Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) identificou diversas irregularidades no tratamento de dependentes químicos internados na extinta Casa Terapêutica Salve a Si, localizada no Entorno do Distrito Federal.
O lugar foi fechado em 2024, após os responsáveis serem acusados de desviar recursos públicos provenientes de convênios com os governos federal, do DF e de Goiás. Em um dos relatos descritos no relatório do MNPCT, órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH), os pacientes relataram que eram submetidos a uma punição batizada de “alojamento detox”, que consistia em deixá-los trancados e submetidos a torturas psciológicas quando infrigiam alguma regra ou tentavam fugir.
“Aqueles que fogem, são perseguidos pelos monitores e, se encontrados, são colocados no alojamento ‘detox’, sem possibilidade de sair, de contato com outros ou familiar, pelo prazo de 48 horas para efetivo desligamento”, diz o documento do MNPCT. “Durante a permanência no ‘detox’, os monitores realizam pressão psicológica para a permanência e a restrição física para vulnerabilizar aquele que não quer permanecer.”
“Foram observadas restrições severas à liberdade pessoal, com trancas e cadeados em portas e restrições a comportamentos, incluindo a proibição de comunicação externa, hábitos normais da sexualidade do indivíduo e imposição de práticas religiosas”, aponta o relatório.
Ainda na Salve a Si, a equipe de inspeção encontrou vários envelopes com dinheiro do Bolsa Família, benefício recebido por alguns dos acolhidos. “Ou seja, há uma apropriação pela instituição dos valores”, indicam.
Além disso, para entrar na Salve a Si, os pacientes tinham que assinar um termo de doação de celulares e, em alguns casos, os aparelhos eram doados para outros acolhidos.
Pacientes amarrados
Já no Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo (HSVP), onde uma interna de 24 anos morreu após ficar amarrada, os casos de imobilização de pacientes se destacam negativamente na conduta da unidade para com os pacientes.
A equipe do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura esteve no local em 6 de março de 2024 e flagrou uma atuação indevida. Por volta de 9h, uma paciente passou a gritar e jogar contra o chão pedaços de madeira que estavam em cima de uma bancada. Inicialmente, alguns profissionais chamaram a atenção da mulher e, poucos minutos depois, começaram a cercá-la, “o que nitidamente levou a uma agitação maior da usuária do hospital”, segundo o MNPCT.
Uma médica que estava no hospital pediu que a mulher fosse levada à Unidade de Proteção Especial (UPE), ala para onde são levados alguns acolhidos que precisam de maior atenção. Lá, a paciente teve pulsos, joelhos, calcanhares e tronco amarrados com ataduras junto a uma cama.
Segundo o MNPCT, a amarração não é reprovável, mas os médicos deveriam ter usado tecido largo e não elástico. Duas horas depois, a paciente foi solta, mas novamente contida em questão de minutos.
“A usuária virou uma bandeja com copos plásticos com água. Novamente, observa-se que não havia um risco iminente de autolesão ou lesão a terceiros. A segunda contenção só reforçou, assim, os indícios de que esse procedimento, além de estar sendo feito de maneira incorreta e por períodos prolongados, está sendo utilizado como instrumento de disciplina e punição, o que é explicitamente vedado tanto pela Resolução 427/2012 do COFEN quanto pelo Protocolo da SES-DF.
Já nessa segunda vez, a mulher ficou amarrada de 11h17 até 17h58 — ou seja, por quase sete horas. Segundo o MNPCT, a mesma usuária foi novamente contida no dia 19 de março de 2024. Desta vez, no entanto, não houve registro de informações mínimas no prontuário, tampouco detalhes sobre o horário de soltura.
De acordo com os registros de contenções no período entre 19/01/2024 e 19/04/2024, houve um total de 17 contenções em 10 pessoas, isto é, as mesmas pessoas foram contidas várias vezes.
