza precisa escolher as atividades diárias que irá executar porque a água não dá para se higienizar e cozinhar
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A comunidade joga urina e fezes na água que fica embaixo das casas, sem qualquer tratamento
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A água ao redor das casas não pode ser consumida: é suja e lotada de lixo
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As crianças ficam constantemente doentes devido à falta de saneamento básico e acabam se atrasando na escola
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O lixo está presente nas águas e também nos terrenos ao redor das casas
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O problema é da comunidade como um todo e não de uma residência ou outra
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As famílias estão doentes, por causa da falta de higiene
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O que cai da descarga também tem o mesmo destino da água do banho: vai para a parte de baixo das casas
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Além de escassa, a água que Raimundo e Regina esperam por dias não é potável. Eles vivem em uma casa de palafita, construção comum no Norte do Brasil feita de estacas de madeira elevada sobre áreas alagadas. A água para consumo chega até a residência por uma tubulação que passa debaixo da ponte, em meio à água parada misturada com lixo, urina e fezes que são jogadas ali diretamente das casas, sem qualquer tratamento.
O banheiro é dividido em dois cômodos pequenos no fundo da casa dos idosos. Um dos espaços tem uma ducha sem energia elétrica, que, nos últimos dias, tem servido só de decoração. Sem água nos canos, Raimundo e Regina tomam banho à moda antiga, com um balde e uma vasilha. Os pés ficam posicionados em cima de um tapete azul de plástico, entre duas tábuas distantes. Falta um pedaço de madeira no meio, propositalmente retirado para dar vazão à água e permitir que caia diretamente na área alagada debaixo da casa.
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O lavabo tem só um vaso sanitário e um balde de água usado para dar descarga. O que cai da descarga também tem o mesmo destino da água do banho: vai para a parte inferior da casa. “Por isso, a gente não toma essa água [que chega pelo cano]. Não pode tomar, é contaminada de tudo”, diz Regina.
“Por isso, a gente não toma essa água [que chega pelo cano]. Não pode tomar, é contaminada de tudo”
Tereza Regina, aposentadaQuando a bomba começa a fazer barulho indicando que a água está chegando, Regina corre para pegar os baldes e galões com o objetivo de enchê-los. A água que irá guardar pelos próximos dias será usada para lavar roupa, descarga, banho e limpar a louça. A água para beber e cozinhar é comprada.
Se a água demora muito para chegar, Raimundo faz um perigoso truque. As mãos enrugadas posicionam o “mangueiro”, uma espécie de mangueira improvisada, na bomba conectada à tubulação principal que abastece as casas da ponte. Com a boca, o idoso faz sucção para forçar a saída de um pouco de água suja. Mas é muito pouco mesmo: quando demonstrou à reportagem, a água jorrou por exatos 11 segundos.
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Além de escassa, a água que Raimundo e Regina esperam por dias não é potável
Raimundo tem machucados na boca que atribui à insalubridade da água. “É um sacrifício, meu amigo. Olha aqui como é que eu fico. E essa golfada que eu tomei agora de água com cloro e tudo? Isso é um martírio”, lamentou. Além dos machucados, conta o idoso, a água suja provoca diarreia.
Mas o que falta em termos de saúde e saneamento sobra em solidariedade no Congós. “Já passei mal. Meu vizinho comprou pílulas e, graças a Deus, melhorou. Nós, humildes, temos que nos juntar aos outros humildes.”
As casas mais próximas à rua tem acesso primeiro e “puxam” a água, quando ela vem. As do fundo raramente conseguem pegar e encher a caixa d’água, então, dependem da solidariedade dos vizinhos da frente, que guardam um pouco e fornecem aos mais distantes.
Na região onde falta água, sobra sujeira. A rua mais próxima é de terra, a poucos metros da casa de Raimundo e Regina, e tem esgoto a céu aberto. “Uma vez fiquei com medo dos urubus sentarem na minha cabeça”, conta Regina. Ela lembra que foi comprar pão e teve que apressar o passo para não ser atacada pelos animais atraídos pelo lixo.
