InícioEditorialEconomia“O colorismo é uma ferramenta do racismo, uma tecnologia cultural de opressão”

“O colorismo é uma ferramenta do racismo, uma tecnologia cultural de opressão”

O escritor gaúcho Paulo Scott

Segundo autor brasileiro indicado ao International Booker Prize (o primeiro foi Raduan Nassar, em 2016, por Um Copo de Cólera), Paulo Scott prefere seguir focado no desafio contínuo de escrever bons poemas e boas histórias, para além de listas e premiações.

Autor de sete livros de poesia e seis livros de prosa, entre eles Marrom e Amarelo (traduzido em inglês com o título Phenotypes e concorrente ao prêmio), teve seu romance Habitante Irreal lançado na Alemanha, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e Croácia; e o Ainda Orangotangos, de contos, transformado em filme (leia mais sobre as obras premiadas do escritor nessas páginas).

Nessa entrevista, exclusiva para o CORREIO, ele fala sobre racismo, colorismo, humanismo e, claro, sobre os rumos que a literatura anda tomando, no Brasil e no mundo, no século 21.

Paulo, lembro da primeira vez em que te vi, aqui na Bahia, em Salvador, em um evento do grupo CORTE (formado pelos escritores Lupeu Lacerda, Lima Trindade, Sandro Ornellas e Wladimir Cazé) no Icba. Não lembro o ano com exatidão. Você havia lançado o Ainda Orangotangos. O que mudou na sua escrita até chegarmos a Marrom e Amarelo?
Foi o ano de lançamento da reedição do Ainda Orangotangos pela Bertrand Brasil, selo do Grupo Record. Lembro bem. Eu já tinha lançado o Voláteis, que agora foi reeditado pela Alfaguara. O que dizer? Penso que minha prosa se avizinhou mais da minha poesia, ficou menos inclinada a se acomodar dentro dos parâmetros das estruturas narrativas redondas, didáticas, bem resolvidas.

Recentemente, tivemos um vergonhoso episódio de racismo aqui na Bahia, envolvendo o escritor Jeferson Tenório (O Avesso da Pele). Em sua opinião, o que motiva esses discursos de ódio, esses ataques a escritores negros? Qual o modo mais combativo de reagir a eles?
Não me parece que um grupo que esteja planejando um ato de violência física, concreta, concertada, contra alguém vá mandar aviso. O ataque anônimo é sempre uma expressão de covardia e se dirige, invariavelmente, a pessoas que chamam atenção. Penso que esse tipo de ação intimidatória deve ser enfrentada – e o diálogo que a expõe como um ato de desespero e incompreensão, de frustração e impotência, deve ser mantido, estimulado, ampliado.

Marrom e Amarelo foi indicado ao The International Booker Prize, maior premiação  de língua não-inglesa do mundo. Nesse contexto de discursos de ódio, o que essa indicação representa para você como escritor?
A caminhada literária é mais complexa. Tudo é muito circunstancial, subjetivo, passageiro. Tento encarar (sempre com gratidão) como um momento de visibilidade do que produzo e também do que produzem outras escritoras e escritores, que, feito eu, teimam em escrever, em contar histórias que façam sentido e se aproximem de alguma perenidade. É um momento de notabilidade que opera sobretudo para o mercado, não é um centro definitivo validador do que merece atenção e do que não merece. Penso que essa indicação, cujo impacto no mercado editorial é inegável, é resultado direto do trabalho do meu editor inglês e sua equipe, é consequência do que foi plantado com a tradução do Habitante Irreal para o inglês lá em 2014. Não posso deixar de observar que, nesta edição do Booker Prize, as obras foram selecionadas muito mais pela originalidade e pelo vigor da linguagem empregada do que pelo tema em si.

A sua trajetória como escritor, para além do merecido reconhecimento do presente, tem também muita poesia. Qual lugar ela ocupa hoje em sua vida?
A verdadeira revolução da literatura brasileira atual está na poesia, quem acompanha de perto sabe. Na poesia, a linguagem está se renovando como nunca – e uma gama de novas subjetividades está revelando uma sonoridade, uma dicção, e um poderoso abalo geral, antes inimagináveis. Me defino como um leitor de poesia, a poesia me alimenta. Nada revela melhor o que está oculto. Nesse encontro de se encantar e perceber está toda a magia. Como eu já disse: se não houvesse editoras querendo publicar minha poesia, eu mesmo a publicaria. É dimensão essencial, e, sendo dimensão essencial, é o combustível da minha linguagem.

O colorismo é o tema central de Marrom e Amarelo. O que te levou a escrever esse livro? A explorar esse tema, tão caro pessoalmente para você, muito embora este não seja um relato autobiográfico?
O colorismo brasileiro, que para nós é um completo tabu, é, possivelmente, o mais cruel do mundo, porque é a expressão mais gritante de uma violência que só aconteceu no continente americano, onde a escravização de pessoas raptadas da África chegou a um patamar inédito de perversidade, uma perversidade que permanece até hoje. Penso que o colorismo é cenário para o romance, um cenário que para mim sempre foi incontornável. Somos um país doente, um país que precisa encontrar a cura da crueldade colonial. Aqui, os negros, somos, com certeza, mais de sessenta por cento. Não é racional, não é inteligente, em termos de nação, que pessoas de pele escura sejam condenadas sistematicamente à eliminação (incluo nesse espectro os policiais pardos e pretos, que são o braço-capataz dessa elite brasileira – esse um por cento que saqueia sem o menor pudor o país, uma elite podre, preguiçosa e homicida-suicida –, integrantes da polícia que mais mata e mais morre assassinada no mundo). O livro foi rascunhado em um poema que terminei de escrever aos 20 anos e está no meu primeiro livro de poesia, o Histórias Curtas para Domesticar as Paixões dos Anjos e Atenuar os Sofrimentos dos Monstros, faz parte da busca por boas histórias.

