InícioNotíciasPolíticaA cada dez mulheres vítimas de feminicídio no DF, sete eram mães

A cada dez mulheres vítimas de feminicídio no DF, sete eram mães

Quando saíram para a escola em 17 de junho de 2021, os irmãos Marco* e Thiago*, à época com 8 e 6 anos, respectivamente, não imaginavam que a vida nunca mais seria igual. Naquela manhã, após levar os dois filhos para o colégio, Leandro de Barros Soares voltou para casa e matou a esposa, Melissa Mazzarello de Carvalho Santos Gomes, 41.

O crime ocorreu há dois anos, mas as marcas daquela data perduram, como em um dia que nunca acabou. Após a tragédia que abateu a família, os filhos de Melissa e Leandro — atualmente com 11 e 8 anos — tiveram a vida virada de cabeça para baixo. Nunca mais voltaram para a casa onde moravam e, desde então, são cuidados pelos avós maternos.

Sem a filha, o aposentado Luiz Gomes, 72, vive uma segunda paternidade. “Nós fazemos o máximo de esforço para dar a eles tudo o que minha filha proporcionava”, disse o avô. Os meninos seguem matriculados na mesma escola particular que estudavam antes, fazem aula de futebol, têm acesso a atendimento médico e odontológico pagos pelos avós.

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Luiz concilia gastos na aposentadoria com os cuidados com a criança Vinicius Schmidt/Metropoles

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Em 8 anos, DF tem 172 vítimas de feminicídio Vinicius Schmidt/Metropoles

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Luiz cria os netos após tragédia na família Vinicius Schmidt/Metropoles

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Avô faz de tudo para estar presente em todos os momentos na vida dos netos Vinicius Schmidt/Metropoles

Retrato de Luiz Gomes. Brasília (DF) 25/08/23. Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

Brasília (DF) 25/08/23 Retrato de Luiz Gomes, pai de Melissa Mazzarello de Carvalho Santos Gomes, vítima de feminicídio aos 41 anos, em 2021. Ao lado da esposa, Luiz é o responsável pela criação dos 2 netos, filhos de Melissa. Vinicius Schmidt/Metropoles

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Aos 72 anos, Luiz Gomes é pai por uma segunda vez Vinicius Schmidt/Metropoles

As crianças também fazem acompanhamento com psicóloga. Mesmo com toda estrutura familiar, é inevitável que os traumas que os meninos carregam.  “Eles tiveram uma regressão. Um deles perdia o gol, por exemplo, e deitava no chão em posição fetal para chorar”. O outro perguntava pela mãe.

“Eu me sinto na obrigação de ter pelo menos mais 10 anos de vida útil”, declara o avô Luiz Gomes sobre a expectativa de futuros com os meninos. O idoso vai conciliar os gastos na aposentadoria com os custos com a criação dos meninos, além do luto de perder a filha de uma forma trágica.

“Eu não sou mais o mesmo. Não chuto uma bola como antes, sou avô, mas com funções de pai”, comenta.

Covardia A história das crianças não é a única. De acordo com os dados do Painel do Feminicídio, alimentado pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, 78,2% das vítimas de feminicídio eram mães. O número corresponde a 136 mulheres que tiveram a vida ceifada e impedidas de ver os filhos crescerem, desde 2015, quando foi criada a Lei de Feminicídio, em 2015.

Até o momento, o número corresponde a 331 filhos que perderam a mãe. Desses, 63% eram menores de idade, o que representa 210 crianças sem a presença da figura materna.

“A criança é duplamente órfã porque aquele pai também morre para ela”, afirma a professora Ana Liési Thurler, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher, da Universidade de Brasília (UnB).

“O feminicídio é um matricídio também porque se trata de uma execução de mães. É uma carga de violência imensa e às vezes o ocorre na frente da criança”, destaca a especialista.

Para ela, os filhos são vítimas diretas da violência. “Os órfãos estão aí porque o estado estava ausente”,elabora Thurler.  As consequências do crime assolam a vida das pessoas em volta. “É uma devastação na família. Abala a ordem natural das coisas, que uma mãe enterra uma família saudável e filhos criados sem a mãe. É uma avó que deve estar aniquilada pela perda da filha e ainda tem que lidar com as coisas com órfãos extremamente vulneráveis.

Auxílio financeiro Com foco nessa situação, o Governo do Distrito Federal elaborou projeto que pretende amparar os órfãos do feminicídio. O tema é tão preocupante que todos os 23 deputados distritais presentes em plenário votaram a favor do Projeto de Lei nº 529/2023, e em caráter de urgência, da proposta elaborada pelo Executivo

O texto foi aprovado pela Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) em 22 de agosto. Agora, vai à sanção do governador Ibaneis Rocha (MDB).

Na última sexta-feira (25/8), o chefe do Executivo local informou que fará os ajustes finais no projeto de lei que determina o pagamento de auxílio financeiro a órfãos do feminicídio no Distrito Federal.

“Vamos fazer a parte da regulamentação do projeto de lei aprovado pela Câmara Legislativa, para que a gente possa fazer o cadastro dessas crianças que estão em situação de abandono por causa do feminicídio”, disse Ibaneis.

“Queremos amparar todos eles dando uma nova condição. Agradecemos a todos os deputados distritais pela agilidade na aprovação desse projeto que encaminhamos na semana passada e foi aprovado”.

O projeto prevê o repasse de até um salário mínimo (R$ 1.320) por criança ou adolescente. O projeto de lei do Executivo local vai criar o programa Acolher Eles e Elas. Após sanção, o benefício estará disponível para os órfãos menores de 18 anos ou em situação de vulnerabilidade até os 21.

Os beneficiários também precisarão morar no DF há, ao menos, dois anos e comprovar viverem em situação de vulnerabilidade econômica. Os recursos para custeio do programa sairão do orçamento da Secretaria da Mulher.

Exemplos no restante do país Em dezembro de 2022, o governo do Acre sancionou a Lei nº 4.065, que concede auxílio-financeiro no valor de um salário mínimo por filho até os 18 anos, quando comprovada a situação de pobreza.

A cidade de São Paulo também sancionou o projeto Auxílio Ampara que prevê apoio financeiro aos órfãos em decorrência do feminicídio. O texto prevê o auxílio até os 18 anos, mas podendo ser estendido até 24 anos, no caso de jovens em situação de vulnerabilidade que estejam matriculados em instituições reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC).

Na mesma linha, tramita no Congresso Nacional projeto de lei nº 976/2022para dar o apoio nacional aos órfãos. O PL, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS) foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda aprovação no Senado Federal.

O texto prevê também auxílio financeiro a orfãos em que a renda mensal per capita é inferior a 25% do valor de um salário mínimo.

Apoio do Estado Pelos critérios das leis, em nenhum dos casos, o avô Luiz Gomes teria os netos amparados. A família tem renda superior a um salário mínimo, o que exclui as crianças de receber o amparo.

“Esse apoio seria importante porque também garantiria uma poupança a meus netos. Eu não sou mais jovem, minha esposa tem 70 anos. Quando o mais novo tiver 18, eu terei 82”, disse.

Na trajetória da “morte” de Melissa, ela solicitou o apoio do Estado quando denunciou o ex-marido por violência doméstica, um ano antes de ser morta.

As sequelas da família de Melissa se estabelecem na ausência de Melissa. “O apoio financeiro é muito importante, mas nada traz minha filha de volta”, conclui o pai.

*Nomes fictícios

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