São Paulo — Em 2020, o então governador João Doria recebeu do Ministério Público de São Paulo (MPSP) uma lista com apenas dois nomes para escolher o novo procurador-geral de Justiça. À época, optou pelo procurador Mario Sarrubbo, que teve 657 votos, e preteriu o mais votado na eleição interna, Antonio Carlos da Ponte.
Após dois mandatos, Sarrubbo vai se aposentar para comandar a Secretaria Nacional de Justiça, a convite do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. E Da Ponte, que passou os últimos anos na oposição à sua gestão, vai se candidatar novamente.
Em entrevista ao Metrópoles, Da Ponte afirma que Sarrubbo adotou uma pauta “infelizmente midiática”. Critica, por exemplo, a investida do PGJ contra o uso da frase “sob a proteção de Deus” no início das sessões de Câmaras Municipais em razão da violação da laicidade do Estado. Ele próprio diz que o procurador de Justiça deve ter os “pés no chão”, mas o “coração em Deus”.
No Conselho Superior do MPSP, ele atuou para barrar, por exemplo, uma moção de apoio de Sarrubbo ao ministro Alexandre de Moraes em sua gestão das eleições de 2022 no comando do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Conservador e mais alinhado às bases do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), até admite importância das câmeras em uniformes de policiais, mas diz que não devem estar ligadas “o tempo todo”.
“Criminalidade organizada não se combate com flores”, diz.
Partiu também de Da Ponte a ideia de adotar no Brasil, para o combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC), uma política para manter membros do MPSP que atuam contra a facção em anonimato, em semelhança à política de juízes e promotores “sem rosto” para combater o cartel do tráfico de drogas na Colômbia.
Da Ponte critica ainda a atuação “tímida” do Ministério Público na investigação de crimes sobre agentes com foro privilegiado, como deputados, secretários de estado, juízes e promotores, que têm a prerrogativa na esfera estadual.
O Metrópoles pediu entrevistas aos cinco candidatos à Procuradoria-Geral de Justiça. A eleição da lista tríplice que será enviada ao governador será em abril. Nas últimas semanas, foram publicadas entrevistas com os procuradores José Carlos Bonilha e Paulo Sergio de Oliveira e Costa. Leia, a seguir, a conversa com Antonio Carlos da Ponte.
Em 2020, o senhor foi o primeiro colocado da lista e não foi escolhido pelo governador João Doria. Por que foi preterido?
Fui eleito com quase 400 votos de diferença para o meu oponente e o governador entendeu por bem escolher ele. Eu apresentei à época um projeto político institucional no qual o Ministério Público deveria ter uma postura republicana, uma postura atenta ao que estabelece o artigo 127 da Constituição Federal, e que renovasse seus compromissos com as vítimas, com os vulneráveis e com os hipossuficientes. Em 2020, apresentei um projeto de Ministério Público democrático, apartidário, sem viés ideológico, e que de maneira alguma poderia ser instrumentalizado em favor de projetos pessoais, e essa é a defesa que continuo a fazer de forma absolutamente enfática porque acredito que é o sentimento da classe. O governador, se utilizando de seu preceito constitucional, entendeu por bem escolher o meu oponente e o que nós observamos depois de 4 anos é uma gestão midiática do Ministério Público, sem um projeto político institucional. Diante da mudança dos ventos no Palácio dos Bandeirantes, e diante, sobretudo, do que se espera no Ministério Público, fui animado por vários colegas a concorrer à Procuradoria-Geral de Justiça.
Historicamente, procuradores-gerais de Justiça de SP foram depois trabalhar no governo estadual, a quem deveriam fiscalizar. Esse cargo é um trampolim para a política?
Eu acho que o MP deve exercer uma atividade republicana e o MP deve cumprir seu papel constitucional. O cargo de procurador-geral de Justiça não pode ser utilizado como meio para assunção de outros cargos, porque isso não só onera a instituição, mas, por vezes, coloca em xeque o seu papel social, e discrepa totalmente do sentimento de todos os integrantes da carreira. O cargo de PGJ exige uma série de compromissos. O primeiro deles com a sociedade, com o interesse público, com a preservação do Estado Democrático. O promotor de Justiça é um homem que deve ter os pés no chão, as mãos no trabalho, os olhos da realidade, e o coração em Deus. Esse é um cargo muito importante. Porque ele não pertence a A ou B. Nós temos uma situação hoje em que a instituição é exposta de uma forma muito ruim e me parece que isso não é razoável. O MP pertence à sociedade e nós devemos estar prontos para desenvolver o nosso trabalho social de forma isenta, apartidária. A minha pretensão em ser procurador-geral de Justiça não é para assumir uma vaidade de natureza pessoal, mas sim para assumir um compromisso social com mudança de práticas que precisam ser abolidas e outras práticas institucionais que precisam ser institucionalizadas para que o MP atinja o seu papel.
O senhor defende uma quarentena para promotores que vão atuar fora do MPSP?
