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O francês que teve o cérebro jogado no esgoto

No início de 2020, publiquei um artigo sobre a boca grande de Paulo Guedes. Não vem ao caso a circunstância específica, porque ele continua boquirroto e não se emendará, da mesma forma que o seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro. O fato é que, mais de dois anos e meio atrás, dei um conselho ao ministro da Economia, citando o francês Maurice de Talleyrand Périgord, a quem é atribuída a seguinte frase: “A palavra foi dada ao homem para disfarçar o seu pensamento”. A máxima é endereçada a políticos em geral, cujo principal atributo é mentir, não importa a filiação ideológica.

Talleyrand é o assunto aqui. Faço a apresentação. Como eu disse naquele artigo de 2020, ele “foi um prodígio da política francesa entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Nobre de origem, foi ordenado padre quando era papista, mesmo depois de ter sido expulso do seminário. Não resistia a mulheres cisgêneras (contém ironia) maiores de idade, uma esparsa preferência eclesiástica. Consagrado bispo, Talleyrand agiu contra os interesses do papa, abandonou a igreja e se viu excomungado. Conspirou contra um ministro de Luís XVI antes da Revolução Francesa. Ao lado dos revolucionários, exilou-se nos Estados Unidos depois da execução do rei que ajudara a depor — e voltou de lá ministro. Demitido por corrupção, aliou-se a Napoleão Bonaparte e o traiu. Ajudou a restaurar o Império, foi ministro de Luís XVIII e tramou para derrubar o irmão dele, Carlos X, e colocar no seu lugar Luís Filipe I, o ‘rei burguês’. O homem era mais adaptável do que Renan Calheiros. Um perigo”.

Pois bem. Esse camaleão voltou aos meus livros de cabeceira por meio de Victor Hugo. Estou lendo Choses Vues (Coisa Vistas), uma antologia de reminiscências deixadas por um dos orgulhos literários da França. Elas cobrem de 1830 a 1885. Uma dessas reminiscências é justamente sobre a morte de Talleyrand. Escreveu Victor Hugo:

“Anteontem, 17 de maio de 1838, esses homem morreu. Médicos vieram e embalsamaram o seu cadáver. Para tanto, à maneira dos egípcios, eles retiraram as entranhas do ventre e o cérebro do crânio. Feito isso, depois de terem transformado o príncipe de Talleyrand em múmia e o acomodado num caixão forrado de cetim branco, eles se retiraram, deixando sobre uma mesa o cérebro, esse cérebro que pensara em tantas coisas, inspirado tantos homens, construído tantos edifícios, conduzido duas revoluções, enganado vinte reis, contido o mundo. Os médicos foram embora, um empregado entrou, ele viu o que eles haviam deixado: Olhe, eles esqueceram isso. O que fazer? Ele se lembrou que havia um esgoto na rua, foi até lá e jogou o cérebro nesse esgoto. Finis rerum (fim das coisas).”

No artigo de 2020, fui injusto com Talleyrand, ao compará-lo com Renan Calheiros. O problema com as medições que envolvem personagens nacionais é que sempre temos de diminuir os estrangeiros que usamos como régua. Não vou comparar Talleyrand com ninguém mais. Só me ocorreu que aquilo que fizeram com o cérebro dele, depois da morte, é o mesmo que tentam fazer com os nossos nesta latitude extrema que é o Brasil, qualquer seja o grau de inteligência do cidadão. Não basta lavar os cérebros dos vivos, é preciso jogá-los no esgoto.

Nesta campanha eleitoral, em que as mentiras usuais dos políticos são uma doce lembrança, é preciso resistir mais do que nunca para que não acabemos todos descerebrados.

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