InícioEntretenimentoCelebridadeAngola e Bahia, origens e vertigens de mundos

Angola e Bahia, origens e vertigens de mundos

“Quando não souber para onde ir, olhe para trás e saiba pelo menos de onde você vem”.

Esse provérbio africano já me chegou por diversas vias, mas nunca soube exatamente sua origem, nem de onde ele vem. Só o fato de ser chamado de africano já incorre num erro que tanto se vem criticando sobre a tal África imaginária, que parece uma massa amorfa, um aglomerado de negros agindo e pensando igual, com culturas próximas e tradições parecidas.

É um erro que recai tanto sobre muitos que têm preconceito com o continente, quanto sobre muitos que exaltam a tal africanidade, o afro, a mama África, mas que parecem nunca ter pisado os pés lá.

Acabei de passar nove dias em Angola. Digo Angola porque, graças a Raul Rosário, ator angolano, fui levado ao norte do país, chegando até o Caxito. E graças a Alessandra Silvestre; que além de me levar mais pro sul, foi também responsável direta pelo meu contato com José Mena Abrantes e o Elinga Teatro, que me convidaram para seu festival. E foi ela também quem me acolheu, por lá (e devo creditar também a Sérgio Guerra uma parcela de responsabilidade por minha ida).

Não fosse por isso, devia eu ter escrito que havia passado nove dias em Luanda, apenas (conhecer Luanda não é conhecer o continente africano). Mas foi lá, realmente, que pude, infimamente, ter uma ideia de costumes e culturas. E foi lá que mais pude ver de onde eu vim, olhando para trás, para os lados e para frente.

Aquele clichê de sermos iguais em nossas diferenças funciona perfeitamente, neste caso. Luanda é muito, mas muito Salvador, em seus costumes e culturas. Mas é, também, muito diferente de nós. 

No pouco que vi de manifestações tradicionais, era tudo muito diferente daqui. Mesmo em minhas referências que tenho do candomblé Bate-Folha, de tradição congo-angola, pude perceber o quanto tudo que criamos aqui, na Bahia, é muito diferente, misturado e realmente invenção nossa. Há tanto de Angola, mas há também de diversas outras culturas. E sempre me pareceu estranha essa mania de evocar certas raízes como se ali existissem as origens absolutas de tudo. E como se antes de certo ponto, não houvesse outro, sempre indo mais para trás de tudo.

Logo no primeiro dia, a primeira surpresa. Indaguei a pessoas das mais diversas classes e culturas qual o prato mais típico dali, e todos citaram imediatamente o funge. Uma espécie de pirão, feito a partir da mandioca ou do milho. Eu realmente pensava que um prato típico pudesse ser algo de origem 100% africana, mas tanto a mandioca quanto o milho são provenientes da América do Sul e Central. E isso é algo que preocupa ou incomoda o angolano? De jeito nenhum. Percebi que a miscigenação é algo muito bem assimilado nos lugares onde frequentei, e discussões sobre cores e origens pareciam passar ao largo do que mais interessava a todo mundo com quem eu conversava: uma discussão sobre sua própria história e seu protagonismo quanto a ela, como povo angolano. E um olhar sempre para o futuro.

Assisti a quatro espetáculos locais. Li três escritores do país enquanto lá estava. E pude conversar com variada gente, de toda classe, idade, origem.

O angolano tem uma forma típica de chamar as pessoas, de acordo com a idade. Jovens chamam gente de gerações anteriores de tio e tia, chamam de prima/primo os próximos, e todos chamam aos mais velhos de “mais velhos”.

Com João Gamboa, Constantino Calamba e Papel Assis, meus anjos de guarda mais velhos, aprendi muito sobre Angola.

Com José Mena Abrantes, segui aprendendo, desde quando realizei um evento com ele em Salvador, e espero seguir aprendendo sempre que puder. Com Raul, mais visões sobre seu povo. Djassy, Sunny, Solange, Frampênio, tantas pessoas passaram por mim nesses dias de forma importante que seria injusto fazer listas e valorações. Mas não poderia deixar de reservar um espaço especial nessa história. Pude ter, como companheiro de seguidos cafés da manhã – lá o matabicho -, almoços e jantares prolongados, o escritor angolano José Eduardo Agualusa. Eram longas conversas diárias sobre história e cultura de lá, sobre a África Subsaariana, e também sobre literatura e afins.

E o que mais me chamou atenção em todos esses papos, com toda essa gente, foi ver um povo que quer ser protagonista de suas glórias e desgraças. Causou-me impressão (para ecoar aqui os falares de lá) que mesmo com a colonização tendo acabado em 1975, algo muito recente, em nenhuma conversa se falava em portugueses. O foco era sempre em seu próprio povo, como ele lidou com seus acertos e erros, numa assunção de culpas e conquistas. 

A discussão era sempre “porque o MPLA agiu assim”, “porque a rainha Ginga agiu assado”, “porque a UNITA fez isso”, “porque as famílias escravistas negras ricas angolanas tradicionais fizeram aquilo outro”. Nas conversas, nas peças, na literatura, vi um povo preocupado com sua história e seu protagonismo. Preocupação com toda a desgraça das guerras, da corrupção, ignorância, esculhambação e da má administração, que tanto prejudicaram e prejudicam o país. Mas também um povo atento à toda sua riqueza cultural, às suas raízes diversas e suas influências sofridas de culturas de todo mundo, numa busca não por uma identidade, por uma ancestralidade, por uma separação, pureza e valoração divisionista; mas uma construção de saberes e sabores que apontem para algo melhor, mais rico, complexo e agregador. Uma busca pela construção de um povo, de uma cultura, de uma sociedade que se sabe colorida, diversa, plural e misturada.

Sim, em Angola eu voltei às minhas origens. Senti isso mais que em qualquer outro país. Todas as vezes que falei isso, lá, recebi confirmação e endosso dos meus, tão meus que eram os angolanos, ali, trocando comigo; tão diferentes e iguais. 

E, em Angola, acabei por não só olhar para trás, mas também pensar uma possibilidade de futuro.

Um futuro que, espero, seja mais próspero e unido, plural e acolhedor, tanto lá – como tão bem já se percebe -, quanto cá.

Porque, afinal, a busca radical pela tradição, distinção, separação e pureza da raça – essa palavra já cientificamente abolida – nunca trouxe boa coisa para a humanidade. Apartar seres humanos por qualquer pretensa diferença?

A construção de muros e cercas nunca fez um mundo melhor.

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