“Gosto muito de escrever, mas não sou escritora. Queimo tudo que escrevo e Waly (Salomão) brigava muito comigo por isso. De vez em quando eu dizia a ele ‘vem cá que eu vou queimar tudo hoje’. Queimo tudo, até porque adoro o lume e porque queimar eterniza, destrói, anula aquilo que já foi. O lume é uma renovação”. Foi assim, em 2015, em entrevista a este mesmo repórter, que Maria Bethânia falou sobre os textos que escrevia.
Provavelmente, nunca vamos saber o conteúdo daqueles textos. E os membros da Academia de Letras da Bahia – ALB – também não precisaram conhecê-los para eleger Bethânia como colega. Afinal, mesmo que nunca tenha tornado público o seu talento como autora, Bethânia é uma disseminadora das letras e presta imenso favor à língua portuguesa ao gravar composições de gênios como Chico Buarque e Caetano Veloso, ou ao recitar em seus espetáculos poemas de Fernando Pessoa, provavelmente seu poeta favorito.
Mas pudemos conhecer, finalmente, o talento de Bethânia como autora, quando ela leu o seu discurso de posse da cadeira 18, antes ocupada por Waldir Freitas Oliveira, professor de geografia e bacharel em direito, que morreu em 2021.
Bethânia mandou um recado aos conservadores, que ainda insistem que uma cantora não devia fazer parte de uma academia de letras: “Hoje é um dia especial, esta casa está recebendo em primeiro lugar uma mulher, está reconhecendo os poderosos laços entre música e literatura, está dignificando um trabalho que não se dá nos livros ou nas universidades, mas nos palcos, nos discos, no rádio, sem pouso, sem repouso, numa bela e mágica corda bamba como se a menina de Santo Amaro tivesse enfim realizado seu sonho: ser trapezista”.
No final da leitura , o presidente da ALB, Ordep Serra, registrou sua impressão: “Fico muito feliz e tenho a confirmação de que estamos recebendo não só uma grande cantora, mas uma mulher de uma sensibilidade lírica, poética extraordinária. E que enobrece esta casa e ela acabou de fazer um passeio pela literatura como poucas vezes ouvi”, disse.
Em família
Bethânia chegou por volta das 19h20 e foi conduzida por três colegas acadêmicas até o púlpito onde leu o seu discurso de posse. “As senhoras me guiam, porque não sei o caminho”, disse, bem-humorada, às companheiras, antes de desfilar com sua costumeira elegância e ser muito aplaudida pelos convidados.
Ao pegar o microfone, não conseguiu se desligar do seu principal ofício: “Teste! Um, dois! Cantora sabe fazer teste de microfone. Tá bem mesmo, o volume, tudo certo, posso começar?”, perguntou ao público. Lembrou-se de um resfriado recente, pigarreou, mas disse que fez esforço para ir à cerimônia e se sentia “honradíssima”.
Agradeceu aos colegas que a elegeram e fez questão de ressaltar o nome de Paulo Costa Lima, compositor e professor que tomou a frente na campanha pela eleição de Bethânia, em outubro de 2021. A cantora agradeceu a todos que estavam presentes, mas, muito mística, fez questão de agradecer também a entidades religiosas. “Meu agradecimento vai, acima de tudo, à autoridade máxima da Bahia, o glorioso Senhor do Bonfim”.
A todo tempo, Bethânia lembrou da importância da família para a sua formação intelectual. Falou do pai, que gostava dos sonetos de Artur de Sales, autor também do Hino ao Senhor do Bonfim, recitado em parte pela cantora durante o discurso. Elogiou a “linda” voz da mãe, Dona Canô, e se lembrou das marchinhas de Carmen Miranda, que cresceu ouvido.
“Como caçula, pude ouvir distraidamente todos os grandes compositores, cantores e cantoras do Brasil daquela época”, destacou. Mas foi quando falou de Caetano que o público mais demonstrou entusiasmo: “Caetano, meu irmão, acima de mim, me traduzia o que ele ouvia e minhas próprias escolhas. Caetano sempre foi meu guia e mestre do meu barco”, disse, em um dos momentos mais aplaudidos da noite.
E, claro, terminou cantando: “A Bahia: estação primeira do Brasil”, trecho de Onde o Rio é Mais Baiano, de Caetano Veloso.