A disputa de três proprietários de um mesmo sobrado localizado no Centro Histórico de Lençóis, na região da Chapada de Diamantina, precisou ser intermediada pelo Ministério Público Federal (MPF). O imóvel em questão é um casarão que faz parte do conjunto de 570 estruturas tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan), desde a década de 70. Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi firmado entre as partes no mês passado, após quatro anos da primeira denúncia, feita por um dos donos do local.
O início do desentendimento remonta a 2018, quando Manoel dos Santos Matos, proprietário do primeiro andar do casarão, denunciou ao Ministério Público Estadual uma obra irregular que estava sendo realizada no imóvel por outro proprietário, Dan Schnitman. Sendo um patrimônio, qualquer modificação estrutural deve ter autorização do Iphan, o que não foi feito.
Como o casarão faz parte do conjunto tombado pelo Iphan, o Ministério Público Federal tomou a frente do processo. Quando a denúncia chegou ao instituto, foi realizada uma vistoria no local e assim foram descobertas as péssimas condições estruturais do imóvel. Paula Cardoso, chefe do escritório técnico do Iphan em Lençóis, alega que da fachada do casarão não era possível notar o estado de deterioração da parte interna.
“Cada um dos proprietários detém uma parte do imóvel. Houve uma obra irregular de reforma interna que não teve a autorização do Iphan, então fizemos todos os procedimentos de fiscalização […] O Iphan precisou atuar junto aos três proprietários para que eles resolvessem a questão da estabilidade estrutural do imóvel”, relata Paula Cardoso. Mesmo com donos diferentes, as decisões devem ser feitas em conjunto, já que se trata de um mesmo imóvel.
A faixada do sobrado não indicava a situação precária de dentro do imóvel, segundo o Iphan (Foto: Divulgação/MPF) |
A partir daí, deu início a disputa para que os três donos chegassem a um acordo de como resolver a situação. Segundo conta o procurador do Ministério Público Federal, Victor Nunes, o proprietário Dan Schnitman era inicialmente o mais resistente à obra. Mas, quando a prefeitura interditou o restaurante que ele administra no térreo do casarão, ele passou a se mostrar interessado na obra.
Dan chegou a realizar uma obra de sustentação provisória para manter o seu estabelecimento em atividade, mas a prefeitura interditou o local. O outro proprietário, Benvindo Pereira dos Santos, também administra um restaurante no térreo.
Já quem realizou a denúncia, Manoel dos Santos, se tornou mais resistente à solução do problema que se arrasta há quatro anos. “Eles inverteram os papéis. No início, quem não queria fazer a obra era o senhor Dan, porque ele tinha que fechar o restaurante. Depois da interdição da prefeitura, porque poderia cair um pedaço do imóvel em cima de algum cliente, ele se tornou a favor. Quando isso aconteceu, o senhor Manoel alegou que não tinha condições financeiras de fazer a obra”, explica o procurador.
Victor Nunes diz ainda que quando Manoel adquiriu o imóvel, esse já se encontrava em estado de degradação e que tudo indica que ele faria uso residencial do local. O maior problema estrutural do casarão que data do século XIX é o assoalho de madeira que deve ser substituído. Ao total, a reforma pode chegar a custar R$70 mil. No TAC firmado em 28 de abril, quando os três proprietários enfim chegaram a um acordo, é dito que há risco iminente de desabamento.
“O que o atual estado do referido imóvel demanda a realização de reformas, para garantir a sua própria integridade e proteção do patrimônio cultural, bem como para garantir a segurança de transeuntes e de imóveis vizinhos”, pontua.
Assoalho de madeira do casarão que precisa passar por reformas. Há risco iminente de desabamento (Foto: Divulgação/MPF) |
O termo assinado prevê que os proprietários devem contratar uma empresa especializada para projetar a reforma. O plano deve ser encaminhado para o Iphan e, só após a aprovação do Instituto, poderá ser colocado em prática. Enquanto isso, o casarão segue interditado.
O Ministério Público deu um prazo de três meses para que a obra comece a ser realizada, em caso de desrespeito, uma multa de R$100 será cobrada por dia. Os proprietários têm até 28 de julho para dar início à reforma.
