InícioNotíciasPolíticaA persistência da memória (por Pedro Norton)

A persistência da memória (por Pedro Norton)

Em 2024, já muitos chamaram a atenção para o facto, cerca de metade da população adulta mundial vai ter oportunidade de votar. É certo que algumas destas eleições, como será o caso das que acontecerão na Rússia ou no Irão, pouco mais serão do que meros atos formais, ritualistas ou performativos. Mas também é verdade que teremos importantes eleições livres e justas nalguns dos tradicionais bastiões da democracia liberal ocidental. Os portugueses terão, como bem sabemos, oportunidade de escolher um novo governo, os europeus um novo parlamento e, com muito mais significado global, os americanos escolherão um novo presidente.

Infelizmente, aquilo que, noutras circunstâncias, poderia ser uma grande festa da democracia, arrisca-se a resultar, a nível mundial, num enorme retrocesso dos regimes demo-liberais tal como os fomos conhecendo e, em consequência disso, numa perigosa erosão dos tradicionais pilares da segurança e da paz. Os sinais estão à vista de todos quantos queiram olhá-los de frente. Por todo o lado, crescem desencantos e descontentamentos profundos com esta particular fórmula de governo e de organização da cidade, assente em originalíssimas (mas também delicadíssimas) instituições materiais e imateriais, a que devemos muita da nossa paz, liberdade e prosperidade passadas, mas que parece progressivamente ter perdido a capacidade de ser geradora de esperança para franjas crescentes das populações. Sendo que – é bom ter consciência disso – não há qualquer regime político que possa sobreviver indefinidamente à desesperança. É pela desesperança que caem as autocracias, mas é também a desesperança que, mais subtil e lentamente, corrói as democracias.

São muitas e são variadas as causas da desesperança (das percepções sobre corrupção à desigualdade, da estagnação económica à disfuncionalidade do Estado). Seria uma irresponsabilidade tentar dissertar sobre todas, em poucas linhas, com um mínimo de seriedade e de profundidade. A minha proposta é bem mais modesta. Fixo-me, alternativamente, na ideia de memória. Não porque a junte ao rol das causas da desesperança, mas porque tenho para mim que esta lenta e silenciosa degenerescência dos nossos regimes demo-liberais se explica tanto pelo desencanto com as suas limitações intrínsecas e com as conjunturais dificuldades em responder aos desafios do tempo presente, como se fica a dever à falta de uma memória aguda, presente e viva sobre as suas reais alternativas.

Explico-me. Em boa parte do mundo ocidental, uma muito significativa percentagem dos eleitores que são chamados a votar, neste perigoso ano de 2024, nunca verdadeiramente experimentou uma alternativa aos regimes demo-liberais em que temos o luxo de viver. Isso é verdade para boa parte dos cidadãos da União Europeia e é uma verdade insofismável para a esmagadora maioria dos cidadãos nascidos nos Estados Unidos (as exceções serão mesmo os migrantes chegados de outras paragens). Mesmo em Portugal, uma jovem democracia no contexto europeu e um dos países mais envelhecidos do mundo, quase metade dos eleitores nasceu já depois do 25 de Abril e cerca de três quartos destes não tinham atingido a maioridade naquela data (eu próprio incluído). Igualmente relevante, uma parte significativa dos líderes que se apresentam a eleições não podem ter reais memórias da vida num regime sem eleições livres e justas, sem separação de poderes, sem liberdade de expressão, sem proteções constitucionais às minorias e aos direitos fundamentais. Entre nós, só Rui Rocha, Rui Tavares e Luís Montenegro nasceram antes – e nasceram pouco antes – da revolução. Respetivamente em 1970, 1972 e em 1973.

Porventura mais relevante, a esmagadora maioria dos eleitores e dos líderes políticos do mundo ocidental nunca experimentou o horror de viver num país dilacerado pela guerra. Se é certo que nos Estados Unidos vários líderes políticos foram chamados a combater noutras paragens (curiosamente não é o caso de Trump, o primeiro Presidente americano sem qualquer experiência prévia, governativa ou militar), em boa parte da Europa há muito que se retirou a geração que viveu o trauma da Segunda Guerra Mundial. Em Portugal nenhum dos líderes políticos atuais terá, obviamente, memórias da Guerra Colonial.

Não quero com isto naturalmente significar que o apego racional aos ideais democráticos e da paz não seja real e absolutamente convicto nas gerações que nunca viveram em ditadura ou que nunca experimentaram a guerra. Seria absolutamente injusto fazê-lo. Limito-me a dizer que a ausência dessa memória viva e vivida acarreta riscos muito específicos. Desde logo porque cria uma ilusão sobre a perenidade da democracia e da paz. No plano racional, sabemos bem que o passado está pejado de sombras e de horrores, mas a verdade é que temos dificuldade em acreditar que possam, efetivamente, reavivar-se. Talvez seja uma defesa inconsciente e necessária para viver o quotidiano – mas uma defesa perigosa, como já veremos.

Da mesma forma, esta ausência de memórias diretas torna-nos incapazes de fazer tangível um passado que nunca foi o nosso. Somos capazes de uma racionalidade abstrata, é certo. Mas, porque nos é impossível reinventar as cicatrizes das memórias vividas, nunca conseguimos verdadeiramente entender, em toda a sua profundidade concreta, a experiência de uma vida sem liberdade, sem democracia ou sem paz.

Ora é essa ilusão sobre a perenidade da democracia e da paz e é essa incapacidade de alcançar o real significado de um mundo em que não existam, que, não destruindo o nosso apego intelectual a ambas, diluem o nosso sentido de urgência e a nossa capacidade de sacrifício para as preservar. É a complacência inconsciente que nos deixa mais expostos à repetição do indizível.

Teria Mario Soares feito frente, com a coragem que conhecemos, aos delírios da esquerda militar sem um passado de prisão e de exílio? Teriam Kohl e Mitterrand defendido com o mesmo afinco o projeto de paz que é a União sem a experiência de ter servido na Segunda Guerra Mundial? Teria Adenauer dedicado a última parte da vida a reconstruir uma Alemanha pacífica e reconciliada com a Europa, se não queimassem ainda as memórias do Reich?

São respostas que nunca teremos. Assim como não temos real resposta ao problema da erosão da memória. Resta-nos, apesar de tudo, ter a consciência de que existe.

(Transcrito do PÚBLICO)

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