Às 17h30 de uma terça-feira de verão, um italiano grisalho e vestido de branco está à espera de alguém. Ele e um francês são os únicos clientes deste bar meio pizzaria no Porto da Barra. “Desculpa a demora, mandei mensagem, mas você não respondeu”. Surge o “alguém”: uma baiana, cabelos crespos presos em coque, com vestido florido. Ela tem 29 anos. Ele aparenta mais de 60.
“Fiz muita coisa hoje, matriculei meu filho, fui fazer a unha que estava horrível…”, conta, ao que um garçom enche dois copos de cerveja para os clientes. “Para ficar mais gostosa do que você é, né?”, diz o funcionário, que parece conhecê-la. Os três riem. A reportagem testemunha o papo na mesa ao lado.
Os dois conversam banalidades, das burocracia dos bancos a locais que o italiano precisa conhecer. Ela alterna entre o “senhor” e o “você” até induzir ao assunto que os une: “Então, [você] precisa de companhia”. O estrangeiro retruca. “Eu tenho, uma esposa linda. Você fica ofendida?”, ele pergunta, em português com sotaque. “Tenho 29 anos, compreendo bastante”, ela responde.
A conversa reflete como o turismo com motivação sexual (ou turismo sexual, como é mais conhecido) acontece em Salvador, sendo parte de uma teia que envolve de autodeclarados guias de turismo a recepcionistas de hotéis, visível em códigos e em aplicativos de namoro. O período mais movimentado está prestes a começar: as semanas anterior e posterior ao Carnaval.
A Organização Mundial do Turismo (OMT) define essa prática como “viagens com a intenção” de sexo pago “com residentes do destino”. Pesquisadores incluem relações sem natureza comercial, entreposto por abismos econômicos.
Viajar em busca de sexo não é crime, mas pode integrar uma zona criminosa: a do assédio e exploração sexual, adulta e infantil, e o tráfico de pessoas.
A rede do sexo: indicação a turistas e cobrança de comissão
Toda rede de turismo é solicitada a participar do turismo com motivação sexual. A reportagem percorreu, por cinco dias, a região do Porto da Barra e o Pelourinho, points do circuito da busca de turistas por sexo.
Era tarde de quarta, turistas lotavam o Pelourinho e Lúcio*, à porta de uma agência de turismo, contava oito turistas que o procuraram em busca de prostitutas. Só em janeiro, o rapaz fez 40 recomendações. A prostituição é legalizada, mas lucrar com a prostituição alheia não – a pena é de até cinco anos.
“Elas [prostitutas] me dão 10% por cliente. Para brasileiro, é R$ 150. Gringo paga mais caro, R$ 250”.
Morador do Centro Histórico, Lúcio vê de mais perto o turismo acionar o sexo – alguns vizinhos sonham namorar estrangeiros, movidos pela possibilidade de dinheiro em uma realidade de pobreza. Salvador é, hoje, a metrópole brasileira com mais gente extremamente pobre, aponta o Boletim Desigualdade nas Metrópoles. “Duas conhecidas foram para Portugal agora. Um conhecido foi para ficar com um cara, mas ele não era gay”, ri o rapaz.
De cinco profissionais do turismo abordados no Pelourinho, só um disse não indicar mulheres ou homens para turistas. O porquê: “Sou evangélico”.
Em frente ao Terreiro de Jesus, vemos Ailton*, com óculos espelhados azuis, abordar dois filipinos. Em portunhol, ele pergunta se os rapazes, rostos redondos, “querem garotas”. Ambos recusam, mas ele continua a recruta.
“Eles [turistas] querem é isso, mulher e droga”, diz.
A busca ativa – de prostitutas por turistas e vice-versa – chega aos hotéis, sobretudo os de pequeno e médio porte, onde prostitutas entregam cartõezinhos profissionais nas recepções. Soa antiquado, mas quem lucra com o sexo quando a cidade está cheia sabe da demanda fora da internet.
“Para mim não vale [indicar prostitutas]. Se eu consigo sugerir pacotes de viagem [a turistas], ganho uma porcentagem das empresas”, conta Cláudio.
O recepcionista de uma hospedaria no Porto da Barra é da época – recente, durou até 2010 – em que recepções de hotéis apresentavam cardápios de prostitutas a visitantes.
O presidente da Associação da Indústria de Hotéis na Bahia, Luciano Torres, diz que não cabe à entidade fiscalizar essas situações, mas que o trade discute o turismo sexual, pois “esse problema acontece em alta ou baixa estação”.
Rivanete Rodrigues, presidente do Sindicato de Guias de Turismo da Bahia, defende a categoria: “Temos um código de ética e o guia não pode praticar esse tipo de turismo. Não vamos dizer que não existe porque, em toda profissão, tem aqueles… mas afirmo que esse tipo de conduta é de guias ilegais”.
