A sensação de alívio ao pisar em solo brasileiro, no dia 13 de novembro de 2023, com parte da família, depois de viver os piores dias da guerra em Gaza e perder tudo que havia conquistado, não durou muito para o palestino Ramadan Abdou. O medo dos bombardeios ainda acompanha o homem que luta, desde então, para retirar do meio do conflito três filhos pequenos, de 6, 7 e 8 anos de idade.
Ramadan veio para o Brasil no primeiro voo de repatriação, organizado pelo governo federal. Ele foi incluído na lista de 32 pessoas por ser casado com uma brasileira e ter uma filha que havia nascido no Brasil. O palestino, a esposa e a bebê de menos de um ano, à época, desceram a escada do avião presidencial, na Base Aérea de Brasília, e receberam as boas-vindas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Passado um ano, o sentimento de esperança e gratidão de Ramadan permanecem, mas o desespero diário, diante da situação dos filhos em meio a guerra, é inevitável. As três crianças, Ansharah, Alaa e Khaled, vivem hoje em uma tenda improvisada em Deir al-Balah, região central de Gaza, submetidas a fome, sede, frio e sem acesso à escola. Elas estão sob os cuidados de uma tia, única pessoa da família que restou.
O pai relatou ao Metrópoles que os três filhos são de outro casamento e não puderam vir com ele no avião por serem palestinos de origem, sem vínculo ou nacionalidade brasileira. Ramadan relata, no entanto, que o governo do Brasil teria prometido fazer o possível para trazê-los para perto dele, o que não ocorreu até então. A mãe das crianças teve a casa bombardeada e morreu.
“Eu choro todos os dias, e meus filhos também. Eles estão morrendo de fome e não têm acesso a itens de necessidade básica. Eu apelo ao governo brasileiro e a todos que puderem me ajudar para retirar meus filhos o mais rápido possível de Gaza. Eles estão vivendo um contexto de total calamidade. Não há ninguém por eles. Só minha irmã, que também é uma menina”, diz Ramadan.
“Bombardearam perto deles há dois dias”
O pai recebe notícias dos filhos quase que diariamente, via comunicação mantida com a irmã. Em fotos recentes enviadas por ela, as duas meninas Ansharah e Alaa, e o menino Khaled, aparecem espremidos, dormindo no chão de uma tenda, em um local nitidamente improvisado. “Há dois dias, houve um bombardeio bem perto de onde eles estão”, conta Ramadan.
Além das informações via telefone, o pai fica atento, ainda, ao noticiário para saber o que acontece na região. Esse hábito, no entanto, virou motivo de tensão e intranquilidade. “Fico assistindo o tempo todo, mas tenho medo de ver os nomes dos meus filhos como mártires da guerra e receber a pior notícia de todas. Eles vivem momentos de terror diário. É como se eles estivessem em um filme de ação”, descreve.
À medida que o tempo passa, a apreensão de Ramadan aumenta. A chegada do inverno rigoroso a Gaza, nos próximos meses, e a falta de perspectiva sobre a melhora da situação das crianças, que vivem uma total carência de roupas, cobertores e suprimentos básicos, não lhe saem da cabeça. “Meu coração treme pelos meus filhos”, diz ele.
Mais de 50 mortes na família
Desde que começou a guerra atual entre Israel e Hamas, em outubro do ano passado, Ramadan perdeu dezenas de pessoas da família. O total, segundo ele, ultrapassa 50 mortes, de primos, filhos de primos e demais parentes. O conflito significou uma ruptura brusca na vida do palestino. Ele, a esposa brasileira, que chegou grávida ao Brasil, e a filha recém-nascida, Eileen, moravam em Khan Yunis, no sul de Gaza.
Antes da guerra, Ramadan trabalhava em uma empresa de câmbio. “A vida era muito boa em Gaza, os lugares, eu tinha um carro, uma casa, mas tudo foi destruído pelos bombardeios”, conta ele. Hoje, o palestino vive com a família no bairro Cambuci, em São Paulo, perto da Mesquita Brasil. Após a chegada ao país, a esposa deu à luz o filho mais novo, Ian, que está com sete meses.
“Estamos muito felizes e agradecidos por estarmos seguros no Brasil, mas, ao mesmo tempo, muito tristes pelos meus outros filhos que ainda estão em Gaza, apesar das promessas feitas pelo estado brasileiro. Desde que cheguei, recebi assistência, as minhas crianças podem frequentar escolas, minha mãe, que veio depois, está sendo tratada de câncer em hospitais públicos e também recebo Bolsa Família”, relata Ramadan.
A estabilidade emocional, no entanto, ainda não foi conquistada. “Se você me perguntar se me sinto estável aqui, é impossível. Não há paz se os meus filhos continuam em Gaza vivendo em situação de perigo e calamidade. Como me sentirei estável enquanto meus filhos não dormirem em meus braços?”, questiona o palestino.
O que diz o Itamaraty?
O Metrópoles buscou uma resposta junto à assessoria da presidência da República e foi orientado a procurar o Itamaraty. Em nota, o órgão informa que o Escritório de Representação do Brasil em Ramala “segue atento à eventual necessidade de nacionais brasileiros que estejam em Gaza”, mas que não há previsão de novos voos de repatraição, “já que não há brasileiros a serem repatriados”. Veja:
“A Operação Voltando em Paz, que, de outubro de 2023 a fevereiro de 2024, repatriou 1.560 pessoas, trouxe de volta ao Brasil todos os brasileiros que solicitaram evacuação da Faixa de Gaza e tinham condições de deixar aquele território.
Os últimos quatro brasileiros em condições de deixar a Faixa de Gaza foram retirados daquele território em 8 de fevereiro e chegaram a São Paulo em voo comercial. Não há previsão de realização de novos voos de repatriação, já que não há brasileiros a serem repatriados”.