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O Ministério Público do Amapá (MP-AP) acionou a Justiça contra os governos estadual e municipal para obrigá-los a levar saneamento básico e urbanização às casas nas palafitas. Em pelo menos três processos judiciais, a 4ª Vara Cível e de Fazenda Pública de Macapá determinou a apresentação de estudos para a infraestrutura urbana em bairros da capital do Amapá.
As chamadas áreas alagadas são de drenagem natural do Rio Amazonas e, em tese, locais de preservação ambiental que não poderiam ser ocupados. “Passam-se anos, ninguém toma decisão do que fazer com essas pessoas, se elas ficam ou se serão removidas. Com o tempo, essas famílias passam a demandar energia, água, esgoto e mobilidade. A justificativa do poder público para não prover esses serviços é justamente o fato de elas estarem em áreas de ocupação irregular ou de preservação permanente”, explica o titular da Promotoria de Defesa de Urbanismo, Habitação, Saneamento, Mobilidade Urbana, Eventos Esportivos e Culturais, do MP-AP, promotor de Justiça André Araújo.
“O governo precisa negar oficialmente o direito à mobilidade, energia, internet, água; ou assumir que essas famílias vivem em áreas que já foram antropizadas e urbanizar tudo. Mas o poder público, muitas vezes, não faz uma coisa nem outra”, enfatiza o promotor.
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O promotor de Justiça André Araújo luta para que o governo ofereça serviço básico às comunidades que vivem sobre as palafitas
Leia aqui a resposta da
CSA EquatorialA CSA Equatorial, concessionária de saneamento no Amapá, informou que regiões das palafitas, como o bairro Congós, “têm histórico de deficiência na prestação de serviços básicos, em razão da ausência de políticas públicas voltadas à regularização desses espaços por parte do poder público e ausência de projetos de expansão e melhoria dos serviços de água para atender a população”.
“Desde a chegada do Grupo Equatorial ao Amapá, que administra a concessão dos serviços de água e esgoto, está sendo realizado um trabalho intensificado de melhoria dos serviços para as famílias que residem nessas áreas. No bairro do Congós, por exemplo, a CSA iniciou o Projeto Pontes Pelo Futuro, que realizou 1.767 ligações novas, beneficiando mais de 6.291 pessoas. É uma ação que tem sido executada com o apoio das lideranças comunitárias da região”, afirma.
Segundo a concessionária, “o trabalho tem extrema importância, pois proporciona a oferta de água tratada às famílias que estavam vulneráveis a contrair doenças de veiculação hídrica, tais como diarreia, hepatite e cólera, em razão da ausência de fornecimento pelo sistema público ou o consumo ocorrer de forma irregular, como, por exemplo, por meio de ligações clandestinas e uso de fontes alternativas que não têm controle de qualidade”.
“Ainda em relação à universalização dos serviços de abastecimento de água no Estado do Amapá, levamos em consideração os prazos pactuados no âmbito do contrato de concessão, que seria de 11 anos para água e 17 anos para esgoto. Importante destacar que esses prazos são contados a partir da assunção desses serviços pela CSA, em julho de 2022, e que cada município possui seu prazo específico, levando em consideração a estrutura existente”, diz.
Saneamentoprejudica educaçãoO Amapá é o estado do país que faz fronteira com a Guiana Francesa. A porta de entrada do Brasil pelo Norte se parece mais com os fundos de uma casa abandonada. Uma viagem de nove horas de carro saindo da capital amapaense termina em Oiapoque, última cidade do Brasil naquele rumo. Na cidade, assim como em outros municípios do Norte, é comum pessoas morarem em casas de palafitas, sem qualquer acesso ao abastecimento regular de água e à coleta de esgoto.
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As fezes, a urina e a água usada para lavar louça e roupas são descartadas no igarapé embaixo das casas
No bairro Russo, uma comunidade se desenvolveu sobre as palafitas. Ali, a água para consumo doméstico vem de poços amazonas cavados na terra mais perto das regiões ribeirinhas.