Considera que houve algum progresso real no modo como hoje os autores negros estão inseridos no mercado literário e no modo como estes são representados em narrativas ficcionais?
Sim, houve uma pequena revolução nos últimos cinco anos, algo que vinha se esboçando, mas que agora se afirmou. Para sempre? Penso que sim. Veja que mesmo em um cenário político tão adverso, esse momento de protagonismo crescente veio e se consolidou.

Nesse contexto, qual o papel, em sua opinião, da entrada dos movimentos negros, com suas pautas, no ambiente acadêmico?
O papel mais importante de toda a história desse país, nada será mais decisivo. Nessa presença de pessoas negras e indígenas nos espaços acadêmicos determinantes da compreensão do país, está a maturidade que os brancos tutores do desgraçado projeto civilizatório brasileiro tentaram a todo custo evitar. Nisso, a assunção do compromisso de luta contra o atraso do racismo brasileiro, um compromisso que deve ser ampliado, pelo governo federal fez diferença enorme. A esquerda deveria ter sido mais ousada. Se tivesse sido, a base social, tão excluída quando o assunto é educação e saúde, teria compreendido o que estava por trás do golpe político encabeçado por Michel Temer em 2016, o golpe político que levou o país a Jair Messias Bolsonaro, o pior presidente da história.

O colorismo, você diz, é também uma arma racista. De que modo essa arma se volta contra os negros? Em que medida afeta a afirmação da identidade e reforça preconceitos?
O colorismo é uma ferramenta do racismo, uma tecnologia cultural de opressão muito sofisticada, que divide, que estigmatiza, que desintegra a autoestima possível entre as pessoas negras. Somos um país negro, majoritariamente negro. Como podemos continuar submetidos ao olhar controlador do branco europeu? Só agora uma identidade recusada por um Estado Republicano que na sua fundação assumiu a tarefa de eliminar as pessoas negras começa a se expressar de maneira ampla e incontornável. E isso assusta. E não é de hoje. Veja o monitoramento e a repressão aos bailes negros no Rio de Janeiro durante a ditadura militar iniciada em 1964. Fala-se em morte dos ativistas brancos, mas a repressão aos corpos negros e indígenas, em termos de quantidade, naquele período, foi ainda pior. Não dá para explicar o colorismo brasileiro apenas replicando as análises realizadas nos Estados Unidos. Lá é o inferno, mas aqui, pela sofisticação, pela violência ampla, pela naturalização que ela produz, é um inferno ainda pior.

Além de escritor, você é advogado e foi professor de direito durante muitos anos. Como esses dois campos, o direito e a literatura, podem se conectar em meio à crise ética em que nos encontramos hoje em nosso país?
Tenho refletido sobre a ética da violência na literatura brasileira contemporânea. Para chegar a esse projeto, tive de aprofundar pesquisas e reflexões em torno da interdisciplinaridade entre direito e literatura. O direito é limite (e opressão), a literatura é o que enxerga (e se desdobra) além. Hoje, com esse governo perverso, essa onda de perversidade de impacto inédito, como não se podia imaginar anos atrás, o comportamento das instituições (incluo parte do Ministério Público e do Judiciário) está muito comprometido – levaremos anos para nos recuperar, por exemplo, da inércia do atual procurador geral da República –, é na linguagem da arte que a ética (e a mediação ética) se afirma. A literatura, e a produção literária contemporânea, faz parte dessa lente valiosa que o direito e a política não conseguem alcançar.

Entre direito e literatura, a seu ver, como estabelecer as bases de uma inclusão realmente democrática, ou como diz Achille Mbembe em seu artigo clássico, reinventar o humanismo, criar um pós-humanismo?
Tudo é linguagem e, num momento posterior, diálogo e ação. O direito brasileiro está envenenado desde sua origem porque é cúmplice (e promotor) da exclusão de pessoas (da esmagadora maioria das brasileiras e brasileiros), da morte, da destruição, da manutenção dos privilégios, das desigualdades. Democracia é dignidade a todas as pessoas. Se não formos todos tratados dignamente, não se alcançará paz, não se alcançará justiça, não se afastará o império do medo, não se alcançará felicidade. Essa é a base, é a dialética, que não conseguimos destravar.

O engajamento tem sido a trincheira de muitos autores hoje, muito em consequência do cenário que vivemos desde 2008. Como vê esse processo?
Sou um cidadão atento, que tenta se engajar, se posicionar. Não sou um autor engajado. Não acredito em arte politicamente engajada, em literatura engajada (acho até covarde essa postura de salientar, de afirmar, o valor da sua produção artísticas por ela ser engajada). A criatividade deve ser livre – a sua percepção é que pode (e deve) repercutir social e politicamente. São dimensões diversas; conexas, mas diversas. O poder, insisto, está da leitura e na dialética que acaba gerando.

Logicamente, você deve ter novos projetos na gaveta ou no prelo. Poderia nos adiantar alguns desses projetos? Em quais está envolvido agora?
Estou imerso na escrita do livro ensaístico Direito Antifascismo Brasileiro. Também estou envolvido com o livro de poemas A Luz dos Monstros e do romance Ninguém Rondonópolis (este é um policial de fronteira). Há textos para o cinema e o teatro também, mas prefiro não revelar.

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