Caro professor,
Espero encontrá-lo bem. Sou a pessoa que escreveu aquele post dizendo que deu preferência a mulheres negras, em seguida a mulheres de qualquer etnia e só depois abriu a possibilidade de ser atendida por homens, quando da escolha de profissionais de saúde para um check-up do núcleo familiar. Postei isso em meus perfis fechados – e de poucos seguidores – ainda com o aviso de que se alguém viesse falar de “racismo reverso” eu bloquearia. Usei a palavra “merda”, inclusive, para me referir a esse tal discurso. Sim, mal-educada. Num perfil fechado. Pessoal. Onde há o aviso “aqui não é trabalho”. Pois bem.
Alguém, entre meus poucos seguidores, achou boa ideia printar o meu post e fazê-lo chegar ao seu conhecimento. Às vezes, as pessoas gostam de mim e eu nem sei. Fazem o bem até de forma inconsciente, talvez. Veja, foi muito útil relembrar que “fechada” e “pessoal” é minha casa, né? E olhe lá, que pode acontecer de a gente receber, inadvertidamente, certo tipo de vivente que tem por mau hábito comentar certas intimidades com terceiros. De forma que privacidade é um negócio todo frágil e eu já vou tirar esse papo de que “não é trabalho” dos meus perfis. Que mesmo não sendo, acaba dando trabalho do mesmo jeito. Até literalmente, vide este exemplo no qual um post doméstico vira meu artigo da semana. Isso porque, a pessoa “indiscreta”, além desse que já citei, me fez mais dois favores.
O segundo favor foi me lembrar que “se não aguenta vara, peça cacetinho” ou “se não sabe brincar, não desce pro play”. Quer dizer, se eu não quisesse discutir o assunto, fizesse minhas escolhas caladinha e continuasse postando fotos das minhas duas lindas gatas. Se publicizei uma postura, abri discussão e preciso dar conta dela, inclusive porque já passei oito anos dos quarenta, não tem mais charme nisso de “só eu que falo e pronto, acabou”. Nem no profissional nem no pessoal, como dizia aquele rapaz da televisão. Relembrada de tudo isso, se eu pudesse voltar no tempo, não teria publicado o que publiquei. Não por nada, mas é que, em determinados temas, me sinto pregando pra convertidos/as ou obrigada a interlocutores/as de baixíssimo nível de civilidade. Uma boa prosa, com o contraditório posto de forma saudável, tem sido artigo raro no Brasil contemporâneo, o senhor sabe.
Mas é bom não poder voltar no tempo. Isso porque o terceiro e último favor do/a fofoqueiro/a virtual foi me fazer atentar à importância do objeto que, àquela altura, me parecia prosaico. Este favor ainda trouxe, de brinde, um interlocutor altamente qualificado. Pois o seu comentário chegou até mim (quem leva dá um jeito de trazer, mesmo arriscando o pretendido anonimato), também em print, por WhatsApp. Eu não uso o Twitter. Imagine a ginástica que a pessoa fez pra conseguir construir essa ponte, coitada.
Esse esforço “anônimo” me fez perceber que o que eu propus em meu post e o seu comentário fazem parte de uma discussão que tem relevância coletiva, sim. Então, não faz sentido deixar isso “fechado” e sob as brumas de qualquer anonimato. Por isso, tomei a liberdade de me apresentar (havia um tracinho sobre o meu nome, em seu tuíte) e publicar esta carta no lugar do meu artigo desta semana. Evidentemente, já disponibilizando este espaço (nas versões impressa e digital), no próximo fim de semana, para um texto seu, sobre o tema, caso ache interessante. Adianto que me honraria e tenho certeza de que enriqueceria a todos/as. Mas fique à vontade.