As fezes, a urina e a água usada para lavar louça e roupas são descartadas no igarapé embaixo das casas, assim como em Macapá, a capital. A sujeira por lá fica, causando mau cheiro e ameaçando a saúde da população.
Quando uma forte chuva chega, a água suja sobe e os moradores precisam driblar o esgoto para evitar coceira na pele e infecções
Julieth Pantoja da Silva Santos, 28 anos.Igo Estrela/Metrópoles
Julieth se lembra de quando era criança e brincava até de madrugada com os amigos naquela água. Agora, ela não deixa as próprias filhas terem contato com o igarapé que se transformou em esgoto a céu aberto. “Se a gente entrar na água quando tá cheia, dá alergia e coceira. Antigamente, não. A gente tomava banho até meia-noite, uma hora da manhã. A água era bem limpinha. A gente se alimentava dos peixes, mas agora não temos coragem”, disse a mulher, que mora no Russo há 16 anos. Hoje, vive com o marido e as três filhas no bairro.
No barraco da família de Julieth em Oiapoque, a água para beber é retirada de um poço tapado precariamente com uma rede e uma telha para impedir a entrada de bichos. O pai, Douglas Brito Barbosa, 30 anos, faz o que está ao alcance para tentar proteger as mulheres da família de doenças. Mas o esforço não é suficiente para matar as ameaças invisíveis que, vira e mexe, instalam-se no organismo das crianças.
As duas meninas mais velhas, Kauany e Samilly Kamilly, de 9 e 6 anos, estão atrasadas um ano na escola porque não vão à aula quando estão doentes, o que ocorre com frequência, segundo a mãe. “Elas têm que faltar a escola até fazer o tratamento certinho para poder voltar, porque a escola não aceita crianças com vômito, diarreia e febre”, conta Julieth.
A baixa escolaridade está intimamente ligada à precariedade do saneamento. Um estudo divulgado no final de 2023 mostra que 19,2% da população brasileira com falta de acesso à rede geral de água nunca foi à escola ou frequentou as aulas por apenas um ano. Outra parcela significativa, de 17,9%, tem apenas o ensino fundamental incompleto. E 13,7% das pessoas sem abastecimento de água potável fizeram apenas o ensino fundamental.
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Por outro lado, o índice de cidadãos com ensino superior completo em privação de acesso à rede geral de água é de apenas 4,3%. Os dados são do estudo A vida sem saneamento: para quem falta e onde mora essa população, do Instituto Trata Brasil em parceria com a EX ANTE Consultoria Econômica e o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS). O levantamento considerou as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continuada Anual (PNADC), produzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2013 e 2022.
A presidente do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto, disse que onde não há acesso ao saneamento básico, a escolaridade média é consequentemente inferior, de aproximadamente quatro anos, porque as crianças ficam mais doentes, se desestimulam no aprendizado e têm desenvolvimento pior. “Onde se tem acesso ao saneamento no Brasil, a escolaridade média é de 9,18 anos e onde não tem é de 5,31 anos”, informou.
“Quando as crianças têm episódios sucessivos de diarreia e doenças associadas à falta de saneamento, elas perdem a energia que seria gasta no aprendizado para tentarem sobreviver a essas doenças recorrentes. Das 128 mil internações associadas às doenças de veiculação hídrica que o Brasil teve em 2021, 45 mil foram em crianças de 0 a 4 anos e 70 mil internações em jovens de 0 a 19 anos”, indicou Luana.
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Kauany está atrasada um ano na escola porque não vai à aula quando tem vômito, diarreia e febre
Menos instruídossão os que mais sofrem sem saneamento
As meninas sem banheiro em casa têm atraso escolar médio de três anos, segundo o estudo Saneamento e a Vida da Mulher Brasileira, da BRK Ambiental, divulgado em 2022.