Acho que a questão da quarentena é algo absolutamente saudável, mais do que razoável. A partir do momento que você exerce determinados cargos, você tem que se submeter a um período de quarentena, isso vale não só para o Ministério Público. Poderia ser uma regra em relação a todos os poderes no que diz respeito ao exercício de alguns cargos. Acho que o homem, por meio da cicatriz do seu corpo, por intermédio das alegrias e tristezas da sua alma, conta a sua história. Há quatro anos, quando eu tive uma vitória muito importante, a maior votação na história da instituição, e não fui nomeado, eu poderia ter me aposentado. Poderia ter me inscrito para o Quinto Constitucional [para o Tribunal de Justiça], mas também não fiz porque a minha opção sempre foi o MP. Há dois anos, eu não concorria ao cargo porque o grupo político que permanecia no poder era o mesmo e a minha chance de nomeação era absolutamente inexistente. Hoje, me parece que nós estamos diante de um outro quadro, de um quadro em que foram retomados uma série de valores republicanos e a preocupação com o papel que deve ser desenvolvido pelas instituições.
O que o senhora mudaria na pauta do MPSP?
Hoje, o MP tem uma pauta, infelizmente, midiática. Então, o que se espera de uma administração seria o resgate da nossa missão constitucional. O MP não tem que ficar preocupado se o presidente da Câmara Municipal evoca a proteção divina no início da instalação dos trabalhos, porque isso pode ser questionado por outros órgãos, não precisa ser pelo MP. Agora, o MP deve ter preocupação com o enfrentamento da criminalidade, desenvolver uma política muito clara de prestígio aos promotores criminais, que enfrentam o roubos, o tráfico de entorpecentes. Eu vou levar isso a diante em um trabalho com auxílio das polícias. Precisamos também estar atentos às novas formas de criminalidade, principalmente a criminalidade sem rosto. Hoje, nós temos dificuldade de saber se nossos filhos estão no computador conversando com uma criança da mesma idade deles ou se estão conversando com uma pessoa que busca dentro da ingenuidade da criança obter informações para o cometimento de delitos. Em especial, em delitos que não tem rosto, como o caso da pedofilia. Precisamos também enfrentar a lavagem de capitais, a corrupção. O MP pode fazer muito na área de patrimônio público social, na defesa da pessoa com deficiência, do idoso, na área da infância. Antes de se preocupar com eventuais pautas alternativas, ele tem que se preocupar com a Segurança Pública. Se o cidadão pode caminhar na rua à noite, se ele tem tranquilidade para caminhar e visitar os amigos, para viver em comunidade.
Em relação ao crime organizado, critica-se internamente a falta de estrutura dos Gaecos (grupos especializados) para combater as facções. Como o senhor vê o modelo atual?
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que o combate ao crime organizado não se dá em relação apenas ao Gaeco. Ele se dá também na atuação de cada um dos promotores criminais e nós precisamos prestigiar essa atuação deles. Dar força, dar estrutura, estabelecer como prioridade de atuação. Quando um promotor criminal combate a receptação, ele está auxiliando num processo que busca, de certa forma, enfrentar o roubo e o furto. O Gaeco foi um grupo criado há 15 anos e ainda tem uma atuação muito importante, mas os grupos são criados para que no futuro se transformem ou não em eventuais promotorias, não é? É preciso fortalecer o Gaeco, mas é importante ter claro também que esse modelo precisa de uma renovação para desenvolver um papel que, no futuro, acabará resultando na criação de promotorias vinculadas ao combate à criminalidade organizada. Também é preciso agir por meio das ações neutras, que também auxiliam o combate ao crime organizado.
O que são ações neutras?
Por exemplo, quando fui secretário adjunto de Segurança Pública e participei da elaboração de duas leis que ajudaram no combate ao crime organizado. A primeira foi a que passou a tratar do roubo de cargas estabelecendo a extinção do cadastro estadual de empresas que compravam cargas roubadas. Outra estabeleceu que automóveis tenham que ter o registro das diferentes peças e que deve haver a compactação dos veículos inservíveis e não por vezes a venda deles em leilão, o que permite a proliferação de clones. Isso é uma ação neutra vinculada ao combate ao crime organizado. É preciso entender que o combate ao criminalizado exige inteligência, diretrizes, não é algo personalíssimo, e nós temos que desenvolver protocolos que subsistam independentemente de quem esteja no exercício do cargo. Tivemos, por exemplo, uma experiência na Colômbia em que vários promotores e juízes foram executados porque ousaram combater os cartéis no tráfico. Daí, surgiu aquilo que na Colômbia ficou conhecido como juízes sem rosto, que eram pessoas que atuavam mas não tinham a sua identidade divulgada por uma razão óbvia, porque seriam executadas.
Ainda sobre segurança pública, qual sua opinião sobre o uso de câmeras corporais por policiais militares, programa que ajudou a reduzir a letalidade policial e foi congelado pelo governo Tarcísio de Freitas?