A prostituição em busca de ‘gringos’ e os riscos
Janeiro se despede e novas vizinhas chegam para Sofia. Semana passada, ela sabia de três prostitutas em apartamentos na Barra. Agora, são 28. “Em fevereiro, chove gringo”, ri a jovem, em um flat.
No mês passado, Sasha, 20 anos e cabelos cacheados pretos, atendeu 50 turistas, quatro deles “gringos”, intermediados por sites – a representação moderna dos cafetões. Ela tem o contato telefônico compartilhado com um barraqueiro e o recepcionista de uma pousada do Porto da Barra.
“É só eles te verem com um gringo, que chegam para perguntar se podem te indicar para alguém”, explica a jovem. Não fazem isso de graça: ganham porcentagem de 15% por programa arranjado.
Por uma hora com Sasha, estrangeiros pagam R$ 350. Brasileiros, R$ 250. A principal credencial à qual ela recorre são quatro idiomas: fala português, inglês, espanhol e italiano.
“Vamos aprendendo conversando com eles. O interesse de atender estrangeiro, europeu, é 100% pela possibilidade de ir para fora”.
Para a presidente da Associação de Prostitutas da Bahia, Fátima Medeiros, onde há relações conscientes, ela não vê vítimas.
Há 20 verões, Lila fez o movimento sonhado por Sofia – do Brasil rumo à Europa, impulsionada pelo turismo. A baiana, uma mulher transgênero, conheceu um italiano e partiu com a promessa de trabalhar com ele. À época, ela estava desempregada. “Mas chegando lá, a gente se desentendeu”.
Lila deixou Salvador em um verão há 20 anos, depois de conhecer italiano (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
O desentendimento foi um dos empurrões da vida para a prostituição, somada à exaustão com o mercado formal de trabalho. Ao olhar para trás, ela avalia:
“Não era prostituição porque a gente não dava esse nome à coisa. Era uma coisa muito sutil, porque o objetivo era essa grande ilusão de estar com um estrangeiro era ir para fora”.
Sentada em uma cafeteria da Barra, sob um salto dourado, Lila atende à chamada do telefone. É o norueguês que ela atendeu, há uma hora, em um hotel, por acaso o primeiro cliente estrangeiro em duas semanas da sua temporada de verão em Salvador. Neste mês, ela volta para a Europa.
“Para mulheres cisgênero, é mais fácil [arranjar cliente]. Nós somos muito mais expostas e eu sou bastante criteriosa”, diz Lila, que considera o Brasil “atrasado” quanto à regulamentação do trabalho de quem vive do sexo – mulheres e homens.
Como elas, os garotos de programa se avolumam na Barra. Segundo Adson, um deles, além dos sites, há territórios para atrair clientes. No Porto, quem “quer gringo”, sabe onde ficar: próximo a uma bandeira colorida.
Os principais clientes dele, no verão, são turistas casados. Há uma semana, um inglês o chamou para acompanhá-lo em Londres. Ele negou, conhece esse enredo: em 2017, convidado por um cliente lusitano, terminou vítima de tráfico de pessoas em Portugal. Conseguiu voltar para Salvador depois de um ano e meio como prostituto, em um sótão de uma barbearia.
“Tomaram meu passaporte. Compravam para mim as coisas e eu pagava o dobro. Ficavam ameaçando minha família aqui. Eu mandava um dinheirinho para eles, e tinha que trabalhar mais”, conta Adson, vizinho de outro garoto de programa no prédio onde mora, em um ponto central entre o Porto e o Farol da Barra.
No edifício vizinho, calcula ele, estão hospedados 20 garotos de programa interessados em aproveitar o fluxo de clientes em circulação.
Em 2022, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania recebeu, via Disque 100, 103 denúncias relacionadas a tráfico internacional de pessoas – 7 dos traficados teriam partido da Bahia, sendo o maior polo emissor o estado de São Paulo (10 pessoas). Os números podem estar subnotificados: 35 das 103 queixas, por exemplo, não apresentam sequer o local da denúncia.
Terça-feira no Porto: mormaço, ‘ofertas’ e a ideia de Brasil sexual
Próximo ao meio-dia, o mormaço toma conta da areia do Porto da Barra lotada e Peter, alemão de 1,9 m de altura, passa pela balaustrada. Alemães, franceses, italianos e chilenos são os estrangeiros mais frequentes na Bahia neste verão. É a quarta vez, em 25 anos, de Peter em Salvador, onde desembarcam três milhões de visitantes (o equivalente a toda a população local) até março.
“A primeira vez era bem diferente, tudo era talvez mais explícito. Havia prostitutas por aqui literalmente oferecendo sexo”, recorda.
Ainda há, mas principalmente prostitutos. No fim de tarde, aqueles que não tiveram um bom dia de trabalho, vão para a balaustrada do Porto. A busca por clientes acontece na base de códigos: olhar no fundo dos olhos dos homens é um deles; pegar nos próprios órgãos genitais, outro.
