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Festa de São João no Recôncavo Baiano: liturgia cívica, religiosidade e populações rurais

Nos meses de junho e julho, atos cívicos e religiosidade se entrelaçam em cidades do Recôncavo Baiano como Cachoeira e São Félix. Na noite do dia 24 de junho, dia de São João, o carro alegórico da Cabocla – que fica na cidade de São Félix durante todo ano -, é conduzido pelas autoridades políticas, civis e eclesiásticas daquele município através da centenária Ponte D. Pedro II até a cidade vizinha para participar do desfile que percorrerá as principais ruas históricas de Cachoeira, pois no dia 25 de Junho a cidade se torna a Capital da Bahia, em homenagem ao seu papel nas lutas pela independência. Durante o trajeto até a tenda onde ficará estacionado o carro alegórico da Cabocla para o desfile do 25 de junho, as ruas estão adornadas com bandeirolas, fogueiras acesas nas portas das casas, fogos de artifícios estão sendo “tocados”. Das janelas das suas casas e sobrados, o cortejo é saudado pelos moradores das duas cidades; um considerável número de pessoas acompanha esse momento, que integra os ritos cívicos com forte apelo popular no contexto da festa de São João. A cabocla e o caboclo são os dois símbolos mais importantes nas festas que homenageiam os heróis que lutaram na Guerra de Independência do Brasil na Bahia. A guerra teve início em 25 de Junho de 1822 e terminou em 2 de Julho de 1823 período que coincide com os festejos joaninos e que em muitos terreiros de candomblé são reverenciados os donos da terra, os caboclos. Enquanto as filarmônicas e fanfarras executam a sua música no desfile; os alabês tocam nos terreiros em reverência aos donos da terra. Além de Salvador, muitas cidades que participaram ativamente das campanhas militares a exemplo de Santo Amaro, Saubara e Itaparica mantém as suas esculturas que são reverenciadas como forte elo entre o presente e o passado. Entretanto, a relação com o período das festas joaninas não tem a mesma força como em Cachoeira e São Félix por conta das datas em que são evocadas à memória como 14 de Junho, em Santo Amaro e 7 de Janeiro, em Itaparica. Já em Saubara ocorre a Levada da Cabocla, conhecida como alguns pelo nome de Brígida e os seus festejos cívicos ocorrem no mês de julho em que alguns terreiros também reverenciam os seus orixás e caboclos. Apesar dessa circularidade cultural: uma espécie de liturgia cívica presente no mês de junho, os festejos joaninos têm a sua própria dinâmica, é inegável que influencia e é influenciado pelas comemorações da Independência da Bahia, mas, ao mesmo tempo, possui a sua própria dinâmica indissociável das práticas culturais das populações rurais e interioranas portadoras dessa memória social festiva. Um pouquinho de história Diz Fernão Cardim em seu livro Tratados da terra e gente do Brasil, que reúne textos escritos entre 1583 e 1601: “Três festas celebram esses índios com grande alegria, aplauso e gosto particular. A primeira é as fogueiras de São João”. A estratégia de catequização dos povos indígenas empreendida pelos padres jesuítas permite perceber como as celebrações católicas foram se estabelecendo no Brasil a partir do culto a São João, santo muito popular na Península Ibérica e que ao longo do tempo iria se consolidar como a mais tradicional festa em todo nordeste brasileiro. Ao longo dos anos, os festejos joaninos se organizaram em um espaço rural associado a um período de muito trabalho que envolve o plantio e a colheita, especialmente do amendoim e do milho, no Recôncavo Baiano. Essas lavouras cujo manejo ocorre em pequenas propriedades e com o trabalho familiar, se convertem em renda aos camponeses e toda essa fartura é celebrada no mês de junho: época de agradecer a São João com muita festa. “Na noite de São João nós saíamos para as casas dos vizinhos, o pessoal ficava conversando em volta da fogueira até tarde. Minha mãe prepara bolos de milho e de massa puba. Meu pai ia para (a cidade de) Cachoeira, na feira da rampa, comprar cana mirim, os fogos também”, é o que nos conta Alzira Teixeira Santana Conceição, 57 anos, da comunidade de Laranjeiras, zona rural localizada entre os municípios de Governador