Indicada a dois prêmios Emmy, o mais importante da televisão mundial, a dramaturga Manuela Dias, 40, autora de diversas produções globais, incluindo a novela Amor de Mãe e a série Justiça, pelas quais recebeu as indicações, é baiana nascida em Salvador. E é hoje um dos nomes mais respeitados da teledramaturgia brasileira.
Atualmente debruçada sobre a escrita de duas novas séries para a TV Globo, emissora na qual ingressou aos 20 anos de idade, ela faz sua estreia na literatura com o romance Tilikum, onde toma emprestada a cronologia da vida de uma baleia orca presa num parque temático americano para contar a história de um homem, portador de uma mutação genética que o faz ser diferente de outros homens.
Entusiasmada com a repercussão da obra literária, a artista não quer parar mais de fazer literatura. O próximo livro, adianta, será o Diário de Dona Lurdes, que conta a história da personagem vivida na novela pela atriz Regina Casé, após a saída dos filhos de casa. “É Lurdes dois anos depois que a novela acaba, em casa, sem os filhos, sofrendo a síndrome do ninho vazio. Mas, claro, com aquele jeito dela, original e sempre com muito humor”, explica.
Viciada em trabalho, a escritora diz sentir falta da Bahia, onde está construindo uma casa e local para onde sempre volta para recarregar as baterias. E é no seu estado natal, onde a trama das duas série que está escrevendo se passam. Uma delas, Conselheiro e a Menina Azul, é inspirada na Guerra de Canudos e mistura a narrativa do último ano da guerra com as memórias da escritora Conceição Senna. A outra, é a segunda temporada de Justiça, que se chamará Justiça 2, cuja ação também se passa na Bahia.
Formada em Jornalismo, a soteropolitana estudou cinema com Orlando Senna (Bahia) e Garcia Marques (Cuba), é vegana, meditante, ativista pelo Meio Ambiente e produtora de produtos orgânicos. Aos 40 anos, a autora, que estreou como autora de teatro aos 19 anos, já foi duas vezes indicada ao Prêmio Emmy, e conquistou diversos prêmios internacionais como o de Melhor Novela (Amor de Mãe) no Festival de Veneza; Melhor Série (Justiça) no APCA, Melhor roteiro no Festival de Brasília com os filmes O Céu Sobre Os Ombros e A Hora e Vez de Augusto Matraga. Manuela Dias vive no Rio de Janeiro com a filha Helena, de seis anos, fruto do seu relacionamento com o cineasta Caio Sóh.
Nesta entrevista exclusiva ao CORREIO, Manuela Dias fala sobre o cotidiano intenso de trabalho, família, futuro e sua paixão pela escrita, carreira que trocou pela de atriz iniciada ainda menina. Para a artista, a escrita é sua contribuição para mudar o mundo.
No seu primeiro livro de ficção você adaptou a história de uma baleia para a vida humana. O que a levou a criar esta história? Descrença na humanidade?
De forma alguma! Pelo contrário, o que me leva a escrever todo dia é acreditar que podemos nos tornar realmente uma humanidade. Pois o modelo do que chamamos de “humanidade” hoje exclui cerca de 70% dos humanos. Então, existe algo errado. Um desafio a ser cumprido. Precisamos nos repensar e com urgência.
Estamos vivendo num mundo cada vez mais sem empatia, como lida com isso nas suas histórias?
Esse é o ponto central de tudo: empatia. A capacidade de se colocar no lugar do outro é fundamental para que consigamos construir uma sociedade minimamente justa. A intolerância religiosa, a xenofobia, os radicalismos que servem de combustível para a violência, tudo isso pode ser amenizado através do desenvolvimento da empatia. Aliás, o ato de ler ficção estimula muito a prática da empatia, pois está cientificamente provado que ler nos ajuda a treinar a ferramenta da empatia, que é exercitada em algumas partes do cérebro, como a amígdala.
(Divulgação) Personagem de Regina Casé em Amor de Mãe, dona Lurdes ganha novas histórias |
Qual a lição você acha que as pessoas aprenderão, ou deveriam aprender, sobre se colocar no lugar do outro?