Cada pessoa pode ter seu próprio “sistema de cotas” pessoal? É esse o objeto que me parecia indiscutível, mas me foi reapresentado, pelo senhor, com muitas “camadas” sobre as quais passei a refletir. Não tenho a sua vastíssima formação acadêmica. Talvez, nem capacidade cognitiva suficiente para alcançar as sutilezas e cabriolas das mentes mais brilhantes. Mas, o senhor vem popularizando, nas redes sociais, as discussões mais profundas. Além disso, dormi bem a noite passada (coisa rara, a insônia tá demais) e meu filho diz que eu sou corajosa. Então, vou tentar. É muita pretensão?
Sobre o meu post, o senhor comentou assim: “Sou de uma geração em que ser de esquerda era lutar CONTRA todo o tipo de discriminação. Agora, ao que parece, discriminar virou legal, progressista e supercool, desde que se discrimine o vetor certo. Acerte o vetor e você pode fazer tudo o que condenava em racistas e machistas”. Numa primeira leitura, professor, confesso que achei simplista. Rudimentar, elementar, básico, principalmente quando pensei nos sentidos da palavra “discriminação”. Mas, veja, eu não li tudo o que o senhor leu e talvez me falte perceber que “a simplicidade é o último grau de sofisticação”.
De todo modo, assumi o proposto sentido negativo da palavra “discriminação” e fiquei aqui embatucada, pensando se o senhor estava dizendo do que a esquerda é (desde o nosso tempo que não sou nenhuma novinha) na teoria ou na prática. Não quero entediá-lo com neologismos de militância, mas já ouviu falar dos tais “esquerdomachos”? Tipos comuníssimos – de esquerda e com ideias progressistas – que até ocupam lugares de destaque nas mais diversas frentes “de combate” mas que, pela atuação na relação entre gêneros, já contradizem a parte “lutar contra todo o tipo de discriminação” da sua afirmação. Se eu te contar, Iaiá, você vai se pasmar.
(Ainda sobre esse primeiro ponto, poderíamos seguir testando a realidade, checando percentuais de mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência e pessoas trans, por exemplo, em posições relevantes dentro dos quadros dos partidos de esquerda. Mas, sigamos sem pirraça.)
Sim, está nos pilares da esquerda a luta contra todos os tipos de segregação social. Exatamente por esse motivo, vem da esquerda a ampla divulgação do conceito de “reparação social” posto em prática com dispositivos como sistema de cotas em universidades e outros ambientes de “privilégio”. Ações veementemente rebatidas por quem prega a “igualdade” não compreendendo o óbvio: numa sociedade como a nossa, só podemos começar a pensar em justiça social se tratarmos grupos sociais de formas diversas. Como é o nome disso? Discriminação. Evidente que sim. Ou seja, discriminar é o que fazemos para lutar contra a “discriminação”.
Diferença, distinção, diferenciação, discernimento. É pela compreensão desses significados que a mulher negra brasileira (cis ou trans) será sempre a minha primeira escolha em tudo que possa ser benefício. Exatamente porque, em nossa perversa hierarquia social, ela só consegue estar acima dos próprios filhos pelos quais, na maioria das vezes, é a única responsável. Eu não sei se a minha postura é “legal, progressista e supercool” como o senhor afirmou. Também não ando muito preocupada com isso. Eu sou uma pessoa fora de moda, acredite. Até como carne, fumo e não faço crossfit. Quer coisa mais antiquada?
Deixa eu lhe contar uma coisa. Naquela clínica, não havia uma médica negra para atender a mim e ao meu filho. Marquei com uma mulher branca, agenda facílima. Por curiosidade, perguntei qual a disponibilidade de data do médico branco. Primeira possibilidade era só no mês que vem. E para “encaixe”, como chamam a gente ficar lá esperando pra ser atendido na hora que der. Percebe que ele não precisa de mim? Percebe que o sucesso, a progressão da carreira, a legitimidade, a vasta clientela, que tudo nele já está assegurado?
