As imagens das câmeras de segurança registraram a sequência de acontecimentos: primeiro, um automóvel se aproxima de uma casa, no bairro SIM, em Feira de Santana. Do carro, desce um homem que começa a retirar vasilhas de água e comida que estavam no passeio – os recipientes tinham sido colocados ali pela dona da casa para alimentar seis cachorros que vivem naquela rua. Em seguida, ele joga a água fora e entra em uma discussão com a dona da casa.
Nos últimos dias, o vídeo viralizou nas redes sociais e provocou revolta de ativistas da causa animal e moradores de Feira de Santana, que denunciaram uma tentativa de impedir que os bichos fossem alimentados. O caso aconteceu na Rua Alto da Serra, no dia 23 de julho, mas não teria sido o único episódio: segundo testemunhas, há um movimento de parte dos vizinhos contra os moradores que alimentam animais que vivem na rua.
Câmeras de segurança teriam flagrado ao menos outras duas situações: uma ainda na noite do dia 23 de julho, quando o mesmo homem voltou a rondar o imóvel e, segundo testemunhas, teria jogado pedras em direção aos animais. Três semanas antes, um casal vai até a casa da vizinha que coloca os alimentos no passeio para reclamar. Teriam usado palavras de baixo calão e feito ameaças.
A moradora que alimenta os cachorros, a professora Cristina Mascarenhas, explica que criou o hábito por uma “questão de humanidade”. Ela conta que não é protetora de animais, mas se identifica com a causa.
“Mesmo sem ajuda, tento fazer o máximo possível. Coloco no meu passeio e nunca incomodei ninguém para pedir ajuda para nada, nunca botei no passeio de ninguém. Depois que eles comem, eles bebem água e eu retiro”, diz.
O que começou como desentendimento entre vizinhos, porém, se tornou uma investigação sobre maus-tratos a animais, envolvendo a polícia, a Justiça e até o Legislativo. Além disso, a situação provocou um debate sobre as responsabilidades sobre os animais que vivem nas ruas da cidade – inclusive quando eles são chamados e considerados ‘animais comunitários’.
A Polícia Civil informou que as investigações estão em andamento, mas outros agentes públicos e entidades têm acompanhado os desdobramentos. Conhecidos pela atuação na causa animal, o deputado federal Fred Costa (Patriota-MG) e o deputado estadual Bruno Lima (PP-SP) chegaram a enviar um ofício à 1ª Coordenadoria de Polícia do Interior, que fica em Feira, pedindo “empenho” na apuração.
De acordo com a advogada Carolina Busseni, conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), não há leis no país que proíbam pessoas de alimentar bichos que vivem nas ruas.
“Qualquer pessoa tem o direito de alimentar qualquer vida que esteja com fome ou sede, tanto animais humanos quanto animais não humanos. Além de um gesto de solidariedade, é um direito”, diz ela, que é presidente do Conselho Municipal de Direito Animal de Feira de Santana.
Direito
No dia 23 de julho, um sábado, a professora Cristina Mascarenhas saiu para fazer compras e voltou para casa por volta do meio-dia. Quando chegou, uma funcionária que trabalha com ela disse que colocaria logo a comida e a água para os cachorros no passeio, para tirar as vasilhas em seguida.
“Uns 10 minutos depois, ouvi essa senhora gritando. Quando cheguei lá, já era ele. Já tinha chutado as vasilhas todas, tinha derramado a água, pegado as vasilhas e colocado no carro dele. Eu disse que ele não tinha o direito de fazer aquilo, que era o meu passeio”, conta.
O vizinho teria respondido que teria o direito de fazer o que fez e que “faria todas as vezes em que passasse por ali”, porque os cachorros teriam mordido sua filha. “Eu disse que não sou responsável, que apenas alimento. No vídeo, você vê que ele cruza os braços me encarando. Perguntei o que ele ia fazer, se ia me bater. Ele disse que não, mas saiu dizendo que eu era uma filha da p*ta, que ia chamar a polícia. Eu entrei em casa já me tremendo”, relata Cristina, que chamou a polícia militar naquele dia.
À noite, naquele mesmo dia, o vizinho voltou à frente da casa dela. “A sorte foi que eu estava passando na hora e acendi a luz da varanda. Ele jogou pedras nos cachorros que estavam na esquina e em outros que estavam embaixo de um caminho em frente à minha casa. Não abri o portão, mas gritei ‘você sabe que isso é crime'”.
Até então, Cristina diz que não sabia nem mesmo quem era o vizinho. O homem foi identificado posteriormente como o empresário Noide Cerqueira Júnior, filho do ex-deputado federal Nóide Cerqueira. “Juro pela alma de meus pais que não sabia que ele era Noide Cerqueira, porque eu não estou nem aí para política”, diz.
