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Você também precisa ajudar a salvar as Guerras de Espadas

Dançar forró é gostoso, acender a fogueira é legal, as comidas são delícia, as bandeirinhas deixam as cidades numa alegria muito linda. A maniçoba que Mainha faz, todo ano, não tem rival. Isso tudo já seria um São João completo se eu não tivesse me criado também nas Guerras de Espadas. Se isso não fosse, pra mim, um ritual ancestral sem o qual festas juninas são “de mentirinha”, quase não têm graça. Meu avó paterno tocava espadas. Meu pai tocava espadas. Os amigos de infância de meu pai tocavam espadas. Os filhos deles também. Eu não me lembro de um São João “de verdade” sem ronco de espada e sem cheiro de pólvora. Não tô falando de tocar espada no quintal de casa, numa praça vazia e, às vezes, até amarrando a bichinha para que – exilada da própria natureza – ela não ofereça risco algum. Tô falando de Guerras de Espadas, isso sempre fez parte do meu São João. Botas de couro, calça jeans, camiseta de algodão, jaqueta. Molha tudo antes de sair de casa, a ideia é não ser um ponto inflamável porque a gente vai pro meio do fogo. Capacete. Uma luva de couro e espadas. Meu pai levava dezenas de dúzias, chegava a pagar ajudantes para carregar sacolas, além das que ele próprio carregava. Eu nunca tive esse arsenal, mas me virava. Por muito tempo, tocava as dele. Depois, quando ele deixou de gostar, eu comprava ou ganhava de amigos. O que eu sei é que nunca fiquei sem tocar. Espada tem que ter procedência, saiba. Quem conhece o assunto não toca qualquer uma. É um trabalho artesanal delicadíssimo. Cozinhar bambu, encerar cordas de sisal com cera de abelha, colocar o barro. Compactar a quantidade precisa de pólvora com batidas em número calculado e isso não é nem metade da história. Trabalha-se, muito, o ano inteiro. Por isso que espada boa (bem batida, bem calibrada e de bambu) é um negócio caro. Pra quem cresceu nisso e sabe brincar, o risco é calculado. Eu nunca tive um acidente grave, por exemplo. Nem meu pai, nem meu avô, nem qualquer amigo chegado meu. A gente sempre soube que ia se queimar um pouquinho, que podia tomar alguma pancada, mas nunca houve nada sério comigo nem com nenhum dos meus. Quem se dá mal é quem vacila muito ou quem não tem costume e vai de gaiato. Uma boa Guerra de Espadas é uma experiência transcendental. Contabilizo dezenas delas – entre Muritiba e Cruz das Almas – antes da proibição. Depois de proibirem eu também já fui, mas só mesmo pra olhar. Porque continua tendo, você sabe, mas agora é ilegal e eu fiquei legalista depois da maternidade. Não compro, não tenho em casa, não dou ousadia a ninguém pra tirar meu réu primário. Mas a verdade é que vontade não me falta. Antes, quando podia, nem te conto como era bom. Até as luzes dos postes se apagavam. Escuridão, fumaça, fogo e aquele barulho lindo. O cheiro de pólvora. Às vezes, eu olhava ao redor e não conseguia identificar ninguém, no escuro e na fumaça. E dezenas de espadas, com seus rabos de fogo, dançando baixo no ar. Só quem viveu sabe. Depois de um tempo, o corpo começa a trabalhar sozinho (agora chama flow, né?) desviando das espadas e acontece a mágica de elas respeitarem a gente. Pode rir, mas acontece. Quem for místico pode até pensar que tem um negócio diferente no meio daquele fogo, que a gente se comunica com o elemento, que o encanta e é por ele encantado. Enfim, viajei. Mas não tô mentindo, não. Pode perguntar a qualquer espadeiro raiz que ele vai lhe dizer. Mas converse com espadeiro raiz, não com presepeiro que vai lá pra medir “coragem”. Tem nada a ver com coragem. Papo de otário. Mas é aquele negócio: você sabe que onde tem “perigo”, homem (sempre foram maioria absoluta nas Guerras) e representação fálica vai ter babaca se “amostrando” errado. Histriônicos, irresponsáveis, ridículos. Né? É. Mas hoje não tô pra problematizar esse lado. Deixa lá. Agora, o que eu quero dizer, é que você também precisa ajudar a salvar as