Não se trata, professor, de me negar a ser atendida por médicos (ou qualquer outro tipo de profissional) brancos. Não sou maluca. Inclusive, meu avô foi um médico branco, meu pai é um. Meu melhor namorado foi um médico branco. Tenho um grande amigo que é médico branco e Dr. Cavalcanti, um médico branco, é a quem devo não ter enlouquecido com as doencinhas comuns de meu bebê, numa cidade do interior. Sou afetivamente envolvida com gente de muitas etnias e cores de pele. Não tenho qualquer problema com homens brancos, na minha vida pessoal. Apenas sei o lugar que ocupam e reconheço que, como grupo social, eles não precisam de mim pra nada.
Viver, pra mim, é, também, atuar na coletividade. Então, sim, tenho meu próprio “sistema de cotas” quando busco profissionais. É um check-up numa clínica onde nenhum desses amados médicos brancos trabalha. É a que meu plano de saúde cobre. Então, peço por uma médica negra. Da mesma maneira que, não tendo relação afetiva com nenhum/a atendente em uma loja, me dirijo à mulher negra para ser atendida. Do mesmo modo que abasteço meu carro com a frentista negra, se houver. Nós sabemos, eu e elas, o quanto vale “ter a preferência do/a cliente” num mercado de trabalho que apenas parece includente. Conhecemos os bastidores, professor. Eu e elas. Principalmente quando a maternidade se inclui.
Também sonho (e trabalho, todos os dias, para) com um mundo no qual ninguém seja nem precise ser “discriminado”. Agora, a palavra empregada em ambos os sentidos ao mesmo tempo. Aí, o senhor sugere que eu faço o mesmo que racistas e machistas. Sim, me senti ofendida. Essa parte achei desonesta porque, evidentemente, não lhe faltam recursos intelectuais. Conduzir a manada à falácia não é legal, progressista nem supercool. Eu não acho. “Racismo reverso” à essa altura do campeonato? Dizer que feminismo é o mesmo que machismo em 2022? Não. Não dá.
Por essa linha, precisaríamos questionar o conceito de feminicídio, as políticas inclusivas, e até a existência das delegacias especializadas em violência contra a mulher. Programas de transferência de renda também seriam negativamente discriminatórios, pensando assim? Porque todas as políticas afirmativas e de reparação têm como base, exatamente, discriminar. Ou tudo vale no coletivo e institucional, mas vira absurdo se praticado em âmbito individual? Tratar cada pessoa em seu próprio contexto é algo que vem sendo ensinado pela esquerda. Mas eu posso não ter entendido nada, claro.
Gosta de assistir corridas? Eu não. Mas elas trazem uma boa metáfora. Tem o grid de largada, não é? Os carros (pessoas, motos, bicicletas) não saem lado a lado. Não sei quais são os critérios ali, nem o que garante bons resultados. Mas na vida a gente larga assim também. Uns lá na frente, alguns no meio, outros lá atrás. Não estamos lado a lado. Justamente por isso, vou continuar ajudando a abastecer o tanque de quem acho que está em desvantagem. Tô ali pelo meio. Por isso, posso ajudar, mas também aceitar a ajuda de quem percebe as minhas próprias desvantagens em relação aos eternos pole positions, aos que largarão sempre à frente, só por existirem, independentemente de competências específicas e habilidades.
É como diria aquela cantora Kátia, professor: “não está sendo fácil”. Eu podia estar aqui na minha, o senhor aí na sua, cada qual em sua paz. Mas o povo fofoca demais, quer ver treta, por isso que o Big Bróder faz sucesso e acharam essa edição chata que o povo brigou de menos, pelo jeito. Mas o senhor não disse que eu sou “mal amada” (alguns leitores amam dizer isso… haha) nem eu lhe chamei de chato (falam isso do senhor, já ouvi). A discordância é na matéria, em um tema que merece ampla discussão, e isso me dá prazer. Não é pessoal e, justamente por não ser, veio parar aqui. Foi bom variar no estilo, fazia tempo que eu não escrevia uma coisa parecendo carta. Mas não é forçar uma intimidade inexistente, foi só recurso de linguagem, certeza de que o senhor entendeu. Fique à vontade, também na forma, caso sinta vontade de “responder”.
Forte abraço, Flavia