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As irmãs Jhule, de 2 anos, Rayla, de 9, e Júlia, de 11, usam como banheiro um buraco escondido em um apertado módulo de madeira, em Macapá, capital do Amapá. Todos os dias da semana, por volta das 11h, a mãe das meninas pega a bicicleta e vai com Jhule, a filha mais nova, buscar as duas mais velhas, Rayla e Júlia, nas escolas onde estudam. A rua é de chão onde elas moram, no bairro de Curiaú Mirim. Pouco mais à frente até tem asfalto, mas o lixo acumulado próximo das calçadas denuncia que o saneamento básico está em falta independentemente da pavimentação.
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Com as três filhas reunidas, Jaqueline Souza Rodrigues, 28 anos, volta para casa e encontra com o marido, o auxiliar de estoque Robson Pureza Pinheiro, 33. A família almoça a comida preparada por Jaqueline e bebe a água armazenada em um garrafa PET.
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Jhule, de 2 anos, passa mal com frequência porque a qualidade da água de casa é ruim
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Jaqueline tenta se virar para oferecer água limpa às três filhas
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Macapá é a capital com um dos piores índices de saneamento do Brasil
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A capital amapaense tinha 89,45% da população sem coleta de esgoto e 63,4% não era abastecida com água potável
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Jaqueline busca as filhas na escola de bicicleta e cruza por muito lixo no meio do caminho
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O lixo acumulado próximo das calçadas denuncia que o saneamento básico está em falta independentemente da pavimentação
A água consumida pela família vem do poço cavado na frente de casa, que está secando e já não consegue mais suprir os moradores com frequência. “A gente liga a bomba, faz um barulhão e não puxa água”, conta a mãe. As roupas sujas se acumulam na parte de trás da casa, porque não é mais possível lavar sempre que necessário devido à falta de abastecimento.
A família reside nesse barraco há aproximadamente dois anos. Antes, morava em uma outra casa no mesmo bairro, mas a água insalubre que consumiam provocava problemas de saúde. “A água vinha suja. Começou a dar diarreia, vômito e tivemos que comprar galões de água”, diz Jaqueline. Na residência atual, só tem um cômodo para os cinco membros da família, a solução para a falta de água será afundar mais o poço. Os prestadores de serviço cobraram R$ 250 para cavar cada metro mais profundo, o que a família não pode pagar. Robson planeja fazer ele mesmo o trabalho.
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Cloro e água sanitáriaSem resolver o problema pela raiz e fornecer rede geral de água potável a todos, o governo distribui hipoclorito de sódio para que os moradores da região tentem desinfectar a água dos poços cavados no próprio terreno, muitas vezes próximos das caixas de esgoto improvisadas.
A mulher costuma colocar cinco gotas da solução, contida em um frasco do Ministério da Saúde e fornecida pelo postinho de Macapá, em um garrafão de 20 litros de água. É só isso que a família tem para tentar garantir o mínimo de saúde para as três crianças. “O que Deus manda, a gente aceita”, diz.
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Sem fornecer rede geral de água potável a todos, o governo distribui hipoclorito de sódio para que os moradores da região tentem desinfectar a água
Jaqueline, de Macapá, e Julieth, de Oiapoque, estão separadas por 580 quilômetros de distância, não se conhecem, mas têm em comum a falta de acesso à rede geral de água e à coleta de esgoto.
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Segundo Julieth, a distribuição do desinfectante pelo governo não é regular. “Às vezes, quando o pessoal da saúde vem, eles dão aquele cloro para a gente usar. Nós colocamos na água, mas como faz muito tempo que não passa por aqui a gente bebe do jeito que dá”, conta.
O gosto do hipoclorito de sódio, anunciado aos moradores como alternativa para consumir uma água menos perigosa à saúde, é forte e incomoda, segundo Cheyly Carliane Alves da Silva, 43 anos, que mora em uma casa de alvenaria na rua com asfalto já esfarelado perto das palafitas onde vive Julieth, em Oiapoque. Ela prefere colocar um copo pequeno de água sanitária no poço de casa, que fica instalado muito próximo da caixa de fossa, onde é descartada a descarga do vaso sanitário.