Guerras de Espadas. Porque é uma riqueza nossa, mesmo que você não queira estar lá. Não é selvageria, não é errado, deixe de maluquice. Humanos é que são insuficientes para resolver certos impasses. O problema é a incapacidade de negociar com honestidade. Acompanho, há mais de década, as discussões e argumentos contra e a favor. Concordo e discordo dos dois lados. Já tentei propor soluções. Nada deu em nada. De um lado, espadeiros não conseguem entender que não podem oferecer riscos a quem não quer brincar de espadas, que não podem impedir o direito de ir e vir das pessoas, que não podem queimar carros e casas “porque sim”. Isso é bandidagem. Do outro lado, autoridades não percebem o valor desse bem cultural e, cheios de preconceitos, apenas dizem “não pode, é crime, acabou a conversa”. Então, por burrice e preguiça, criminalizamos uma tradição. Tá bonito isso? Não tá não. Veja bem: sem as espadas, o São João de Muritiba apenas acabou. Não tem nada, quase. Ruas desertas, tudo morto e sem graça. Todo mundo querendo saber onde e que horas vão… tocar espadas na clandestinidade. Poucas. Nada perto do que já foi. Em Cruz das Almas é a mesma coisa. Tem lá os shows, tudo igual a qualquer outro lugar. E o circuito clandestino das… espadas. Que, antes, ocupavam uma praça enorme, oficialmente. Com bares protegidos por telas e lotados de gente assistindo ao espetáculo. Era massa! (Sobre outras cidades que têm a mesma tradição não sei falar porque nunca fui. Só conheço espadas no Recôncavo que é a minha área.) Todos perdem, veja bem. As cidades que têm história de espadas perdem a possibilidade de gerar renda com um turismo específico, original, diferente das demais. Espadeiros perdem o próprio legado tão bonito e raro. Quem nunca viu, quem não gosta, quem não quer, perde a paz porque, proibidas, elas surgem em lugares e momentos improváveis. Eu perco a paciência, como sempre, nesse tipo de embate. Solução existe e é fácil. Regulamenta e fiscaliza a fabricação como é com todos os fogos. Fecha uma praça ou rua em cada cidade que tem essa tradição. Com telas e portões. Define datas e horários para Guerras de Espadas. Reúne com moradores. Prefeitura assume proteção (tem que botar tela ou madeirite em janelas e portas) e posterior pintura das fachadas (as espadas riscam as casas). Busca patrocinadores. (Muitas das casas do circuito vão virar bares temporários, restaurantes, pontos de venda de espadas. Pessoas vão alugar as casas para turistas, vão fazer festas, podem cobrar entrada.) Fechado o espaço, definidos data e horário, faz as Guerras de Espadas. Convida imprensa, faz camarote e o escambau. Tudo protegido (totalmente possível). É um belíssimo espetáculo de luzes e sons. Assim como em qualquer festa de largo, organiza estrutura de apoio, policiamento, SAMU e tal. O pau come lá dentro, vai quem quer. Tradição gerando um turismo original, dinheiro, visibilidade para municípios dos quais ninguém nem nunca ouve falar. Dez horas de brincadeira. Noite toda, até cansar. Ninguém toca espada em nenhum outro dia ou lugar. Compromisso assumido pelas associações de espadeiros (elas existem) e por elas fiscalizado. Pacto real. Quem descumprir vai preso de verdade. Espadeiros e poder público aliados. Tradição mantida, direito de ir e vir garantido, população não corre riscos e o São João volta a ter graça nas cidades onde morreu ou ficou igual a qualquer um que você vá. Vai ter gente machucada? Óbvio que vai, igual a Carnaval, vaquejada, grandes shows e qualquer outra festa que reúne multidões. Vai morrer alguém? É muito pouco provável, mais fácil morrer no ir e vir das estradas. O que mata, o que é perigo grande, é a burrice, essa assassina sanguinária. Guerras de Espadas, em vez de proibidas, devem ser as maiores atrações do São João, em muitas cidades. Isso é o certo. O resto é papo, preconceito, preguiça e incompetência pra dialogar. Flavia Azevedo é colunista do CORREIO e mãe de Leo

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