Gatos
A história de Cristina com os animais da vizinhança começou há mais tempo. Moradora da Rua Alto da Serra há sete anos, no início de 2021, ela já vinha alimentando gatos que ficavam em um terreno próximo à casa. Outras pessoas também costumavam deixar ração, mas parte dos moradores começou a se incomodar com o número de animais.
“Eles diziam que, por eu alimentar, os gatos ficavam por aqui e se reproduziam. De repente, mais de 70 gatos apareceram envenenados. Apareciam mortos em cestos de lixo, em varandas, na rua”, diz. Na época, a TV local chegou a fazer reportagens sobre o caso e uma ocorrência foi registrada na Polícia Civil.
Cristina acredita que, como ninguém que frequenta sua casa maltrata os animais – tanto os cachorros quanto os gatos que vinham antes -, eles se sentem à vontade para ficar no passeio. Depois de receber a comida, deitam no chão e ficam dormindo por ali. Não são raras as vezes em que algum animal chega mancando ou com alguma ferida, segundo a professora, por ter se machucado com carros que passam “com o intuito de bater” nos cães. “Eles fazem isso. Alguns moradores são cruéis”, diz.
No fim de junho, foi a primeira vez que foi abordada de forma agressiva por um vizinho. Um homem, acompanhado da esposa, bateu em sua casa fazendo ameaças. Ela diz que tanto nesse caso quanto na situação de julho, nunca tinha tido contato com os vizinhos antes.
Cristina diz que já se reuniu com outras moradoras da região que também ajudam os animais para pagar por castrações. Ela conta que já pagou pela internação de um gato e até pela quimioterapia de uma cadela, no passado. A professora defende que os cachorros não são agressivos e cita situações como a chegada de entregadores em sua casa.
Hoje, ela diz que pensa em se mudar. A professora acredita que há uma influência do machismo na situação. “Na rua, tem outras pessoas que alimentam gatos. Eu não tenho marido, vivo só. Já tem aquele preconceito estabelecido de que vou cuidar de cachorro de rua. São conceitos já arraigados em nossa sociedade machista”, pontua.
Maus-tratos
As imagens teriam viralizado depois que começaram a circular entre ativistas pelos direitos dos animais de Feira de Santana. A protetora Kátia Santana é uma das que passou a acompanhar a história e conta que os cachorros têm ficado até com medo de ir receber a comida.
Como são animais de porte grande, ela explica que encontrar pessoas dispostas a adotar não é tão fácil. “Pensando no futuro, a gente vai castrar, com toda certeza. Mas as ONGs não têm como resgatar, porque não têm ajuda”, explica.
A presidente da ONG Mãos Solidárias, Lídice Pereira, afirma que a entidade está sobrecarregada, com limites de espaço.
“Esse é um bairro de classe média alta e os poderosos acham que lá não deveria ter animais de rua. Começaram a ligar para a gente para dizer inibir, para tirar os vídeos. Todo mundo tem medo, mas uma hora isso tinha que acabar”.
Para a advogada Ana Rita Tavares, que representa Cristina e é especializada em proteção animal, chutar as vasilhas e tentar impedir que os cães se alimentem ou bebam água tipificaria maus-tratos. Ela também avalia que o vizinho ainda cometeu constrangimento ilegal contra a professora. O homem pode, então, ser responsabilizado civil e criminalmente.
“Os animais são tutelados pelo poder público, que tem o dever de protegê-los, através de órgãos especializados para proverem a sua subsistência (alimentação, cuidados veterinários, abrigamento, adoção posterior), podendo o poder público delegar essa obrigação, mas destinando-lhes recursos públicos para que possam fazer o que lhe competiria fazer”, explica a advogada.
Ataques
Ao CORREIO, o empresário Nóide Cerqueira Júnior disse que sua filha foi mordida pelos cachorros, que estão na rua há mais de um ano, quando voltava de uma caminhada, no dia 23 de julho. Segundo ele, os cães atacam pessoas e animais, tendo até matado dois gatos e um cachorro de porte menor. Vídeos de câmeras de segurança de uma casa registraram o ataque ao cachorro.
Câmeras de segurança de outro morador flagraram o momento em que os cães atacaram outro cachorro (Foto: Reprodução) |
Quando a situação com sua filha aconteceu, ele gravou um vídeo que também circulou entre moradores no bairro, dizendo que iria tomar uma atitude para que os cachorros fossem embora. Cerqueira Júnior afirma tinha pensado em tirar a água e a comida toda vez que passasse pela casa da vizinha.
“Por volta do meio-dia, voltando para casa do trabalho, visualizei os animais e os pratos de água e comida. Lembrei da cena de minha filha mordida e chorando bastante e parei meu carro para tirar as vasilhas”, relata.