Durante a entrevista, gravada em uma tarde de novembro de 2023, Carliane começou a passar mal. Queixou-se de tontura e febre. Depois, vomitou. Ela disse que sabe dos riscos de contaminação devido ao fato de o poço da água que usa para beber ficar perto da fossa de esgoto. “A maioria das enfermidades, de vômito e diarreia, essas doenças, são por causa da água de poço, que está contaminada e não tem tratamento”, aventa.
Irmão de Julieth, Edikson Frank Pantoja dos Santos, 31 anos, também mora em uma casa de palafitas em Oiapoque. Em novembro de 2023, ele foi diagnosticado com malária após sentir febre, ter desmaio e surgirem feridas no rosto. A doença, transmitida pela picada da fêmea do mosquito do gênero Anopheles, é um problema mais comum na região amazônica. Pelo menos 80% dos casos estão concentrados em 30 municípios com condições socioeconômica precárias, moradias inadequadas, saneamento básico deficiente e falta de acesso às medidas preventivas, como mosquiteiros impregnados de inseticida e medicamentos antimaláricos, de acordo com o Ministério da Saúde.
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Edikson Frank pegou malária devido à falta de higiene na região onde mora
Após receber o diagnóstico da doença, Edikson diz não ter esperanças de melhorias na qualidade de vida, com abastecimento de água por rede geral ou coleta de esgoto. “Sempre diz que vai mudar e nunca muda. Então, a gente acostuma e deixa levar.”
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A Prefeitura Municipal de Oiapoque não retornou o contato da reportagem até a publicação deste texto.
A pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Adriana Sotero diz que o hipoclorito de sódio é importante para desinfectar a água e evitar doenças perigosas como tifo e cólera, mas não deve ser usado como política pública de longo prazo, pois há riscos para a saúde devido ao consumo do produto em concentrações elevadas.
“A Agência Internacional de Pesquisas em Câncer, da Organização Mundial da Saúde, relata que o trihalometano e o ácido haloacético são produtos secundários da desinfecção, que contêm altas concentrações e causam riscos às pessoas, podendo provocar desenvolvimento de câncer. Então, há que se ter cuidado na quantidade de cloro que vai ser aplicado na água para fazer a desinfecção”, pondera.
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As consequências da falta de saneamento básico para a população brasileira vão além das doenças infectocontagiosas que ameaçam os mais vulneráveis, segundo a presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Onocko.
“Se a gente cruzar os dados da falta de água tratada com outros tipos de causas de mortes – violenta, cardiovascular ou materna –, veremos que nessas regiões a incidência também é maior, porque a falta de saneamento no Brasil de hoje é mais um marcador da desigualdade territorial e social que a gente vive”, explica Rosana.
Os contrastes do Brasil, rico e pobre ao mesmo tempo e no mesmo lugar, deram origem ao termo “Belíndia”, há 50 anos. Em 1974, o economista brasileiro Edmar Bacha criou a classificação para traduzir a desigualdade do país de tamanho continental, no qual a parte rica se parecia com a Bélgica e a pobre era comparada à Índia. Dez anos atrás, em 2014, a expressão foi atualizada para “Italordânia” pela revista britânica The Economist, porque o Brasil abastado estava mais parecido com a Itália e o mais carente foi comparado à Jordânia.
“A desigualdade regional brasileira é impressionante. Em uma grande cidade, que não é pobre, como o Rio de Janeiro, basta subir o morro para encontrar as mesmas coisas que no Norte do país”, destaca a presidente da Abrasco.
O Brasil
sem saneamentoBrasil: 102,7 milhões de cidadãos com algum tipo de privação de saneamento em 2022
As privações de saneamento básico são falta de: acesso à rede geral de distribuição de água tratada; regularidade adequada no fornecimento de água tratada; disponibilidade de reservatório para armazenamento de água potável; banheiro de uso exclusivo do domicílio; e acesso à rede geral de coleta de esgoto.
