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O racismo é nossa maior chaga

Conversava outro dia com três mulheres no parque aonde vou diariamente com Pudim, meu filho peludo. Todas estavam com seus respectivos mascotes: Bruce, Benjamin e Lucky. Elas me contavam que uma conhecida, que sempre ia lá com seu cãozinho, tinha se mudado para outro bairro. Uma pena, pois é uma moça do bem e fará falta. Comentei então, em tom de brincadeira: “É, os bons vão e os ruins ficam”. Uma das mulheres me olhou, hesitou um pouco, como se medisse bem o que iria dizer, e então confessou algo que parecia travado, encerrado no mais íntimo dela:

“Pois é, os ruins ficam. Outro dia mesmo encontrei um desses. Eu estava com Bruce esperando para subir no elevador do prédio onde trabalho. Ele chegou e do nada disse assim: ‘Você sabe que tem que usar o outro elevador, não é? Você sabe. Você vai usar o outro elevador’. Aquilo me pegou de surpresa. Porque quando a gente tá preparada é mais fácil de responder. Mas eu fiquei calada. E pensei: será que ele falou isso porque eu estava com o cachorro? Será que é porque eu sou empregada doméstica? Ou será que é pela minha cor?”, ela perguntou, tocando no próprio braço de mulher negra, como se assim tornasse mais evidente o que dizia.

Percebi que estava comovida. Ela então repetiu a pergunta: “Será que foi pela minha cor?”. Nesse momento, eu poderia ter contemporizado, dito que não, que provavelmente era por conta do cachorrinho, alguma regra idiota de condomínio etc. Mas eu sabia que não era e preferi ser sincero: “Sim, foi por causa da sua cor. Mais do que isso: não é só um preconceito racial, é de classe também. E nos últimos tempos essas pessoas se sentiram autorizadas a dizer esses absurdos”. A resposta curiosamente pareceu tê-la deixado mais aliviada, como se precisasse desse endosso para confirmar o que sentia. Ela evidentemente não precisava de endosso algum da minha parte.

Continuamos conversando e aos poucos sua expressão desanuviou. É uma senhora simpática, de rosto habitualmente sorridente. Disse que estava aposentada, mas gostava de continuar trabalhando na casa de sua patroa. Tive vontade de abraçá-la. Ou ao menos de dizer algo que lhe trouxesse alguma paz de espírito. Mas sou um péssimo motivador, então me despedi dela e das outras mulheres, fiz um carinho em Bruce e peguei meu caminho de volta. Aquele desabafo, contudo, não me escapou da mente. Ficou ali remoendo feito um grito, como no poema de Sylvia Plath. Senti um misto de raiva e impotência, de tristeza e perplexidade.

A esses sentimentos, um outro foi acrescentado: remorso. Porque era nítido que eu carregava uma espécie de culpa por aquela situação. Não por ser um tipo torpe como o sujeito que a agrediu. Mas por minha condição de homem branco. Como um ariano que, na Segunda Guerra, padecesse da dor dos judeus no Holocausto, mas fosse incapaz de mover uma palha pela sua sobrevivência. Aos poucos, fui lembrando de momentos da minha vida em que não demonstrei qualquer atitude para reprimir situações semelhantes. Havia até mesmo em mim um racismo velado, que fui aos poucos extirpando como quem a muito custo limpa uma nódoa de uma roupa.

Lembro de uma vez em que, adolescente, eu caminhava sozinho à noite pelo bairro onde morava. Em dado momento, um homem negro surgiu ao meu lado. Instintivamente, retardei o passo e ele percebeu. Então ele disse: “Fique tranquilo. Eu não vou fazer nada com você”. Aquilo doeu. Naquela noite e ainda hoje. De onde vinha aquele medo atávico? Onde o adquiri? De que forma foi incutido em mim? Escrevo estas linhas com vergonha e até um pouco de aversão a mim mesmo.

Certa vez, uma amiga negra me disse que eu jamais conseguiria mensurar o que sente uma pessoa preta. Discordei de forma veemente na época, mas hoje vejo que ela tinha razão. Conseguiria realmente me colocar no lugar da senhora que esperava para subir o elevador? Ou acabaria me colocando involuntariamente no lugar do elemento que se postou ao seu lado? Talvez eu esteja sendo rigoroso comigo mesmo. Talvez não. O racismo é um mal arraigado no Brasil justamente porque não abandonamos de todo o binômio casa grande-senzala, longe disso.

O resultado é uma guerra civil informal, que fere e mata milhares de pessoas negras todos os anos. Isso diz muito do nosso atraso, da nossa miséria, da nossa ignorância. O racismo é nossa maior chaga e está longe de ser erradicado. Basta ver a cena da mulher que açoitou um rapaz à luz do dia, como se fizesse algo aceitável. Basta saber que uma mulher que deu duro a vida inteira e, mesmo aposentada, ainda se dedica a trabalhar, é aviltada no seu local de trabalho por um cretino, sem que este seja prontamente levado a uma delegacia.

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