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O único mecanismo de sobrevivência

Ouço Toulouse, canção de uma jovem inglesa chamada Billie Marten, e me deixo ser preenchido pela ternura. Não é uma letra alegre: há uma melancolia suave que a perpassa, a projetar em seus versos algo que não apreendo. Ainda assim, sinto o coração reconfortado, como se estivesse imerso num mar calmo de águas mornas. Do mesmo modo que estive no mar do Porto da Barra, no crepúsculo do penúltimo dia do ano passado.

Aproveitei a ligeira pausa no trabalho nas últimas semanas para ler bastante. E me vi diante de histórias que, mesmo bem díspares entre si, celebram o poder do amor. Tanto Lições, de Ian McEwan, quanto Aniquilar, de Michel Houellebecq, louvam em maior ou menor medida esse sentimento que um dia Leonard Cohen definiu como o único mecanismo de sobrevivência. Mesmo quando a nossa condição de mortais insiste em se intrometer. Afinal, é como escreve McEwan: “Tudo, em particular a vida, se desfaz.”

Houellebecq complementa: “Não fomos feitos para viver, não é? – Um pensamento realmente triste, ela parecia prestes a chorar. Talvez o mundo inteiro estivesse certo, pensou Paul, talvez não houvesse lugar para eles em uma realidade que tinham apenas atravessado com uma incompreensão temerosa. Mas tiveram sorte, muita sorte. Para a maioria das pessoas, a travessia era solitária do início ao final.”

A sorte a que Houellebecq se refere é justamente o companheirismo, a cumplicidade e a curiosa necessidade que duas pessoas sentem de permanecer juntas. Paul, personagem principal de Aniquilar, está prestes a se despedir do mundo com apenas 50 anos. Justamente nesse momento, a vida – até então uma enfadonha sucessão de horas – se descortina para ele em todo o seu tenebroso esplendor. Fazendo com que se dê conta tanto da nossa obscena brevidade quanto da profunda dádiva que é estarmos vivos.

Hoje completo 25 anos de casado. O sentimento que predomina é uma plenitude serena e um afeto caloroso. Há companheirismo, há cumplicidade e há sobretudo amor e humor. Uma proeza e tanto, numa época de casamentos desfeitos que nem lençóis em camas de hotel. Passamos por momentos tempestuosos e padecemos com renúncias, cobranças e incompreensões, como qualquer casal. Mas a caminhada foi, na sua maior parte, harmoniosa e guiada pela sensatez. E o principal: fizemos em conjunto a nossa obra-prima, materializada numa moça bonita, íntegra e feliz de 22 anos.

Às vezes, imagino outras vidas que não a minha, como no livro A Biblioteca da Meia-Noite, romance bobinho que me foi recomendado por um grande amigo. Ele fala de existências alternativas que poderíamos experimentar, caso nos fosse dada a oportunidade. Sabendo que cada encruzilhada na estrada leva a uma trilha diferente: aquela decisão profissional equivocada, um titubeio na hora errada, a palavra não dita ou mal compreendida que promove uma hecatombe.

Certa vez escrevi: “Um homem abriga em sua consciência muito mais do que uma vida. Ao lado da realidade, convivem em algum canto de nós, correndo em paralelo, as outras vidas que poderíamos ter escolhido. Jamais saberemos qual delas seria a ideal, até porque não existe vida ideal. Existem apenas esboços mal acabados, rascunhos de possíveis destinos aos quais nos levariam decisões tomadas em momentos cruciais da nossa existência ou apenas estímulos motivados pelo acaso.”

Experimento mentalmente algumas possibilidades. Poderia ser rico, poderia ter escrito romances e alcançado algum reconhecimento, poderia ter me estabelecido definitivamente em São Paulo, poderia ter me tornado um diplomata, poderia sobreviver com subempregos em Paris, poderia ter farreado muito e vivenciado as mais diferentes experiências esotéricas, psicodélicas, amorosas. Poderia, talvez, nem estar vivo.

Mas não trocaria a vida que tenho por nenhuma dessas alternativas. Por um único motivo: sou feliz, sou um homem feliz, como na canção de Silvio Rodriguez. Logo eu, que sempre me imaginei regido pelo signo da melancolia. Logo eu, que sempre gostei da cor outonal que as folhas ganham quando começam a morrer ainda nas árvores. Dos céus tomados por nuvens e do vento frio que chega do oceano.

Quando era mais novo, via com bons olhos a solidão. Gostava da introspecção, das viagens desacompanhado pelo país, de poder abandonar uma cama alheia antes do amanhecer. Curioso como as coisas mudam. O solitário virou um sujeito gregário, que sente falta da filha que passa uns dias longe com o namorado. E que gosta de estar ao lado da mulher que escolheu. Contemplando cidades, compartilhando vinhos e comemorando um prosaico aniversário de casamento.

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