Existe um princípio geral, de não fazer com o outro o que não queremos que façam com a gente. Mas existe um passo além, porque às vezes o que é importante para o outro não é importante para nós, e mesmo assim temos que respeitar. Não precisamos concordar com algo para respeitar. Assim como esperamos respeito mesmo de quem discorda de nós. É a base para o diálogo.
Você tem essa preocupação sempre de provocar reflexão em qualquer linguagem que usa artisticamente?
Não é uma preocupação exatamente, é quem eu sou. Escrevo para mudar o mundo em tudo que estiver ao meu alcance. Essas mudanças são pequenas, pontuais e emocionantes.
Acredita que a humanidade é capaz de mudar e fazer um mundo melhor?
Não sei. Mas se não formos capazes e seguirmos destruindo o planeta, ocupando o topo dos predadores da Terra, a mineração, os agrotóxicos, o plástico, a questão sanitária… vamos caminhar para a extinção da nossa espécie. O planeta não vai morrer. Nós é que vamos.
Você começou sua carreira como atriz. Como foi essa mudança para autora de teledramaturgia?
Fui atriz dos 7 aos 19 anos quando escrevi minha primeira peça, SOUL 4. A partir daí me encontrei como dramaturga e nunca mais atuei.
(Divulgação) |
Você foi a primeira autora a estrear como titular diretamente no horário nobre da Globo em 38 anos, e ainda se viu em meio à maior crise sanitária do último século no meio da novela. Como foi lidar com tudo isso?
Foi um imenso desafio… Eu entrei na Globo quando tinha 20 anos. Levei 20 anos para virar autora titular na casa, aprendi muito fazendo tipos muito variados de programa. De Sandy e Júnior e Bambuluá a Fama, Xuxa, Zorra Total, Aline, Grande Família, Faça Sua História. Aí virei colaboradora de novela e fiz Cordel Encantado e Joia Rara com a Duca Rachid e a Thelma Guedes, que foram absolutamente maravilhosas comigo. Fora da Globo já tinha assinado duas peças de teatro e mais de cinco longas metragens, mas esse espaço autoral só se abriu na Globo para mim com o Ligações Perigosas, protagonizado por Selton Melo e Patrícia Pillar. Daí veio o Justiça, que foi um marco, eu acho. Até porque não era uma adaptação, mas uma história original minha, já com a minha pegada mesmo. E então veio Amor de Mãe… O que quero dizer é que não foi rápido, como algumas pessoas pensam. Minha carreira não teve nada de meteórica (risos). Quando chegou a hora na novela eu tinha bastante experiência e contava com uma intensa rede de segurança com o Ricardo Linhares e o Silvio de Abreu, além do Zé Luiz Villamarim. Mas claro que fiquei morrendo de medo, porque nunca estamos completamente prontas. E quando chegou a pandemia foi uma novidade para todos… Foi intenso, minha filha tinha 3 anos… Mas eu tive estrutura e todo apoio. Sei que, mesmo com uma novela paralisada eu fui uma privilegiada durante a imensa crise sanitária que assolou o mundo. Não tenho do que reclamar.
Você já foi indicada duas vezes ao Emmy, por Justiça e Amor de Mãe. Como encara esse reconhecimento?
Reconhecimento é amor social, como diz o maravilhoso filósofo, Alan de Botton. Não economizo nada em mim quando escrevo, nem meu tempo, nem meu sono, nada. Então, quando vejo que meu esforço teve efeito, fico muito feliz.
Você já disse que sexta-feira pra você é um dia comum, não leva a sério o “sextou”. Se considera workaholic?
Não sei o que é esperar por uma sexta feira… Trabalho nos finais de semana. Como eventualmente posso não trabalhar numa quarta. Apesar de ser raro! (risos). Amo meu trabalho loucamente e não existe, para mim, distinção entre vida pessoal, vida profissional, vida de mãe, vida da namorada. Eu tenho apenas uma vida que engloba tudo isso. Escrever para mim é mais do que trabalhar. É pensar, respirar, rezar, ocupar meu espaço no mundo. Mas talvez, visto de fora, soe apenas como workaholic…
Com sua família encara essa sua devoção ao trabalho?
