InícioNotíciasPolíticaChega de cravos vermelhos? (por Daniel Azevedo Muñoz)

Chega de cravos vermelhos? (por Daniel Azevedo Muñoz)

Em 25 de abril de 1974, um movimento militar liderava uma marcha política em Portugal. Parafraseado as palavras do capitão Salgueiro Maia, naquela noite solene, foram acabar com o Estado a que tinham chegado, os restos do Estado Novo fundado por António de Oliveira Salazar em 1933. Aquele dia ficou marcado como o estopim da Revolução dos Cravos, que ganhou esse nome em referência às tradicionais flores ibéricas vermelhas que adornaram os fuzis militares naquela marcha contra o longo fascismo português.

Até o dia 25 de novembro de 1975, Portugal viveu o chamado Processo Revolucionário em Curso (PRC), em que as esquerdas dominaram a política nacional e implantaram uma série de reformas que rumavam ao socialismo, alicerçadas nos “ideais de Abril”. Após esse dia, o país se assentou politicamente no que se tornou o período democrático atual, com o convívio também com a direita política (não a extrema-direita). Essa atual república teve múltiplos primeiros-ministros (chefes de governo) socialistas, mas também conservadores da Aliança Democrática (AD) e alguns poucos independentes, no seu período inicial.

Meio século depois dessa revolução, que fundou a história mais recente de Portugal, alguns novos vínculos com o Brasil marcam o país hoje. Entre eles estão uma renovada xenofobia contra o grande contingente de brasileiros que marchou para Portugal na última década e o estranho lavajatismo do Ministério Público português, que levou a um abrupto e questionável fim do governo socialista de António Costa, cuja administração durou de 2015 até 2 de abril deste ano. Por fim, outro paralelo com o Brasil é o retorno da direita ao poder com o atual governo de Luís Montenegro, da AD, com o congresso português contando pela primeira vez com uma expressiva extrema-direita, o partido Chega.

Até o momento, Montenegro não governa com o apoio da extrema-direita e por isso se mantém como um primeiro-ministro de minoria parlamentária. Seu movimento provavelmente se explica por ter observado, na vizinha Espanha, a intentona de Alberto Núñez Feijóo, da tradicional direita do Partido Popular (PP), ser derrotada amargamente após ganhar a maior bancada no parlamento. Feijóo foi impedido de governar porque não conseguiu uma maioria com o partido extremista Vox, e, por causa da aliança com a extrema-direita, teve as portas fechadas por todas as outras forças políticas do país. No entanto, assim como fez Feijóo, Montenegro incluiu umas tantas pautas da extrema-direita no seu governo, para não ser derrubado e catalisar apoio de massas que anseiam por votar na nova onda extremista.

Para além das caricaturas já exploradas de Marcus Santos, brasileiro negro que foi eleito pelo Chega em Portugal e defende uma pauta anti-imigração repleta de nuances discursivas racistas, o intuito da reflexão deste artigo é conversar com as bases de formação do fascismo na atualidade, buscando entender o que se passa em Portugal, na Europa e no mundo. Para isso, uso de base os trabalhos do catedrático professor de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Fernando Rosas.

Para além da Era dos Fascismos – a questão contemporânea

Rosas é um dos mais importantes intelectuais globais no estudo do fascismo, não apenas como movimento político, mas também como governo em seus regimes ao longo do século XX. Entre tantas importantes obras do historiador português, a mais recente, de 2019, foi publicada somente em 2023 no Brasil pela Tinta da China, e chama-se Salazar e os Fascismos. Trata-se de um ensaio, segundo o autor, embora tenha bases de pesquisa historiográfica, em que Rosas faz um esforço de História Comparada para explicar o Salazarismo em Portugal.