Brasília (DF)Neste país,lugar melhor não há?O retrato do Brasil desigual está justamente em Brasília, a capital do país. A renda média mensal do Lago Sul, região nobre, é de R$ 10.979. A 36 quilômetros de distância, encontra-se a maior favela do Brasil, o Sol Nascente, onde a renda per capita é de R$ 915, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A comunidade do Sol Nascente fica a 30 quilômetros de distância da Praça dos Três Poderes, símbolo da política brasileira. Com 32.081 domicílios, a favela de Brasília ultrapassou a Rocinha, no Rio de Janeiro, que tem 30.955 residências, segundo o Censo 2022.
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A comunidade do Sol Nascente fica a 30 quilômetros de distância da Praça dos Três Poderes, símbolo da política brasileira
“Na região, apesar de haver rede pública de esgotamento sanitário, ainda existe esgoto a céu aberto e grande quantidade de água parada, proveniente de cozinhas e lavanderias, que trazem risco significativo de dengue e outras doenças derivadas”, explica o professor visitante da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Ricardo Moretti.
Segundo o professor, que fez uma vistoria no Sol Nascente em julho de 2023, a região encontra-se perto do Rio Melchior e apresenta “situação crítica”. “Teoricamente, estão disponíveis as redes públicas. O que falta é gestão, manutenção e o esforço complementar para viabilizar as ligações domiciliares com a rede secundária de esgotos”, pontuou, em artigo publicado em agosto de 2023.
O ano de 2024 começou caótico em outra localidade da capital federal, por um outro problema associado ao saneamento básico: o manejo das águas pluviais. Moradores da Vila Cauhy, no Núcleo Bandeirante, tiveram as casas invadidas pela água após forte chuva cair em Brasília, no dia 3 de janeiro. O córrego Riacho Fundo, que passa pelo setor, transbordou.
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Os moradores da Vila Cauhy tiveram as casas invadidas pela água após forte chuva cair em Brasília, no dia 3 de janeiro
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Segundo George Eugênio, o esgoto misturado à água da chuva entrou nas casas e causou coceira nas crianças
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Na região, apesar de haver rede pública de esgotamento sanitário, ainda existe esgoto a céu aberto
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George Eugênio precisou limpar sua casa após água da chuva misturada com esgoto entrar nela
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As saídas de esgoto estão bloqueadas em vários pontos do bairro causando caos na comunidade
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Brasília é a cara da desigualdade: enquanto muitos vivem com saneamento básico, a poucos quilômetros, existem pessoas sem água para lavar as mãos
George Eugênio da Rocha abrigou crianças que ficaram desalojadas. O morador diz que o esgoto misturado à água da chuva, que entrou nas casas e obrigou os moradores a retirá-la, causou coceira. Depois do temporal, ficaram para trás os rastros de lixo e dejetos.
Leia aqui a resposta da
Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb)Em nota, a Caesb informa que a Vila Cauhy é uma área em regularização atendida com rede de água potável. Os esgotos domésticos, porém, são lançados em fossas sépticas, cabendo a cada morador a responsabilidade pelo esvaziamento do equipamento. “A Companhia está preparando um estudo de concepção para coleta dos esgotos da região, que deverá ser concluído em 90 dias”, diz.
Em relação ao Sol Nascente, a Caesb afirma que “todas as áreas regularizadas já foram atendidas, somando mais de 26 mil ligações de água e mais de 20 mil ligações de esgoto”. “Todas as demandas futuras de saneamento serão atendidas conforme o avanço dos processos de regularização de áreas ainda não contempladas”, pontua. “Desde 2019, a companhia investiu R$ 60 milhões em obras de saneamento no Pôr do Sol e Sol Nascente.”
Segundo a Caesb, “os vazamentos de esgoto na rua são causados por mau uso da rede, provocados pelo descarte irregular de lixo, óleo, areia ou sacos plásticos na rede de esgoto, que também causam mau cheiro e incômodo à própria comunidade”. “Ao verificar vazamentos de água ou de esgoto na rua, entre em contato conosco pelo 115, site ou aplicativo”, conclui a companhia.
