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A ginge sempre tem razão

(Bora mudar de assunto.)

(Ou não.)

Dos sentimentos, o que acho mais curioso chama-se “ginge”, na Bahia. É também “nojinho”, mas não só isso. Responde por “ranço”, em alguns meios, e você não vai encontrar uma definição precisa em nenhum dicionário, já que as palavras usadas para definir esse sentimento acumulam outros significados. Nem todo mundo sente “ginge”. Já pesquisei, tem gente que não sabe nem do que se trata, do mesmo modo que várias pessoas não sentem cheiro de barata. Será que é genético? Bom, eu sinto. O maldito cheiro e a tal “ginge” que escolho chamar assim porque acho mesmo que é um “frenesi”. Só que ao contrário.

“Pegar ginge” pode ser útil, incômodo e até trágico. Em todas as vezes inevitável e apenas parcialmente reversível, mesmo assim em raríssimos casos. Nada bom quando envolve alguém com quem o convívio é obrigatório. Pior ainda se a pessoa é simpática e faz mil esforços para agradar, totalmente inocente do sentimento do qual é alvo. Muito útil quando chega em fins de relacionamentos, depois das conhecidas pelejas para desenlaces necessários. Às vezes, a gente só quer “superar”, mas tanto exercício se faz na cabeça que acaba apertando, acidentalmente, algum botão secretíssimo e, um dia lá, acontece o impensável: nada mais na pessoa presta. Na-da. Incluindo todas as coisas das quais a gente mais gostava. Como explicar?

Seja qual for a situação, o diacho do sentimento transforma qualquer (qualquer mesmo) ato de determinada pessoa em algo asqueroso. Eu sei que é forte, mas não tenho outra palavra. Se o vivente trouxer flores, é inapropriado. Se a criatura recitar Neruda, parece um/a babaca. Mais do que isso, o jeito, em tudo, é insuportável. As roupas que a criatura veste ficam horrendas, o tipo físico vira referência de feiura, por mais beleza que qualquer um ache. O cheiro, só de lembrar, enjoa. O gestual, o tom de voz, as palavras que usa, essa é a pior parte. A movimentação do ser humano causa algo entre pena e nervoso. Nada, nada, nada chega nem a razoável. Isso tudo pode até causar certa culpa, a depender do caso. Mas, se conforme. Taí um sentimento contra o qual não adianta lutar.

Por motivo de ginge galopante e incontrolável, cancelei a minha ida à abertura da olimpíada no Brasil, em 2016, dando a desculpa de que estava “chateada”. Pra mostrar o que eu “perderia”, se não fosse, o alvo da ginge me mandou uma foto da minha credencial pro evento. Pois a ginge invadiu até a minha cara naquela foto. Me achei “nojentinha”, pra falar a verdade. Perdi a passagem pro Rio, não consegui nem atender os telefonemas dele que se seguiram ao fato. Outra vez, consegui achar Paris um lugar entediante, depois de – no meio de um romance conturbado – a ginge me pegar de jeito no voo de ida. Enjoei até de um creme hidratante que eu mesma usava na época e andei desenxabida por todos aqueles cafés, ruas, restaurantes e museus que, naquela vez, quase não tiveram graça. A ginge destruiu Paris, essa é a verdade. O que não chega a ser grave, na Bahia. O pior te conto agora: minha ginge, certa vez, acabou com Santo Amaro. Levei anos que nem o nome eu gostava de ouvir. Passou já. De uma e da outra cidade. Das pessoas, não sei se um dia vai melhorar.

Até aqui, já é sério. Mas tudo pode se agravar. Só uns três anos depois de certa ginge consegui voltar a escutar Fito Páez que eu adoro, mas foi embarcado, inadvertidamente, no pacote de coisas que se relacionavam a alguém por quem nutro tão misterioso e intenso sentimento. Nutrir é modo de dizer. Que, uma vez instalada a ginge, você não precisa “nutrir” de nada. Ela fica fortona por conta própria. Aí, pense que desgraça: Fito Páez. Que eu acho maravilhoso. Porém fiquei um tempo transferindo pra ele os adjetivos “afetado” e “chato”, por associação. Assim como a Ribeira (que pecado!) em outros tempos, entre vários artistas, bairros, comidas e cidades. Atualmente, tenho orado e vigiado pra não pegar ginge do Brasil de Minas Gerais pra baixo, mas isso é outro papo.

A ginge pode ter um marco zero. Eu lembro de uma nascendo em mim enquanto eu via uma pessoa andar na minha frente, por exemplo. Rastanopé. Detesto. Outra vez, foi olhando pra dentro do tênis na porta da casa de um rapaz que eu estava visitando para fins sexuais. Até já vi mais sujos do que aquele, mas foi aquele que me ginjou e jamais houve retorno à normalidade. Ela também pode chegar de mansinho, a danada. Em pequenos e sucessivos “achei chato”. Outra possibilidade é invadir a gente, como fazem as grandes paixões. De repente, mas sem que você identifique o “marco zero”. Às vezes, até, tomando o lugar da paixão, sem que nada se possa fazer. Infelizmente, a vida é assim.

A diaba pode até ser virtual, repare. Você nunca encontrou a pessoa presencialmente tá lá a ginge. Gritando. Tenho dois casos recentes. Um, com desfecho péssimo, porque ginjei no meio de um processo de sedução. No outro, a criatura nem sabe. Puxa conversa há meses e eu ginjadíssima, me esforçando pra manter a cordialidade. Nesse primeiro, fui acusada de “irresponsabilidade afetiva”, não exatamente com essas palavras. Mas fui. O que me leva a dar uma dica: deixe quem quiser ir embora em paz. Seja “amizade”, ficante, namorado/a. Sumiu? Deixa lá. É claro que as pessoas se afastam por muitos motivos, mas fique na sua pra ver se é ginge. Se não for,  algum esclarecimento, algum motivo vai surgir de lá. Se for, a pessoa dá graças a deus que tu também sumiu e respira aliviada. Você se liga, exclui os contatos, não passa vergonha e bola pro mato. A criatura não tem culpa, acredite. Por mais que lhe irrite. Não é racional.

(Não, não é possível ter “responsabilidade emocional” nesses casos.)

(Esteja isso certo ou errado.)

Dói, mas passa. Normal. A ginge é democrática. Tudo bem que nem todo mundo sente, mas é improvável, por mais dourado que seja o alecrim, que ele passe pela vida sem ser alvo da ginge de ninguém. Eu já devo ter sido e você também. Mesmo que eu me ache muito legal, mesmo que você se acredite massa. Mesmo que outras pessoas nos percebam fantásticos/as. Não importa. Na ginge, muitas vezes, não tem certo nem errado. É acaso, ruído, impossibilidade. Seja pelo vizinho ou por alguém que só se vê nas redes ou na televisão, o que eu sei é que o negócio é grave. Guardo a minha como proteção e patuá. Pelo sim, pelo não, eu respeito. Porque se tem uma coisa que aprendi, e na prática, é que a tal da ginge sempre tem razão.   

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