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Anjos entre a lama e a virtude

De tempos em tempos, gosto de voltar a certos filmes como quem volta a certas cidades. Sobretudo quando vai alta a madrugada e me deixo levar pelo silêncio da casa e da rua adormecida. O vinho já ao final, o sono chegando, mas principalmente um desejo de permanecer desperto matutando. Na semana retrasada foi a vez de Asas do Desejo, clássico de Wim Wenders que me comoveu e deslumbrou como não havia acontecido da primeira vez. Tenho uma vaga lembrança dessa sessão: uma noite de final dos anos 80, em algum cinema de arte em Salvador. Eu nem tinha 20 anos.

Foi bom reencontrar Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) e me deixar levar por seus pequenos conflitos celestiais e mundanos. “Anjos sobre Berlim, o mundo desde o fim”, como cantou Caetano. Era ainda a cidade sombria e enevoada cindida pelo muro, que em breve ruiria. A mesma cidade de Christiane F, Drogada e Prostituída, livro que li no início da adolescência e me marcou muito. Uma velha edição do extinto Círculo do Livro, emprestada por um amigo. Foi a primeira vez que ouvi falar em heroína, talvez a mais devastadora das substâncias químicas.

Nunca fui a Berlim, hoje uma metrópole muito mais cosmopolita e efervescente que na época da Guerra Fria. Mas volto a Asas do Desejo: Damiel e Cassiel têm a eternidade ao seu dispor, mas lhes falta o ardor da vida humana: os prazeres prosaicos, as pequenas epifanias sensoriais, o correr inevitável das horas, o amor e o desejo como faces complementares da mesma moeda. Tudo para eles é fingimento e fastio: testemunham indefinidamente o curso da existência e dos seres humanos, como sombras imaculadas que são. É sobre isso que reflete Damiel num diálogo que travam dentro de um carro:

“Às vezes fico farto com a minha existência espiritual. Gostaria de deixar de flutuar eternamente nas alturas. Gostaria de sentir meu peso. Acabar com a ausência de fronteiras e me unir à Terra. Gostaria de, a cada passo, a cada lufada de vento, ser capaz de dizer: ‘Agora, agora e agora’. Não mais ‘para sempre’ e ‘pela eternidade’. Sentar no lugar vago da mesa de cartas e ser cumprimentado, mesmo que por um pequeno gesto de cabeça.”

Damiel continua: “Não quero gerar uma criança ou plantar uma árvore, mas seria bom chegar em casa depois de um longo dia e alimentar o gato, como faz Philip Marlowe. Ter uma febre, melar os dedos de preto com o jornal, se entusiasmar não só com coisas espirituais, mas com uma refeição. Com o contorno de um pescoço, com uma orelha. Mentir. Sentir o sorriso de alguém. Ao andar, sentir os ossos se movimentando. Por fim, ‘achar’, ao invés de ‘saber’”.

Convertido em ser carnal e mortal, Damiel se depara com todas essas descobertas, mas também com as limitações da vida humana. Um vislumbre, ainda que vago, da nossa grandeza e, paralelamente, da nossa insignificância. Mais do que qualquer coisa, ele descobre o poder imensurável do amor. Provavelmente provará, porque a vida não é só idílio e contemplação, da desilusão que brota da rotina, da paixão que arrefece, do cansaço que desanima. Provará do orgulho, da insensatez e do remorso, tão inerentes a nós quanto dormir ou despertar.

“Agora sei o que nenhum anjo sabe”, diz ao final do filme. Por outro lado, passará a ignorar tudo aquilo que só os anjos conhecem? A condição humana fará com que perca, entre outros, o poder de mitigar a desdita alheia? Provavelmente não. Mesmo porque até alguns de nós, precários arremedos de Serafins e Querubins, somos dotados de benevolência. Damiel tem a índole compassiva e parece disposto a prosseguir fazendo o bem.

É curioso que o mesmo ator que faz um anjo bom também tenha encarnado no cinema aquele que é provavelmente a maior personificação do mal: Adolf Hitler. Não deixa de possuir certo simbolismo, como se mal e bem pudessem conviver numa mesma pessoa. Mas é assim que acontece, não? Em maior ou menor medida, somos um somatório de altruísmo e abjeção. Anjos habitando provisoriamente a Terra, como Zilda Arns ou Irmã Dulce, são exceções que confirmam a regra.

A humanidade habita uma zona cinzenta feita de ambiguidades, onde perversão, ódio e estupidez convivem lado a lado com dignidade, sabedoria e piedade. Impossível separar bons e maus em departamentos estanques, como jogadores em uma partida de vôlei. Em nós, essa dicotomia não existe. Carregamos esse estorvo e nos refestelamos com ele na lama e na virtude. É justamente essa imperfeição que faz de nós uma espécie assustadoramente fascinante. Damiel que o diga.

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