DOHA – Mohammed Bin Ali Jaber Al Attiyah, um catari endinheirado que gasta o tempo cuidando de sua criação de camelos no deserto, sentiu tanto quanto os brasileiros a eliminação precoce do Brasil na Copa do Mundo.
Oficial aposentado das Forças Armadas do Catar, Al Atthiyah estava empolgado com a Seleção, e acreditava que a taça viria. Na véspera do fatídico jogo contra a Croácia, pelas quartas de final do torneio, ele abriu sua fazenda, a pouco menos de uma hora do centro de Doha, para uma festa na qual o Brasil e a bandeira brasileira eram os principais homenageados.
O militar aposentado convidou parentes e amigos próximos. Para fazer jus ao tema da comemoração, pediu a um conhecido do Rio de Janeiro para levar outros amigos, torcedores brasileiros que viajaram a Doha para a Copa.
Alguns convidados chegaram antes. O sol tinha acabado de se pôr quando o anfitrião, que não mora na propriedade, apareceu em sua Range Rover Vogue, uma exclusiva SUV de mais de R$ 1 milhão que ele põe todo dia, sem pena, na estrada de terra e pedregulhos que leva até o cercado no meio do nada onde seus camelos são criados.
Cajado à mão, Al Atthiyah veste a túnica típica da região – a dele, naquele dia, é marrom. Na cabeça, a ghutra, o lenço cuidadosamente dobrado em volta de um cordão que inspirou os criadores de La’eeb, o mascote da Copa. Ele caminha devagar até os assentos acolchoados montados ao redor de duas fogueiras que já haviam sido preparadas por seus serviçais – sim, como praticamente todos os cataris, Al Atthiyah é servido por empregados vindos de países do subcontinente indiano, como Bangladesh, Paquistão e Nepal (assunto para mais uma reportagem).
A estrutura exclusiva para receber os convidados é bem perto do lugar onde os camelos ficam confinados – as fêmeas em um cercado, os filhotes em outro e os machos reprodutores, bem mais bravos, isolados mais adiante.
A comida é farta e já está posta. Mas é só começo. Petiscos árabes de vários tipos, doces e salgados. Há frutas também. E bebidas diversas, sem álcool. Chá e café são servidos quase que sem parar pelos funcionários, que percorrem os assentos em volta das fogueiras carregando o qahwah, um bule tradicional.
Quem não conhece a cultura local estranha a hospitalidade. Se os brasileiros são conhecidos como um povo hospitaleiro, os cataris, quando querem, sabem ser ainda mais acolhedores – e em troca de absolutamente nada. Querem apenas agradar e, claro, tentar afastar o preconceito ocidental.
É o soft power do Oriente Médio em pleno exercício. Os cataris aproveitam a ocasião para dizer que, à diferença da fama alastrada mundo afora, não maltratam nem subjugam as mulheres (“As protegemos porque elas são como diamantes para nós, são o pilar das nossas casas”, repetem, entoando um discurso capaz de enfurecer até a menos radical das feministas).
Outros convidados, todos homens, vão chegando. São tratados com máxima deferência. Manda o costume local que todos devem se levantar para receber quem chega. O cumprimento varia: três beijos no rosto ou toques de nariz, ponta com ponta, de acordo com o grau de intimidade.
Al Atthiyah mandou fazer uma faixa colorida em verde e amarelo, com a logomarca da Copa, a foto da taça e uma inscrição em português e inglês: “Bem-vindos ao deserto do Catar”. Bandeiras do Brasil foram espalhadas por todos os lados. Perto das 18h30, horário da última das cinco orações que os muçulmanos devem fazer diariamente, o anfitrião e os demais locais se retiram. Vão para debaixo de uma tenda branca montada bem ao lado. Logo retornam.
A festa, diferente de todas com as quais estamos habituados, continua. Com o grupo inteiro sentado durante a maior parte do tempo. Alguns conversam com quem está ao lado. Outros não falam nada, nem mesmo com os compatriotas – para esses mais silenciosos, mas não menos felizes, estar presente basta.
Primo do anfitrião, o também militar aposentado Ali Al Kubaisi, fã do futebol brasileiro (ele diz torcer para o Vasco da Gama), está sentado perto de Al Atthiyah. Assim como os demais, Ali deposita esperanças no time de Neymar e companhia. “Será o campeão”, prevê. Ele é outro catari que, desde o início da Copa, tem recebido brasileiros pelo simples prazer de conversar e agradar. “Estamos orgulhosos por receber vocês aqui.”
“Eles nos recebem muito bem, com um carinho que não consigo mensurar. É algo que nunca imaginei que fosse acontecer”, diz o empresário José Fábio Lopes, um dos convivas brasileiros, que vive no interior do Rio. “A gente sempre teve ideia de que os árabes são um povo muito fechado, muito sério. Mas eles foram maravilhosos conosco.”
“Eles querem passar uma imagem diferente daquela que o resto do mundo tem, uma outra visão tanto em relação ao povo quanto à religião”, emenda o também empresário Sérgio Langoni, do Paraná.
Sob a lua quase cheia, a temperatura no deserto vai caindo. E dá-lhe comida. Uma camionete chega trazendo na carroceria panelas enormes com o jantar – sim, se os aperitivos já pareciam mais do que suficientes, ainda haveria um farto jantar. O anfitrião mandou trazer carneiro assado, para ser servido com arroz, lentilhas e outros acompanhamentos típicos da culinária local.
A refeição é servida bem ao lado, no confortável majli recém-inaugurado por Al Attiyah. Os majlis, marca da cultura árabe, são salas de reuniões apartadas das residências onde os locais costumam se reunir com amigos para conversar. Todos sentam-se no chão, ao redor da comida. Não há talheres. É para comer com a mão mesmo, seguindo a tradição local.
As duas porções gigantes de carneiro assado são devoradas em menos de uma hora pelos cataris e pelos brasileiros. De sobremesa, ainda tem uma vistosa e generosa bandeja de bombons franceses e, como gran finale, um bolo decorado com a bandeira do Brasil, cortado por um convidado com a espada do anfitrião, até então exposta em lugar de destaque.
Al Attiyah se despede desejando sorte à Seleção. “Vocês todos, brasileiros, sempre serão muito bem-vindos ao Catar”, diz. Ele estava crente de que a vaga na semifinal da Copa estaria garantida. Mais ainda, acreditava que o Brasil chegaria tranquilamente à final. Estava errado.
A Seleção enganou até a milenar sabedoria beduína.
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