Chuí (RS)Neste rancho de gaúchotem pousada e chimarrãoA falta de saneamento impede a transformação da vida de famílias por meio dos estudos e ameaça a saúde da população. São pessoas com CPF e contribuição para o país, mas sem direito constitucional à saúde e ao meio ambiente equilibrado.
O saneamento básico no Brasil encontra dificuldades para avançar plenamente e alcançar todos os cidadãos porque é encarado como um negócio, e não como um direito, segundo o professor Moretti.
“Desde o Planasa [Plano Nacional de Saneamento, criado em 1971], os municípios foram induzidos a aderirem às companhias estaduais, e as companhias estaduais passaram a ter uma ótica de negócio para o saneamento. O que uma companhia vislumbra? É ter equilíbrio financeiro. Essa postura de entender saneamento apenas como negócio, não como investimento para saúde pública, fez com que ficassem buracos no saneamento onde as pessoas têm pouco dinheiro”, diz Moretti.
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A vida sem acesso à rede de água ou à coleta de tratamento de esgoto atinge brasileiros de todo o país. O mesmo problema do povo de Oiapoque existe no Chuí, do outro lado do Brasil.
Chuí, no Rio Grande do Sul, é o último pedaço de terra do Brasil antes do Uruguai. As nações são separadas por uma avenida lotada de comércio que vende toda a sorte de produtos em real, dólar ou peso uruguaio. Do lado de cá, a rua tem churrascaria, lojas de roupas, cosméticos e sapatos. A avenida tem asfalto no coração do Chuí, mas é só adentrar nas pequenas ruas da cidade fronteiriça para perceber que o progresso só existe onde tem turista.
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A pequena cidade ao extremo sul que tem o título de município com maior número de moradores estrangeiros. Eles eram 37,7% dos seis mil habitantes em 2010, segundo o Instituto Brasilerio de Geografia e Estatística (IBGE). Àquela época, Beatriz Costa Y Costa, 58 anos, já tinha se mudado de Rocha, no Uruguai, para o Chuí, no Brasil.
Beatriz mora com o marido brasileiro em uma casa que fica numa rua sem asfalto com uma vala de esgoto, com água suja da cozinha e do banho, que passa bem em frente ao portão. “Aqui era pior. É porque a gente limpou um pouco. Isso para mim é um desastre”, opina sobre a falta de saneamento. O cheiro de podridão piora conforme a temperatura sobe. A fim de evitar ratos, os vizinhos se uniram para colocar veneno.
Recentemente, cortaram a rua para instalar uma tubulação de água. Os vizinhos achavam que era o retorno dos IPTUs em forma de obra para melhoria da região, mas a intervenção era particular, cujo destino era uma casa mais abastada, segundo os moradores. “Por ser fronteira e ter um volume grande de importação, aqui entra muito dinheiro. Mas o governo não melhora em nada a vida da população. Se vocês voltarem daqui a dois anos, vão encontrar a mesma situação”, diz Ernesto Casanova, 49 anos, que mora na cidade há 10 anos.
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Apesar do dinheiro que circula por Chuí, há esgoto aberto por todos os lados da cidade
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As famílias com renda alta colocam a tubulação de esgoto por conta própria
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A desigualdade social fica evidente quando o assunto é saneamento básico
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Gislaine Ávila diz que a região não tem coleta nem tratamento de esgoto e que o fornecimento de água é irregular
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Como a cidade é na fronteira com o Uruguai, a maioria dos moradores de Chuí são estrangeiros
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A vida sem acesso à rede de água ou à coleta de tratamento de esgoto atinge pessoas em todo o país
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A “eles”, o professor de física refere-se aos governantes, que têm o dever de investir o dinheiro dos impostos em retorno aos moradores. Gislaine Ávila, 44 anos, esposa de Ernesto, diz que a região não tem coleta nem tratamento de esgoto e que o fornecimento de água é irregular. “Cada residente faz seu próprio poço para dejetos. E o abastecimento está vinculado à questão do fornecimento de energia e de luz. Quando há quedas – e há constantemente –, em nenhum momento somos informados sobre o motivo. E, cada vez, tem menos pressão na torneira”, relata.