Mangabeira e Muritiba. Celebrações Em seu importante trabalho, Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, recolheu esses versos de uma antiga cantiga que corroboram com as memórias das pessoas mais velhas: Se São João soubesse Quando era o seu dia Descia do céu a terra Com prazer e alegria Essa alegria descrita nos versos pode ser sintetizada na frase: “São João passou por aí?”, pois representa a experiência vivida no âmbito comunitário, da reunião da parentela, dos amigos e da vizinhança. Segundo, Maria de Lurdes Vitoriano dos Santos, de São José do Itaporã, zona rural localizada a 10 km da cidade de Cruz das Almas: “os festejos juninos sempre foram maravilhosos; na zona rural sempre fizemos muita festa, era como se fosse um “arrastão” chegavam várias pessoas em nossa casa, muita comida, muita bebida, licor para quem gosta de licor é uma tradição maravilhosa, completa. Ritmos, cores, aromas e sabores O casamento da roça que faz parte das apresentações das quadrilhas juninas ao som do forró pé de serra, aconteciam de fato? Sim. Pelo menos, é o que nos informa Câmara Cascudo (1954:480), até 1912, casamento na fogueira junina era sacramento. Já que estava todo mundo reunido ao pé da fogueira parece que o momento era mais que propício para celebrar algo tão importante na vida de duas pessoas e das suas famílias: é bom lembrar das muitas brincadeiras de adivinhações e, principalmente, simpatias em busca de um amor, características do mês de junho que começa com a devoção ao não menos popular Santo Antônio: santo casamenteiro. E as comidas? Além do amendoim, da laranja, da cana-mirim, o que falar do milho e das iguarias que ele se transforma: bolo, pamonha, canjica, lelê, mingua. O licor de jenipapo e maracujá, aquele feito em casa, para servir os compadres e comadres e os mais chegados. Quando as ruas se enchem de bandeirolas e balões pelas mãos dos moradores em um mosaico de cores, é sinal de que ainda existem elementos de interação popular nos festejos juninos que lembram a sua origem comunitária. A (re) invenção das tradições Segundo um dos mais importantes pesquisadores sobre o tema, o Professor Dr. Jânio Roque Barros de Castro: “no passado as festas eram mais difusas do ponto de vista geográfico e espontâneas. O espaço protagonista eram as casas e o seu entorno imediato – a varanda, o terreiro; os festejos brincantes e dançantes também exerciam o seu protagonismo. As comidas típicas eram produzidas pelas pessoas e o samba de roda junino era composto de gente da própria comunidade.” Ao longo dos anos, a festa junina foi ganhando outras configurações. A expectativa em cidades como Cachoeira, Cruz das Almas, Santo Antônio de Jesus – apenas para ficar no Recôncavo Baiano – gira em torno da grade de programação. Para os mais jovens, um “São João bom” é o da cidade que trás os nomes dos artistas que estão fazendo sucesso no momento ou já estão consagrados para se apresentarem em grandes estruturas com palcos, camarotes e barracas padronizadas que transformam as ruas enfeitadas com balões e bandeirolas em um grande circuito festivo. Aluguéis de imóveis, venda de comidas típicas e o comércio de licor movimentam a economia. Algumas cidades costumam receber nos dias de festa uma quantidade imensa de pessoas, quase metade da população domiciliada no município. Praticamente, todos os setores produtivos e de serviços são mobilizados: dos panos de chita – desafio quem conseguir comprar um metro, em junho; até o segmento de transporte e hoteleiro, além dos trabalhadores informais de alimento, bebidas e artesanato. É assim, as práticas culturais são marcadas pela diversidade e riqueza de expressões em permanente diálogo no espaço e no tempo. As celebrações joaninas e as festas juninas de um modo geral são representativas desse aspecto estruturante da identidade nordestina brasileira. Que nós possamos manter vivo o espírito popular dessa festa sintetizado na frase: São João passou por aqui? E nesse contexto de comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil na Bahia possamos – quem sabe – refundar as bases que sustentam um projeto de nação capaz de alcançar a cidadania plena.

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