Abusos físicos e verbais
Ainda durante a inspeção, pacientes relataram abusos físicos e verbais por parte de funcionários do São Vicente de Paulo. Os profissionais usavam de empurrões, ameaças e falas como “você nunca vai sair daqui”.
A contenção física de usuários necessariamente envolve o uso da força física, e isso fica, literalmente, na pele das vítimas:
Em novembro de 2023, cinco pacientes “fugiram” do HSVP, durante uma greve dos vigilantes que atuam no hospital. À época, o Mecanismo conversou com esses trabalhadores, que disseram que, muito frequentemente, participavam da contenção de acolhidos na unidade.
Durante um episódio de fuga, um paciente teria dito a um dos vigilantes: “Quero me tratar em casa e no CAPS, não em prisão”. Além disso, frases e escritos de usuárias em muros da ala feminina expressam a percepção de que elas estão presas na unidade.
Na conclusão do relatório, o MNPCT faz diversas recomendações de melhorias à Secretaria de Saúde, ao GDF e a outros órgãos públicos, como mapeamento do perfil das pessoas atualmente internadas, formação de profissionais do HSVP, fortalecimento do vínculo familiar de pacientes entre outras.
Caso deste Natal
No caso que trouxe novamente à tona a precariedade no HSVP e na extinta Salve a Si, uma paciente de 24 anos morreu após uma crise. Ela passou a noite de Natal (24/12) amarrada.
A mulher teve uma crise, começou a gritar e chegou a sofrer uma queda. Os médicos, então, tentaram medicá-la, mas ela recusou e foi imobilizada.
No dia 25, pela manhã, a paciente sofreu convulsões. Ela foi desamarrada, mas seguiu no leito da enfermaria. Já à noite, às 19h55, a equipe médica encontrou a mulher sem batimentos cardíacos. Os profissionais tentaram reanimá-la, sem sucesso.
O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi acionado, fez uma intubação e deu início a outras manobras de reanimação da vítima. Não foi possível, no entanto, reverter a situação, e o óbito foi declarado às 20h41.
Transferência
O Metrópoles conversou com uma fonte da Secretaria de Saúde sobre o caso. Segundo ela, chama a atenção o fato de a paciente não ter sido transferida para outra unidade da rede pública, seja para o diagnóstico, seja para o tratamento da crise. Em vez disso, a mulher foi imobilizada durante a madrugada.
Outro ponto questionado foi a estratégia de acompanhamento da paciente após a aplicação da medicação, na manhã do dia 25. Para a fonte, o monitoramento deveria ser constante pela equipe na sala de observação.
Outro lado
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Saúde (SES-DF) informou em nota que “a causa da morte da paciente no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) ainda está sendo investigada pelo Instituto Médico Legal (IML)”.
A pasta acrescenta que o Relatório do Atendimento de Emergência “relata ainda que foi realizada a monitorização com desfibrilador e a aspiração do líquido, com saída de grande quantidade de conteúdo gástrico, além da intubação orotraqueal”.
“Foi cumprido também o protocolo de reanimação. A paciente foi encaminhada para a sala de emergência, mantendo a RCP com cinco ciclos de adrenalina, sem que ela apresentasse batimentos cardíacos. O Samu continuou o protocolo, sem sucesso. O óbito foi registrado às 20h41. O relatório médico informa ainda que a paciente possuía histórico de crises epilépticas convulsivas atípicas”, acrescentou a pasta.
Sobre o fechamento do hospital, a SES-DF afirmou que “instituiu um grupo de trabalho para elaboração de um plano de ação para desmobilização dos leitos psiquiátricos do DF, incluindo os do HSVP”.
“A medida prevê desmobilização progressiva, que ocorrerá em consonância com a ampliação da rede de serviços de saúde mental e a abertura de novos Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Também está previsto o fortalecimento do atendimento às urgências e emergências e dos cuidados a crises em saúde mental, que será feito de forma descentralizada, incluindo serviços nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), hospitais gerais e, principalmente, nos Caps”, concluiu.