Mateus tinha três meses quando recebeu diagnóstico de desnutrição infantil. Inchaços nas extremidades do corpo, dermatite e diarreia foram alguns dos sintomas que fizeram a família levar o menino a um hospital em Candeias, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), onde moravam. A situação do recém-nascido é uma regra na Bahia, pois o estado lidera entre os estados com maior número de internações de bebês pelo problema. Salvador, por sua vez, é a primeira do ranking de hospitalizações das crianças menores de 1 ano, entre as capitais.
Na Bahia, 480 crianças de 1 a 12 meses de vida foram internadas por desnutrição infantil em 2022. O número representa 17% das 2.754 hospitalizações pela mesma condição em todo o Brasil, no ano passado. Em Salvador, foram 159 hospitalizações.
As zonas próximas de Salvador também são as que mais sofrem. Camaçari (11 internações), Simões Filho (20) e Lauro de Freitas (10) têm os maiores números depois da capital.
A Bahia lidera o ranking nacional desde 2016. A partir daí o aumento foi progressivo até 2021. Ao logo desses seis anos foram: 330, 369, 466, 470, 598 e 618 internações, respectivamente. Em 2022, apesar do recorde nacional, houve uma queda de 22% de casos. Em 2015, apenas Minas Gerais e São Paulo estavam à frente da Bahia. O levantamento com todos esses dados é do Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância), que utiliza informações do Sistema de Informações Hospitalares (SHI) do Ministério da Saúde (MS).
Mateus* foi diagnosticado com desnutrição ao ser internado. “Ele era alimentado desde 1 mês de idade com leite de vaca porque a família achava que ele se alimentava melhor com leite de vaca do que com leite materno”, conta o gastropediatra Tiago Oliveira, responsável pelo atendimento da criança. O bebê foi regulado e internado em um hospital de Salvador.
O gastropediatra explica que a desnutrição acontece por alguma doença que impede a absorção de nutrientes, por ingestão quase que exclusiva de alimentos industrializados, pouco nutritivos, ou privação de alimentos devido à condição sócio-econômica. Em todos os casos há desequilíbrio nutricional. Na Bahia, aponta o especialista, a privação de alimentos é apontado como principal motivo para os casos que chegam aos hospitais.
“Eu trabalho no SUS [Sistema Único de Saúde] e é frequente em população de baixa renda, muito precária, ver nesses bolsões de pobreza problemas relacionados à desnutrição crônica pela falta de acesso à comida. São casos mais graves. Já no particular, é mais caso de erro alimentar, quando crianças estão com hábitos distorcidos, têm muito açúcar, pouca fibra, vitaminas e minerais na alimentação”, compara.
Salvador
No caso de Salvador, a desnutrição infantil seria um reflexo das condições sociais de parte da população da capital. Na cidade, 40,9% das famílias vivem algum nível de insegurança alimentar, segundo pesquisa da Universidade Federal da Bahia (Ufba), feita entre 2018 e 2020.
No último ano, o projeto QUALISalvador, que norteia o estudo, apontou que 7,9% das famílias da capital sofrem com insegurança alimentar severa — quando falta comida na mesa, segundo a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. Além disso, 23,7% vivem em situação de insegurança alimentar leve, quando existe incerteza sobre a capacidade para conseguir alimentos; e 9,3% das famílias enfrentam a insegurança moderada, quando alguma das refeições não é realizada.
O estudo mostra ainda que entre as famílias da capital, aquelas chefiadas por homens brancos são as que se alimentam melhor. A segurança alimentar foi observada em 74,5% dos lares chefiados por homens brancos. Na amostra de 14 mil domicílios do levantamento, metade é chefiado por mulheres negras (50,1%), seguido por homens negros (35,4%), mulheres brancas (8,3%) e, por último, homens brancos (6,2%).
Como identificar a desnutrição infantil
Médica pós-graduada em endocrinologia, Jacqueline Kalil define a desnutrição como uma falta de nutrientes gerada pela privação do alimento, dieta ou absorção inadequada. O diagnóstico é clínico.
Segundo ela, os casos que acabam em internação são os que as crianças apresentam sintomas como apatia, sonolência excessiva, irritabilidade, magreza, aparência envelhecida, pele ressecada e até fragilidade nas unhas e cabelo.
A desnutrição gera grande perda muscular e de gordura, retardo no crescimento, alterações psicológicas, perda da cor do cabelo, enrugamento da pele e anemia. Outros sintomas podem aparecer, por isso, a recomendação é levar a criança ao pediatra periodicamente.
Para evitar a condição, especialistas indicam que o aleitamento materno seja alimento exclusivo para bebês menores de seis meses. O leite materno é rico em nutrientes, como proteínas, vitaminas e minerais, que garantem a saúde dos pequenos. Após o primeiro semestre, é possível fazer introdução alimentar com alimentos saudáveis.
Outra orientação é manter acompanhamento pediátrico até os cinco anos. No primeiro semestre de vida do bebê a conduta deve ser mensal, para checar peso, altura, vacinação e alimentação. Os médicos alertam sobre o consumo de alimentos industrializados.