Para além de explicar as bases do fascismo do século XX, o autor nos brinda com um capítulo final em que discute “Os Desafios do Presente”. Utilizando-se da famosa frase da obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, Rosas inicia seu pensamento relembrando o que o intelectual alemão cravou no pensamento contemporâneo: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

A partir daí, Rosas relembra que o que hoje chamamos de fascismo não é exatamente o que foi o fascismo da Europa do início do século XX. Contudo, paralelismos existem a ponto de se debater até onde podemos falar de fascismo hoje. No começo do século XX, os extremismos desse tipo se forjaram das crises do capitalismo liberal, já contínuas e com seu grande crash em 1929. Rosas relembra: “de forma idêntica ao período entre as guerras do século passado, o capitalismo conhece, desde os finais dos anos 70 do século XX, uma prolongada crise sistêmica, de que a grande depressão de 2008/09 não foi senão o seu abalo mais profundo e recente.”

Dessas crises nasceram, também, as respostas das revoluções socialistas do início do século XX. No entanto, como também recorda Rosas, com o fim do socialismo real no mundo, não há nada que pareça fazer frente ao neoliberalismo corroído senão esse neofascismo rampante. A partir desse ponto, questiona-se como os últimos cinco anos, desde que Rosas escreveu sua obra, cimentam mais ainda esse problema. Mesmo com alguns governos com novas políticas contrárias aos ideais do neoliberalismo se mostrando com melhores resultados econômicos e sociais atualmente, isso não parece mais fazer diferença para frear o avanço dos fanatismos fascistizantes que os antagonizam.

Milei faz um governo atroz na Argentina, seguindo as cartilhas neoliberais, fazendo com que o nível da pobreza de um dos países que historicamente tem a maior classe média da América Latina chegasse, em janeiro, a 57,4% da população. Ainda assim, seus apoiadores parecem firmes. Sob o governo do socialista Pedro Sánchez, a Espanha tem indicativos econômicos raros na Europa atual, crescendo acima da média continental em 2023 (o país cresceu 2,5% e a Zona do Euro apenas 0,4%). Portugal acompanhou seu vizinho, crescendo 2,3%. Ambos fizeram isso enquanto a tão potente Alemanha vê sua economia regredir (caiu 0,3%). Isso também parece não importar para os extremistas que querem derrubar o governo socialista na Espanha e tampouco impediu a manobra estranha que derrubou António Costa em Portugal e abriu as alas para o retorno do neoliberalismo de Montenegro.

Joe Biden termina seu mandato com os EUA na melhor situação de emprego dos últimos 50 anos, e isso tampouco parece fazer a menor diferença para a sua iminente derrota para Donald Trump no fim deste ano. Lula apresentou números melhores que as previsões do FMI para o Brasil em 2023 (como tantas vezes já mencionou em discursos), ainda assim falam como se a economia do país fosse um caos. A realidade parece não importar para os fanáticos do Bolsonarismo. Teríamos perdido a janela da oportunidade para curar as crises econômicas de modo a enfraquecer os ascensos neofascistas?

REPRESENTATIVIDADE E SUBVERSÃO POLÍTICA

Rosas explica, como já vimos em consenso entre tantos autores, como a quantidade gigantesca de prejudicados pelo neoliberalismo desde os anos 80 se viu órfã de quem pudesse representar suas angústias na política atual, com as esquerdas destruídas pela década de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Sem ter a quem recorrer, essas massas foram atraídas pelo populismo fascistizante, que, por sua vez, empurrou as direitas tradicionais dos países a se unirem a ele, como descreve o intelectual português. Agora, esses movimentos tinham bases populares, que a direita tradicional nunca teve. É mais um paralelo com o que houve na gestação da Era dos Fascismos do início do século XX. O mundo definitivamente demorou para ter a coragem de abandonar o neoliberalismo e ainda hoje são pouquíssimos os governos progressistas que efetivamente o fazem.

Rosas aponta também que até o momento em que escrevia (em 2019), não parecia que a ordem neoliberal estava disposta a implodir os Estados democráticos de direito em nome da fascistização. Segundo ele, especialmente porque não havia uma ameaça real de revolução, por parte do campo da esquerda, a este sistema econômico. Se chegamos a um ponto onde parece que algumas esquerdas pelo mundo vão tentar questionar a cartilha neoliberal econômica, ainda que delicadamente, isso poderia estar mudando?