Minha filha hoje tem 6 anos e definitivamente queria que eu trabalhasse menos. Meu namorado entende e é simplesmente incrível! Vibra com tudo e me incentiva muito. Temos uma parceria muito linda. Meus amigos estão acostumados que eu sou assim mesmo e se divertem. Na minha festa de aniversário esse ano eu lancei o TILIKUM no Rio. É tudo junto! Festa, livro, amigos, trabalho.
“Não sei o que é esperar por uma sexta feira… Trabalho nos finais de semana. Como eventualmente posso não trabalhar numa quarta. Apesar de ser raro! (risos). Amo meu trabalho loucamente e não existe, para mim, distinção entre vida pessoal, vida profissional, vida de mãe, vida da namorada. Eu tenho apenas uma vida que engloba tudo isso”
Você retornou ao personagem de Regina Casé em busca das suas anotações mais pessoais, que virão à tona em breve reunidas sob o título de O Diário de Dona Lurdes. O que devemos esperar desta nova obra e quando será lançada?
O Diário de Dona Lurdes conta a história da nossa heroína dois anos depois que a novela acaba. É Lurdes em casa, sem os filhos, sofrendo a síndrome do ninho vazio. Mas claro, com aquele jeito dela original e sempre com muito humor.
Depois de Tilikun você já tem mais dois livros prontos. A literatura andará sempre alinhada com a dramaturga?
Não sei! O que seria uma literatura ligada com a dramaturga? Não faço projetos assim… Eu tenho as ideias e acomodo meu tempo para realizá-las.
Você é baiana, mas vive no Rio. O que você considera que são características locais que persistem em você?
Nunca deixei de ser baiana. A Bahia é minha terra, onde nasci, onde vive toda minha família, onde estou construindo um cantinho pra mim. Eu amo Salvador. Fiz Jornalismo na Facom. Na minha turma tinha eu, Jean Wyllys, Wagner Moura… É impossível pensar minha identidade fora do contexto baiano.
(Divulgação) Manuela Dias e a filha Helena, de seis anos: cobrança |
Você está escrevendo dois novos projetos de dramaturgia, um sobre a Guerra de Canudos e a série Justiça 2. O que representa para você como baiana revisitar a história de Antônio Conselheiro e como está sendo a construção desta obra?
A minissérie sobre Canudos se chama Conselheiro e a Menina Azul e mistura a narrativa do último ano da guerra com as memórias de Conceição Senna em 1940, inspirada no livro que ela escreveu A menina as almas e a guerra. Justiça 2 também se passa na Bahia!
Do que sente falta da Bahia? Ou não sente? Qual a sua relação com a cidade onde nasceu?
Sinto falta de tudo. A luz, o vento, acarajé, o Santo Antônio onde sempre fico, minha família, minhas primas… Sinto falta dos lugares que ocupam minha memória como Itaparica onde veraneei a vida toda, a casa da Federação onde meu avô morava e sua mangueira frondosa. Vou à Bahia muitas vezes por ano e estou sempre conectada com essa ancestralidade.
Narrativa de Tilikum é sobre falta de empatia
Tilikum é o livro de estreia da dramaturga Manuela Dias na literatura e chegou às livrarias de todo o país pela Editora Melhoramentos. Na obra, a escritora toma emprestada a história real da vida de uma baleia orca, capturada aos dois anos para servir de diversão ao público de um parque temático americano, para contar a história de um homem chamado Tilikum, portador de uma mutação genética que o faz ser diferente de outros homens. “Mas não menos homem do que qualquer um de nós”, como a autora explica.
A narrativa ágil e bem montada leva o leitor a refletir sobre questões importantes como perda de liberdade, violência, exploração, humilhação vividas pelo personagem que parece carregar dentro de si o grito de todos aqueles que sofrem com a violência, o abandono e a falta de empatia.
Para o poeta, letrista e roteirista Geraldo Carneiro, da Academia Brasileira de Letras, que assina a apresentação do livro, “por trás da narrativa de Manuela Dias há um ensaio antropológico cujo verdadeiro protagonista é uma forma de opressão”.
Serviço:
Título: Tilikun
Autora: Manuela Dias
Editora: Melhoramentos
142 páginas
Valor: R$ 49,90