Ele diz que foi nesse momento que a vizinha saiu da casa e ele disse que sua filha tinha sido mordida, assim como sua secretária tinha passado pela mesma situação na semana anterior. O empresário diz que a vizinha não tem controle dos animais, como vacinas e outros cuidados.
Ele entrou na Justiça para retirar postagens em redes sociais sobre o caso e acrescenta que já criou vários cachorros e gatos. “Não sou uma pessoa violenta, muito pelo contrário, sou pacífico e gosto de animais”, completa.
Citado como ‘veterinário’ em algumas postagens, Cerqueira Junior confirmou que é formado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), mas nunca exerceu a profissão e não tem o registro no Conselho Regional de Medicina Veterinária da Bahia (CRMV-BA).
Ele diz que acionou a prefeitura e o Ministério Público do Estado (MP-BA) sobre a situação dos cachorros. A resposta do MP, ainda em julho, foi de ter acionado o Centro de Controle de Zoonoses para apurar “supostos ataques de cães raivosos” na Rua Alto da Serra, mas a notícia foi arquivada porque o CCZ não teria encontrado os animais.
Animais comunitários
De quem seria, então, a responsabilidade pelos cachorros do SIM? Primeiro, é importante entender a figura dos ‘animais comunitários’. Segundo a advogada Carolina Busseni, são aqueles que vivem nas ruas e têm algum vínculo com o local e com um grupo de pessoas, ainda que não sejam tutelados por ninguém.
Ainda que não exista legislação específica em Feira de Santana sobre animais comunitários, a advogada considera que eles já são reconhecidos no ordenamento jurídico por decisões judiciais em todo o Brasil. Na Bahia, Lauro de Freitas e Camaçari já têm legislação própria para regulamentar essa figura.
Passeios e calçadas são bem públicos, ainda que, segundo Carolina, a conservação deles caiba ao proprietário do imóvel. Mas, por ser um bem público, podem ser usados por todos, inclusive por animais.
“Podem ser usados, inclusive, pelas pessoas que queiram colocar água ou comida ou colocar vegetação para tornar o ambiente menos concretado. A colocação de vasilhas com água e comida representa, além de ato de solidariedade, uma ação afirmativa”, diz, citando uma determinação da Constituição Federal de proteger a fauna.
Quem retira recipientes, por outro lado, estaria violando o direito dos animais de serem alimentados e cuidados. Essa também é a visão da advogada Ana Rita Tavares, que representa a professora Cristina. “Diante da omissão no cumprimento do dever legal do poder público, para alimentar os animais, pode a coletividade fazê-lo por compaixão, amor, consciência solidária, etc. E isso deve ser respeitado por quem não se propõe a fazer”, argumenta.
Comunidade e poder público podem agir em conjunto pela saúde dos animais, diz médica veterinária
Se os animais não têm tutores, um questionamento frequente é quanto à garantia da saúde pública. De fato, essa é uma situação que precisa ser assegurada, porque, como ressalta a médica veterinária Simone Freitas, zoonoses como leishmaniose, toxoplasmose, leptospirose e raiva são graves. No caso da raiva, não há cura.
“Animais que não possuem cuidados podem transmitir doenças, sejam eles domiciliados ou não. Logo, por uma questão de saúde pública, a sociedade civil e o poder público devem juntar esforços para o bem-estar de todos. Afinal de contas, o vínculo afetivo entre homens e animais traz benefícios ao homem, principalmente à saúde física e mental”, diz ela, que é coordenadora da clínica veterinária da Unifacs e professora do curso de Medicina Veterinária da instituição.
Segundo ela, é possível promover, em conjunto, feiras de adoção, castração, e projetos educativos para a boa convivência entre pessoas e animais, ajudando a evitar a disseminação de zoonoses. Uma possibilidade seria os moradores da área se organizarem e entrarem em contato com faculdades que oferecem o curso para promover atividades educativas em conjunto, assim como ONGs e clínicas.
“O poder público pode também colocar o centro de zoonoses como multiplicador das informações relacionadas às doenças que os animais podem adquirir e assim transmitir para os humanos. Educar é a melhor saída. A responsabilidade é de todos”, reforça.
O secretário municipal de Meio Ambiente de Feira de Santana, Antônio Coelho, afirma que a prefeitura já faz cadastros, vacinação e castração constantemente com animais que vivem nas ruas.
“De imediato não temos ainda um projeto específico para acolher todos esses animais”, diz Coelho, pontuando que a pasta apoia o Conselho Municipal de Proteção aos Animais também com viaturas para ações em favor dos animais.
“Não temos estrutura para abrigar seis ou mais animais. A população que sentir-se incomodada deverá dirigir-se ao (Centro de Controle de) Zoonoses e pode solicitar o apoio do conselho, que sempre realiza campanhas de doações de animais”, completa.