A Prefeitura Municipal de Chuí não retornou o contato da reportagem até a publicação deste texto.
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Essa é a realidade que o Marco do Saneamento, regulamentado em 2020, quer transformar drasticamente até o fim de 2033. Faltam nove anos para atingir a meta de 99% da população com abastecimento de água e de 90% dos cidadãos ligados à rede de coleta e tratamento de esgoto.
Historicamente, o Brasil investe aproximadamente R$ 20 bilhões em saneamento básico. Para atingir as metas na próxima década, o dispêndio financeiro deve chegar a R$ 44,8 bilhões anuais, segundo a presidente do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto.
O Marco do Saneamento, sancionado em 2020, facilitou a privatização dos serviços do setor. O Amapá leiloou, em 2021, a concessão do saneamento básico e obteve R$ 930 milhões pela outorga paga pelo Consórcio Marco Zero, das empresas Equatorial Participações, Investimentos S.A. e SAM Ambiental e Engenharia. A promessa é de que, até 2032, a cobertura de fornecimento de água passe dos atuais 38% para 99% no Amapá. Em relação ao esgoto, a cobertura sairia de 8% para 90%, no período de 18 anos.
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A Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) do Rio de Janeiro também realizou leilão para a exploração da distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto, em 2021, dividido em quatro blocos, e arrecadou mais de R$ 24 bilhões.
“A gente vai cumprir as metas? Eu diria que depende de cada estado, de cada região do país. Onde os indicadores já estão melhores e onde a solução já está caminhando, a gente tem grandes perspectivas de atingir a meta. Mas, infelizmente, nas regiões onde esses indicadores ainda são muito baixos e os investimentos também são muito baixos, a gente não tem como pensar em solução de curto prazo”, afirma a presidente do Instituto Trata Brasil.
Integrante do Ondas, Ricardo Moretti diz que a universalização prevista por meio das privatizações dos serviços de saneamento básico nos estados e municípios não têm considerado a área rural, cidades pequenas e favelas, onde há menos circulação de dinheiro.
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O problema de saneamento básico está presente no Brasil do Oiapoque ao Chuí
“A universalização que estão falando não é necessariamente a universalização na ótica da saúde pública. Se olhar os contratos da iniciativa privada, não se fala da área rural, que é onde está o grande déficit. Tampouco fala firmemente de como vai viabilizar o atendimento nas favelas e nas comunidades, outra área que tem muita carência, nem como vai tratar os pequenos municípios”, pontua.
Enquanto o Brasil não garante saneamento básico para todos os cidadãos, Raimundo, da casa de palafitas em Macapá, pega a cadeira de plástico e leva até a varanda, onde passa as horas sem saber quando terá uma vida mais digna. “A gente espera a água e ela não espera a gente. Nós temos a obrigação de esperar por ela. E ela também não diz se vem ou se não vem. É muito difícil isso.”
CEOLilian TahanDIRETORA-EXECUTIVAPriscilla BorgesEDITOR-CHEFEOtto ValleCOORDENAÇÃO E EDIÇÃOOlívia MeirelesREPORTAGEMIsadora TeixeiraREVISÃOJuliana El AfioniEDICÃO DE ARTEGui PrímolaDESIGNYanka RomãoEDIÇÃO DE FOTOGRAFIADaniel FerreiraMichael MeloFOTOGRAFIAIgo EstrelaCOORDENAÇÃO DE VÍDEOGabriel FosterCAPTAÇÃO DE VÍDEOIgo EstrelaANIMAÇÃOTauã MedeirosNARRAÇÃO André EstevesTECNOLOGIAItalo RidneyMateus MouraSaulo Marques