Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Advogada Vera Lúcia Santana Araújo 26 de novembro de 2023 | 07:39
A baiana do interior não sabia o que era televisão até os 12 anos e fez dos livros da única biblioteca da cidade o seu principal passatempo. Deixou a Bahia, mas a Bahia não saiu daquela menina negra, filha de professora e neta de lavadeira, que se tornou advogada na capital federal.
Aos 63 anos e quatro décadas de advocacia, Vera Lúcia Santana Araújo reitera seus compromissos com a democracia, com a inclusão e não esmorece de seus planos de alçar voos mais altos e ocupar espaços institucionais de poder.
Em 2022, ainda durante o governo Jair Bolsonaro (PL), tornou-se a primeira mulher negra a compor uma lista tríplice para assumir uma cadeira no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), mas não foi escolhida pelo então presidente.
Em setembro deste ano, foi novamente indicada para compor uma lista tríplice para o TSE, desta vez com outras duas mulheres. A escolha ainda não foi feita pelo presidente Lula (PT).
Ao mesmo tempo, ganhou apoio da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia para uma possível indicação ao STF (Supremo Tribunal Federal) na vaga ainda aberta com a aposentadoria da ministra Rosa Weber em setembro.
Ao se apresentar, destaca sua trajetória sem curvas: “Minha vida, de certa maneira, teve um curso linear de participação ativa da defesa do Estado democrático de Direito. Nunca me afastei dos meus princípios e sempre estive alinhada na luta por uma democracia inclusiva”, afirma.
Vera Lúcia nasceu em Livramento de Nossa Senhora, cidade de 43 mil habitantes do sudoeste da Bahia. O direito não foi vocação familiar: o pai era um garimpeiro, e a mãe, professora de português.
Perdeu o pai cedo, aos 13 anos, e teve que contribuir no sustento da família ainda jovem. Para ajudar a mãe e os cinco irmãos, foi manicure, vendeu refresco na feira da cidade e deu aulas de reforço escolar para crianças mais novas.
Em 1976, aos 16 anos, Vera Lúcia foi cursar o ensino médio em Salvador e teve seu primeiro contato com a política no movimento estudantil. Foi aluna do Colégio Central, escola pública tradicional onde estudava parte dos filhos da elite baiana.
“Meu caminhar democrático tem a ver com esse engajamento com o movimento estudantil. Foi só em Salvador que descobri que vivíamos em uma ditadura e que era preciso derrubá-la”, lembra.
Dois anos depois, mudou-se para Brasília, concluiu o ensino médio e se inscreveu no vestibular para medicina por incentivo da mãe. Sua sorte, diz, foi não ter sido aprovada. Foi estudar direito na UniCeub, sem certeza sobre sua vocação.
Foi um estágio na Defensoria Pública, afirma, que lhe deu a confirmação da escolha. Na instituição, trabalhou em Taguatinga e atuou em comunidades em situação de miséria extrema: “Ali eu fui descobrindo o amor ao direito como instrumento de exercício de cidadania”.
A aproximação com o ativismo e com a política foi natural. Começou a advogar para sindicatos de trabalhadores e ajudou na fundação do PT, onde foi assessora jurídica e participou de debates internos sobre a questão racial. Não é filiada a partidos desde 2011.
Participou das lutas pela anistia, pelas eleições diretas, foi uma das integrantes do chamado “lobby do batom”, em defesa dos direitos das mulheres na Constituinte, e atuou no Movimento Negro Unificado. Foi assessora de Sigmaringa Seixas, que foi um dos advogados mais próximos de Lula.
Mais recentemente, Vera Lúcia se uniu à Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e ao grupo Prerrogativas, composto por advogados e defensores públicos, em geral simpatizantes do PT, que se notabilizou por fazer críticas à atuação da Operação Lava Jato.
Vera Lúcia afirma que a Lava Jato sustentou um “acumulado de erros” e critica a atuação do ex-juiz Sergio Moro, hoje senador pela União Brasil do Paraná. Afirma que o então magistrado “falseou um processo, submeteu membros do Ministério Público e negou a Constituição” ao corromper o processo judicial.
Também rebate os críticos do Prerrogativas afirmando que o grupo defende tão somente o cumprimento das garantias constitucionais. “Não se pode submeter o Estado democrático de Direito para pretensamente combater a corrupção.”
Ela afirma ainda que o combate à corrupção se faz com incentivos a políticas de transparência, participação da sociedade e mecanismos de controle social.
O STF, em sua avaliação, tem atuado em estrita conformidade com o seu papel constitucional, mesmo em casos mais rumorosos, como a instalação de inquéritos de ofício e o julgamento dos réus envolvidos nos ataques de 8 de janeiro.
Ela lembra que a corte tem um papel político. O que os críticos chamam de ativismo, afirma, nada mais é do que o cumprimento da Constituição. Por outro lado, critica o que seria uma espécie de ativismo danoso no Poder Judiciário, caso dos mecanismos de lawfare.
“Esse ativismo que foi promovido pela extrema direita contribuiu para um processo de criminalização da política. No caso de Lula, eles construíram artificialmente acusações contra uma pessoa que não tinha praticado crimes”, afirma.
Questionada sobre os apoios que recebeu para uma possível indicação ao STF, diz que esta deve ser uma decisão soberana e unipessoal do presidente.
Ao mesmo tempo, diz que Lula tem uma oportunidade histórica de indicar a primeira mulher negra para a corte, que seria “uma contribuição inestimável para a consolidação do processo democrático” no país.
Um exemplo dessa urgência se reflete em sua própria trajetória no direito, onde teve raras mulheres e até mesmo homens negros como referência pela falta de acesso destes aos espaços de poder. Por diversas vezes, ela mesma era a primeira mulher negra a ocupar ou disputar alguns cargos.
“Eu sempre tive o peso de ser uma mulher negra em ambientes exclusivamente brancos e masculinos. Eu sempre me impus um zelo, uma responsabilidade dessa coisa de não poder errar”, afirma.
Ao mesmo tempo, diz que não é razoável a sub-representação da população negra nas carreiras do Judiciário. Diz que este vazio precisa ser preenchido e que está pronta para qualquer desafio. “Não me intimida nem me atemoriza estar em qualquer espaço de institucionalidade”.
João Pedro Pitombo/Folhapress