A transnacionalidade da macroeconomia atual também pode ser um fator que contribui para o aumento dos extremismos, já que os Estados-Nação, responsáveis pela democracia, são cada vez mais reféns de cenários que não podem alterar. Segundo Rosas, isso gestou na Europa uma nova onda de nacionalismos xenófobos e racistas que se aproveita do sentimento de impotência das populações, e que parece não se frear pelo Velho Continente, mesmo cinco anos depois dos escritos do professor português.

Por fim, há uma questão midiática, como demonstra Rosas: “neste quadro, a concentração da mídia e das redes sociais sob o controle de um punhado de multinacionais tem um duplo efeito perverso: tende inevitavelmente para a restrição do pluralismo informativo e da liberdade de expressão, por um lado; e, por outro, à atomização das relações sociais por via informática, à transformação de cada um em objeto fácil de manipulação centralizada e generalizada, à exacerbação de novas modalidades de ignorância, iliteracia e desmobilização cívica”.

Outra vez há de se apontar que o intelectual português resumiu perfeitamente o cenário desfavorável, sendo que as consequências de cada um destes fatores são ainda mais perceptíveis hoje, cinco anos depois. Ficando apenas no caso brasileiro: o olavismo saiu da internet e se tornou o cânon intelectual do Bolsonarismo atual, defendendo falácias científicas e ideais francamente perigosos agora também nas ruas e no Congresso Nacional; a atomização das pessoas no mundo online fortaleceu os núcleos de ódio contra minorias a ponto de dar origem, por exemplo, ao movimento red pill, dedicado exclusivamente a ser um baluarte masculino antifeminista; o pluralismo das redes sumiu entre as ondas de bots já abertamente neonazistas, alimentados pela nova onda de “liberdade de expressão” de figuras como Elon Musk.

Um novo passo foi dado desde os escritos de Rosas: Musk já se colocou como ator político transnacional, comprando brigas com o Estado brasileiro em nome de defender o projeto extremista de Bolsonaro e frear os movimentos de regulamentação das redes sociais, que minaram suas possibilidades midiáticas quando ocorreram recentemente na União Europeia (UE).

“É certo que a polarização tende, também, a facilitar e reforçar o campo das esquerdas”, é um contraponto válido já apontado pelo estudioso português. Contudo, ele mesmo rebate que esse contragolpe está se mostrando lento e muito fragmentado. Hoje, provavelmente é justo dizer que está mais unido e forte do que há cinco anos, com uma corrente antifascista cada vez mais visível pelo planeta, ainda que não com a força que deveria ter frente aos horrores do avanço da extrema-direita, alimentada pelas guerras no Leste Europeu e no Oriente Médio.

Rosas finaliza suas reflexões recordando que não quer terminar numa nota pessimista. Acredito que estes cinco anos deram algumas notas otimistas que devemos ressaltar. Só no campo da política, temos as vitórias eleitorais de Biden, Lula, Sánchez e Donald Tusk (na Polônia), para citar alguns exemplos. Não são vitórias decisivas em nenhum destes países, mas são, no mínimo, freios ao avanço neofascista. A regulamentação das mídias sociais na UE é outra importante razão para comemorar. Não é fácil imaginar que estes pequenos lampejos de otimismo possam fazer frente à onda de motivos para temermos o futuro, mas talvez sejam os últimos respiros de esperança para mantermos ao menos um ideal de não abandonar a condição antifascista nas disputas travadas neste momento.

Portugal, 50 anos depois da sua Revolução pela liberdade e contra o fascismo, se encontra agora pouco solícito aos brasileiros, o que entristece quem já viu naquele país uma recepção positiva de valores socialistas importantes para a Europa e até para o Brasil. Resta esperar e trabalhar para que, na efeméride de 60 anos, uma visita à Coimbra do Choupal (que este autor tanto gostou de fazer há alguns anos) possa acontecer em um país não mais envenenado pela xenofobia e pelo ódio. Afinal, se os portugueses lerem a obra de Rosas, terão em vista ótimos motivos para não engrandecer o passado fascista do país.

Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo

Artigo transcrito do Le Monde Diplomatique Brasil – https://diplomatique.org.br/

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