“Não é uma tarefa impossível alimentar bem a criança. A principal fonte de alimentos está no que é natural, frutase verduras, é de onde vem os nutrientes importantes. Sei que vivemos num país muito desigual e isso não é problema resolvido muitas vezes pela vontade, mas é importante que dentro da realidade de cada família, a gente busque melhores opções de alimentação e evite as mais prejudiciais”, salienta o gastropediatra Tiago Oliveira.
Projeto do Martagão Gesteira alimenta quase 2 mil crianças de até 2 anos
Batizado de “Primeira Alimentação”, o projeto do Hospital Martagão Gesteira, especializado em atendimento pediátrico, visa proporcionar melhores condições de alimentação para 1.800 crianças de 0 a 2 anos. Por meio do aprimoramento da cadeia produtiva do Lactário do hospital, setor do hospital responsável pelo preparo, higienização e distribuição do leite materno e fórmulas infantis em pó, o objetivo é oferecer à criança uma alimentação adequada com o menor risco de contaminação possível.
Segundo a coordenadora de nutrição do hospital, o público-alvo são bebês que, por motivos fisiológicos ou demandas específicas, estão impossibilitados de receber aleitamento materno exclusivo. O projeto atende crianças de até dois anos e lactantes internados no Martagão. Além da alimentação, também oferece palestras educativas sobre importância do aleitamento materno e orientação nutricional para os responsáveis das crianças.
A ação tem apoio financeiro da Prefeitura de Salvador, através da Secretaria de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude. Ao todo, o hospital atende mais de 80 mil crianças de todo o estado e realiza mais de 500 mil atendimentos, incluindo de crianças desnutridas.
O que dizem o estado e o município
A reportagem solicitou posicionamento da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), mas a pasta orientou falar com a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia (Saedes). A pasta, por sua vez, disse que terá o “compromisso com políticas de redução das desigualdades através da convergência de assistência social e segurança alimentar”
A Saedes começa sua atuação a partir da atual gestão estadual e possui, dentre suas atribuições, articular e efetivar políticas voltadas à redução das desigualdades sociais e à garantia da segurança alimentar e nutricional nos diversos territórios baianos.
“Na Bahia, semelhante ao cenário nacional, é notório e estatístico o aumento das condições de pobreza, de insegurança alimentar e de outras vulnerabilidades sociais, fruto do enfraquecimento ou desmonte de políticas públicas nos últimos períodos em nível federal, situações agravadas ainda mais pela pandemia de Covid-19”, enumera a pasta.
Já a Secretaria Municipal da Saúde de Salvador (SMS) informa que por conta da estruturação da rede hospitalar da capital, Salvador acaba tornando-se destino de grande parte dos pacientes que necessitam de internação. Somente em 2022, cerca de 54% das crianças com idade inferior a um ano internadas com quadros clínicos relacionados à desnutrição em Salvador eram residentes de cidades do interior da Bahia.
“Para minimizar os impactos da desnutrição infantil na capital, a pasta investe em medidas na Atenção Primária à Saúde para redução da morbimortalidade. Investimentos em Programas como o Rede Cegonha visam assegurar às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo; e às crianças, o direito do nascimento seguro, ao crescimento e desenvolvimento saudáveis”, disse a pasta, em nota.
A SMS citou ainda a Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil – EAAB, que tem a finalidade de promover a atenção à saúde de crianças de 0 a 2 anos de idade e a capacitação dos profissionais de saúde.
“O município do Salvador atualmente possui 15 unidades com a EAAB implantadas e 26 tutoras da EAAB atuando nos territórios além de outros profissionais realizando a formação de tutores da referida estratégia”, acrescenta a nota da SMS.
“Vale salientar que está em execução o Plano Municipal da Criança e Adolescente, priorizando as ações nutricionais para essa faixa etária. O documento foi elaborado em 2021 e tem a validade de 10 anos”, finaliza a pasta.
Sobre os programas, ações e projetos para promover a segurança alimentar em Salvador, a Secretaria Municipal de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre) afirma que, para 2023, estima investir cerca de R$ 300 milhões em assistência social.
A pasta ressalta os dois restaurantes populares administrados pelo município, localizados em São Tomé de Paripe e Pau da Lima, a sede do Prato Amigo, em Brotas, e em equipamentos socioassistenciais. De segunda a sexta-feira, são oferecidas diariamente cerca de mil refeições, somando as duas unidades. Em 2022 foram distribuídas 229.440 refeições.
Internações por desnutrição no Brasil em 2022:
BA 480
MA 280
SP 223
MG 205
PA 182
RS 159
GO 123
SE 121
PR 114
RJ 113
SC 103
PE 97
ES 76
CE 70
AM 65
DF 65
AL 40
MT 36
PB 35
MS 34
PI 27
RN 25
RR 23
RO 22
AC 17
TO 10
AP 9
*Com a orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo