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Sabores guardados na memória

Entre tantas frases interessantes que li nos murais dispostos nas paredes do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, um depoimento me chamou a atenção. Nele, Dorival Caymmi relembra a passagem das vendedoras de acarajé e abará pelas ruas de Salvador à noite. Com seu canto que parece existir desde o princípio do mundo, Caymmi sempre se inspirou no linguajar das pessoas simples que habitavam a cidade. Deve a elas muitas de suas canções, que evocam uma ancestralidade profunda.

Ele conta: “Eu era menino e já me impressionava o pregão da negra vendedora de acarajé. Quanto mais distante, mais me parecia um lamento. O pregão era em nagô, na língua geral dos negros, e enchia-me os ouvidos de música e de nostalgia: ‘Ô acarajé ecó olalai ó’, e continuava em português ‘Vem benzê-ê-em, tá quentinho’, para logo marcar o abará: ‘lê abará’. Não havia noite que eu não ouvisse”.

Caymmi prossegue: “A negra era pontual com seu tabuleiro pela minha rua: pelas 10 horas da noite ela passava. E além do pregão, ela, ao descansar o tabuleiro pra vender o acarajé apimentado e o abará, costumava dizer aquilo que, anos depois, eu tomaria para a letra da música que fiz. Era quase um resmungo: ‘Todo mundo gosta de acarajé, mas o trabalho que dá pra fazer é que é.’”

Meus pais chegaram a viver esse tempo em que vendedoras saíam tarde da noite oferecendo suas iguarias. Elas passavam pela rua principal da Soledade, onde eles moravam, entoando frases provavelmente muito semelhantes às que Caymmi descreve. Salvador era então uma cidade bastante provinciana, com presença maciçamente negra, ainda mais desigual do que hoje. Meu pai não esquecia o sabor do abará quentinho, servido sem recheio, apenas com camarão seco na massa.

Hoje, passado tanto tempo, ainda guardo na memória não o sabor em si, que não alcancei, mas o desejo de saber como era esse sabor. Do mesmo modo, sonhava com o gosto já extinto do ensopado de camarão com chuchu que minha mãe adorava comer quando criança, nas barraquinhas do porto de São Roque, na foz do rio Paraguaçu. Ela vinha de Santa Inês com a família de trem, passando por cidades do Vale do Jequiriçá, até chegar ao porto, onde pegava o navio que a traria para a capital, numa época em que ainda não havia Ponte do Funil nem ferry boat. O pratinho de camarão era a atração mais apetitosa desse périplo.

Garoto gordinho e glutão, eu fui forjado na boa mesa. Nada de muito sofisticado, pelo contrário: pratos pesados, densos e deliciosos: feijoadas, dobradinhas, sarapatéis, moquecas de carne, caruru, vatapá e seus coadjuvantes. Certa vez, eu e um primo roubamos os pratinhos com comida baiana destinados a São Cosme e São Damião. Bem, eu era um pequeno bárbaro.

O prazer infantil de comer bem é dessas coisas que o tempo leva e deixam um vazio na gente. Lugares que não existem mais, onde adorava ir com minha família, e que mexem muito com minha memória afetiva – olfativa e gustativa também. Como o Agdá, na Boca do Rio, que nos proporcionava um prazer sensorial inigualável. Com sua decoração escura e carregada, exalava um cheiro inebriante de moqueca. As panelas de barro fervendo, os camarões imensos, o caldo amarelo do dendê. Meu pai costumava pedir o caruru de efó, amargo e escuro, diferente do tradicional.

Havia também a Churrascaria Alex, em Pituaçu, outro pouso seguro, onde degustávamos o melhor filé do mundo. Havia até mesmo uma lanchonete simples na Carlos Gomes, chamada Good Day, tocada por chineses, que servia esfihas e pastéis inigualáveis. Ela ainda funciona, pálida sombra de um apogeu distante, e passar por lá me traz um desalento que só o regresso a lugares onde fomos muito felizes é capaz de proporcionar.

Comida é afeto, é memória e, em determinado momento da vida, é saudade também. Como a saudade que sinto dos filés altos cheios de torresmo, das quiabadas e das moquecas de miolo que meu pai preparava tarde da noite, apenas pelo prazer de cozinhar, enquanto lia um jornal e tomava uma cerveja. Espantávamos o sono só para terminar a noite de barriga cheia e alma lavada. Era uma prosaica tradição familiar que, como muitas outras, virou apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

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