O alemão Peter reconhece as possibilidades da região. “Sabemos que o Porto da Barra é um hotspot [ponto central ]do sexo. Ele é conhecido por isso entre quem já viajou para cá”, compartilha Peter. No início de janeiro, um norte-americano gravou vídeos na capital baiana estimulando o turismo sexual: em alguns deles, mulheres são perguntadas sobre qual tamanho de pênis preferem.
A Polícia Federal (PF) monitora campanhas online que associem o Brasil ao sexo, mas não compartilhou dados desse trabalho. No último levantamento, de 2015, 3.350 sites citavam o Brasil como destino sexual.
Quando a entrevista termina, Peter insinua um convite à repórter: “Você é linda, mas não toparia uma cerveja comigo, tenho idade para ser seu pai”.
O que talvez ele veja em mim não é a imagem de uma só mulher. Nos anos 70, época de Ditadura Militar, o país passa a ser anunciado pelo governo federal como paraíso da alegria. E éramos nós, biquíni no corpo, as protagonistas dos pôsteres de divulgação.
“O governo quer vender a praia, mas usa o corpo de uma mulher? Então, na verdade, ele está vendendo a mulher”, explica Cassiana Gabrielle, que no Doutorado pela Universidade Federal da Bahia estudou o turismo sexual em Salvador.
A estratégia de comercializar um Brasil atrelado ao sexo reverbera em questões sociais, econômicas e históricas. “Isso tem a ver com o fato de o racismo, classicismo e o machismo estarem na base do país, a apropriação sobre corpos negros, indígenas e posteriormente dos brancos, e um imaginário social sobre uma sexualidade desbragada”, continua Gabrielle, professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
Países como Tailândia e México são igualmente populares entre turistas que viajam pelo sexo. Em Amsterdam, capital da Holanda, prostitutas e prostitutos se exibem por trás de um vidro.
Em Salvador, clima tropical e ideia de uma vida baseada em “festa, praia, preguiça e sexualidade” facilitam a colocação da cidade como um dos centros do turismo sexual. O Rio de Janeiro ainda é o principal, no Brasil, seguido pela capital baiana e Fortaleza.
O poder público baiano não possui campanhas específicas sobre o turismo sexual, mas diz promover ações como vistorias para controle de qualidade em meios de hospedagem e contra a exploração sexual de crianças e adolescente e o assédio sexual.
Investindo nos aplicativos
Quem usa aplicativos de encontros logo reconhece a quantidade de turistas online pela quantidade de bandeiras de países do lado dos nomes e descrições dos perfis, com informações como as datas de início e fim da viagem.
Essas plataformas atualizaram os métodos do turismo sexual. Instalado no destino, ou antes disso, o turista muda sua localização e o aplicativo faz a varredura. Homens negros são os mais assediados.
“Eles vêm o corpo negro na primeira foto e a primeira pergunta de alguns é: ‘you r scoter?’“, conta Marcos.
Em bom português: “Você é garoto de programa?”. O baiano, que responde negativamente, tem experiências de verão com turistas, nacionais e internacionais, “mas sem intenções”.
Proposta enviada por estrangeiro a Roger (Foto: Acervo Pessoal) |
Neste verão, chamou a atenção de Roger, homem negro e frequente em apps de namoro, o fato de “eles [turistas] estarem mapeando a cidade antes de vir”.
“Não havia esse aviso prévio. [Dizem] elogios exagerados sobre a beleza negra. Vão demonstrando que estão dispostos a investir para nos ter. Seja com dinheiro ou proposta de moradia em seus países”.
A reportagem questionou os apps mais famosos de relacionamento. O Tinder respondeu que “tais comportamentos” (turismo sexual e assédio sexual) violam seus termos de uso e que utiliza “tecnologias de ponta” para remover perfis suspeitos (não estimou quantos). O Grindr não respondeu.
O assédio de turistas a nativos se estende às ruas. Em um turno de dez horas, Marcelo* convida banhistas do Porto da Barra a conhecerem a hamburgueria onde ele trabalha. Fora do expediente, ele prefere frequentar praias vizinhas.
“Não é só estrangeiro, muito turista daqui fica em cima. Já chegaram no meu ouvido para oferecer dinheiro por um boquete [sexo oral]”, justifica o jovem negro de 20 anos, trajado de regata e bermuda tactel.
Faz menos de um mês que ele recebeu, de um massagista, a oferta de se prostituir para turistas. Antes, passaria por um teste. “Ele me ofereceu R$ 300 para ir lá atrás e a gente ver um negócio [transar]…”, lembra. O rapaz não aceitou, mas, como “os olhos não escondem o que a gente vê por aqui”, sabe de colegas que talvez por necessidade se renderiam ao negócio de ganhar em moeda estrangeira.
*Todos os nomes, exceto o da pesquisadora Cassiana Gabrielle, foram modificados a pedido dos entrevistados.