Em primeiro lugar, eu acho que é importante realçar que não há nenhum dispositivo legal exigindo que policiais usem câmeras nos uniformes. Na verdade, o que existe é uma construção no sentido de que isso poderia colaborar na observação do trabalho que vem sendo desenvolvido pela polícia. Nós não podemos esquecer que o policial, quando sai de casa para trabalhar, colocando em risco a sua vida e a subsistência da sua família, ele sai para cumprir a lei. Eu entendo que a utilização de câmeras, em algumas situações, é razoável, mas existem outras que não. Imaginar que o combate à criminalidade organizada pode se dar com a utilização de câmeras, onde haja a exteriorização de cada um dos passos da atividade, parece que é algo despropositado. Aliás, nós temos que compreender que criminalidade organizada não se combate com flores. Para que haja o efetivo enfrentamento dela, não são poucas as vezes que o estado tem de flexibilizar determinadas garantias respeitados, princípios próprios vinculados aos direitos humanos. As câmeras têm um impacto orçamentário, é uma decisão que envolve discricionariedade regrada na medida em que não há uma exigência legal. Eu insisto, particularmente, acho que são interessantes, mas existem algumas ressalvas.
Em relação aos crimes de colarinho branco, o MPSP tem feito muitos acordos com empreiteiras e outras empresas envolvidas em pagamento de propina a políticos. Houve, por vezes, questionamentos a esses acordos no Conselho Superior sob o argumento de que algumas cláusulas aliviam demais a situação das empresas. O que o senhor pensa sobre esses acordos?
Esses acordos de não persecução cível têm embasamento na lei e passam por um controle de legalidade pelo Conselho Superior do Ministério Público. A lei vai mais adiante e exige até mesmo que haja homologação judicial. O acordo não vai de maneira alguma trazer como consequência que o autor de um crime venha a ser poupado. São, inclusive, esferas diferentes. Os 11 conselheiros fazem a análise da homologação e todas as vezes que o colegiado entende que algo deveria ser observado ou que não houve atenção a determinado aspecto, ele não homologa o acordo, determina que rejeite o acordo ou aponta caminhos que podem ser adotados. Eu particularmente acho que a atuação do Ministério Público tem que ser pautada basicamente pelo interesse público e nós temos que observar qual é o caminho que efetivamente atenda o interesse público.
Raramente se tem notícia de uma grande investigação conclusiva sobre crimes de deputados, juízes e promotores no MPSP. Por que os agentes com foro privilegiado são pouco incomodados?
Eu acho que a nossa atuação nessa área, em alguns momentos, é muito tímida. Eu, como procurador-geral, vou incrementar o setor de investigação daqueles que gozam de prerrogativa de função. Eu sustento que o Ministério Público deve atuar na forma de agência em algumas situações, em especial no combate à criminalidade organizada. O que que significa isso? Uma atuação conjunta propositiva que busque um resultado aonde promotores e procuradores atuem com o mesmo objetivo. Então, se o promotor do Patrimônio Público que está investigando um crime previsto na lei de licitações consegue um resultado significativo, cabe a nós sustentar a importância desse resultado em segundo grau no tribunal e, por vezes, recorrer aos tribunais superiores para que isso seja mantido. A agência não trabalha com a ideia de hierarquia, mas ela trabalha com a ideia de atuação horizontal entre promotores que atuam em primeiro grau e procuradores de Justiça, e acho que isso é muito importante.
É comum dentro de instituições como Ministério Público e Tribunal de Justiça uma pressão corporativa por incrementos em remunerações. Essas carreiras já não ganham muito, inclusive acima do teto constitucional? Com ênfase nesse tema, qual recado o MP passa quando suas eleições focam demais nisso?
A carreira de promotor de Justiça é uma carreira de Estado. É evidente que a pessoa que ingressa nessa carreira pretende ter um salário que permita a ela viver com dignidade com a sua família, desenvolver a sua atividade com absoluta isenção e tranquilidade. Hoje, as carreiras de estado passam por um momento muito difícil, porque nós temos numa mesma instituição pessoas que vão atingir aposentadoria pelo regime em que elas vão ter vencimentos integrais, outras que vão passar por um quadro intermediário e outras que vão se aposentar com as regras no INSS. Quando se advoga a necessidade de pagamento de determinados valores, é porque eles não foram recolhidos no momento em que eles necessitavam ser recolhidos. É porque eram atrasados, reconhecidos judicialmente, e aqui nós estamos diante de algo que já deveria ter sido pago no passado e não foi pago. Quando nós atacamos uma carreira de estado, nós estamos, de certa forma, fazendo com que a própria estrutura do estado sofra um abalo. Eu leciono há 34 anos. Se você entrasse na Faculdade de Direito e perguntasse quem gostaria de ingressar na carreira pública, 80% da classe se manifestaria no sentido positivo. Hoje, talvez você encontre 30% da classe apontando essa intenção. Isso acontece porque as carreiras do Estado sofreram de certa forma uma desidratação.