Perseguição
Dan Schnitman, proprietário da pizzaria Natora, afirma que desde que abriu seu estabelecimento comercial em 2013 tem sido alvo de perseguições dos outros dois donos do casarão.
“Acho que minha vinda para a praça começou a prejudicar ele [Benvindo] comercialmente. Ele se sentiu chateado e tentou anular o contrato de compra e venda com o ex-dono […] Os dois são colegas e eu sou o “estrangeiro” e, em algum momento, eles resolveram se juntar para me tirar do ponto. Essa é uma rixa comercial”, afirma.
Ele conta ainda que depois que o TAC foi firmado, contratou uma empresa para realizar os reparos no imóvel, mas que os outros proprietários não quiseram arcar com os custos da obra. O valor total chegou a R$80 mil reais. “Eu fui o único que tentou proteger meu imóvel”, diz. Com o casarão interditado, há seis meses a pizzaria está fechada e Dan Schnitman sem renda.
A reportagem tentou entrar em contato, através de mensagens e telefonemas, mas não obteve retorno de Benvindo Pereira dos Santos. Não foi possível contatar Manoel dos Santos Matos.
Roberta Ferraz, que possui um comércio local, cobra que os órgãos que cuidam do patrimônio revejam e atualizem suas normativas aos tempos atuais. “Antigamente, as famílias possuíam residências, habitavam todo o imóvel. Com o passar dos anos, estes imóveis se tornaram comerciais e, em alguns casos, tiveram seus cômodos compartilhados”, diz.
Segundo a empresária, a modificação feita ao longo dos anos impacta diretamente nos cuidados com as fachadas, pinturas e intervenções estruturais. “Existe muita mão de obra de construção que não conhece com precisão o tratamento adequado aos imóveis tombados e acabam contribuindo com a descaracterização”, diz. Roberta também cobra que sejam feitas ações em prol de restaurações de imóveis abandonados.
Patrimônio tombado
O procurador da república Victor Nunes lembra que mesmo o casarão sendo propriedade privada de três pessoas, é função dos proprietários preservar o patrimônio tombado nacionalmente. “O tombamento gera um ônus ao proprietário porque existe uma limitação administrativa. O dono assume o dever de conservar e manter o imóvel com suas características peculiares de interesse público. O proprietário não pode fazer o que bem quer com o imóvel”, explica.
À esquerda a pizzaria de Dan Schnitman ao lado do restaurante de Benvindo Pereira (Foto: Reprodução) |
O patrimônio cultural de Lençóis retrata a época do auge econômico da atividade garimpeira das vilas e cidades da Chapada Diamantina, durante o século XIX. A região foi a mais importante produtora de diamantes do mundo entre 1845 e 1871. A exportação de minerais para o continente europeu era tamanha, que foi instalado na cidade um vice-consulado da França a fim de facilitar as transações comerciais.
O acervo arquitetônico, no qual está incluso o casarão alvo da disputa, é formado por casas e sobrados erguidos na segunda metade do século XIX. O historiador Rafael Dantas explica que a manutenção da parte histórica da cidade é essencial para o registro do que já ocorreu no local.
“O Centro Histórico de Lençóis é um lugar riquíssimo para que possamos compreender o desenvolvimento da cidade ao longo do tempo e também do desenvolvimento urbano e econômico da Bahia”, defende. Para o historiador, é preciso entender a importância das cidades da Chapada na história do estado.
“Foi onde fortunas acabaram circulando, em um período em que ainda tínhamos a realidade escravista, e essas construções são marcos disso”, ressalta.
A partir de meados do século XX, a cidade de Lençóis passou por um processo de crise econômica. “A cidade não consegue mais sustentar o seu progresso econômico justamente por não estar inserida no processo no planejamento de desenvolvimento que acontece principalmente no Recôncavo da Bahia”, explica Rafael Dantas.
A realidade começa a mudar a partir da década de 70, período do terceiro governo de Antônio Carlos Magalhães. Com a criação da Bahiatursa, peças publicitárias começaram a apresentar Lençóis como um atrativo turístico, em parte por conta do Centro Histórico.
*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo.