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Crianças são recrutadas para a produção clandestina de fogos

Da explosão da fábrica de fogos que marcaria a história de Santo Antônio de Jesus (SAJ), 22 pessoas com idades entre nove e 17 anos saíram mortas. Todas eram de famílias pobres, a maioria negras, cooptadas pela indústria pirotécnica que crescia no município. Quase 25 anos depois daquele 11 de dezembro de 1998, outras crianças e jovens estão sob risco, com pólvora nas mãos. Falta chegar até elas. A tragédia que matou 64 pessoas não parou a produção clandestina de fogos na cidade, nem fundamentou políticas que tirassem as crianças e jovens do negócio. Daqui a quatro dias, no dia 28, representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT) se reunirão com a Prefeitura de SAJ para negociar a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta. O objetivo é que a gestão elabore um diagnóstico do trabalho infantil na cidade e políticas públicas contra a prática – não apenas relacionada aos fogos. Caso o documento não seja assinado, o MPT pode mover ação civil pública contra o município. A produção de fogos em SAJ, um dos principais destinos do São João, está camuflada. Trabalhadores que antes confeccionavam o material nas calçadas foram para os quintais ou passaram a ser levados para tendas clandestinas em zonas rurais mais distantes. O material é fornecido por intermediadores de empresários, que comandam a indústria e exploram a mão de obra, afirmam órgãos públicos. O assunto foi tema de um seminário na cidade, no último dia 12, data que simboliza o combate ao trabalho infantil. O evento reuniu órgãos públicos, moradores e movimentos sociais. Por volta das 16h, um homem que, aos 13, trabalhava na fábrica que explodiu, falou: “Precisamos de atenção para que nossos filhos não tenham que trabalhar como eu”. A Bahia possui apenas uma empresa autorizada a produzir pirotécnicos e ela está a 251 quilômetros de SAJ: em Olindina, no nordeste do estado. A informação é do Exército, responsável por fiscalizar fábricas, emitir a licença de permissão e controlar a matéria prima dos fogos – a principal delas, a pólvora. O MPT tem, atualmente, dois procedimentos ativos para apurar denúncias relacionadas à atividade de fogos. Um deles é sobre uma mulher que produzia fogos no quintal de casa, em SAJ, e morreu queimada pela explosão do material, em outubro de 2021. A situação de busca por crianças nesse contexto pode ser ainda mais “complexa”, afirma a procuradora. “As crianças estão amplamente colocadas diante de risco, se a produção de fogos é dentro da residência, mas não temos como afirmar que elas estavam trabalhando”,explica a procuradora. No ano passado, seis crianças e jovens com até 14 anos sofreram acidentes de trabalho em SAJ, mostra o Ministério da Saúde. As causas e onde eles trabalhavam não foram informados no sistema pelas equipes de saúde que os atenderam. A falta de rastros impede o acompanhamento dessas vítimas. O número de acidentados jovens por lá foi o maior entre as 20 cidades do Recôncavo Baiano. Mas as estatísticas não consideram a subnotificação. Na Bahia, foram 137 acidentes de trabalho entre crianças e jovens em 2022. Os números saltaram durante a pandemia da covid-19. Em 2019, 70 pessoas com essa faixa etária se acidentaram no trabalho no estado. No ano seguinte, já eram 106. Aos 11, Anderson Santos acompanhava a mãe e o irmão, de 14, no trabalho de produzir fogos. Não sabia formular os perigos que corria ao fabricar “umas bombinhas pequenas”, ia para ajudar a família financeiramente. No dia em que o fogo destruiu a fábrica e as pessoas, ele e o irmão não estavam lá, mas a mãe sim. Os dois foram criados pelo pai e uma tia. Durante o seminário sobre trabalho infantil em SAJ, no dia 12, os participantes do evento relembraram as perdas, reclamaram da demora por soluções e conversaram sobre a possibilidade de um canal local que recebesse denúncias anônimas de trabalho infantil. Hoje, elas estão concentradas no Disque 100, do Ministério de Direitos Humanos. Neste ano, foram denunciados 42 casos de trabalho infantil na Bahia. Um deles partiu de SAJ. Por telefone, o denunciante disse que a vítima era um menino negro de 10 anos. Qualquer trabalho é proibido, no Brasil, para menores de 14 anos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Em 1997, um ano antes de a fábrica explodir em SAJ, a Corte Interamericana de Direitos Humanos constatou a frequência, aqui no país, com que crianças negras trabalhavam na indústria de fogos, com produtos tóxicos e sob risco. Embora não seja considerado crime, o trabalho infantil costuma ser permeado de atos criminosos – por exemplo, exploração sexual. Por isso, o contexto das denúncias é analisado. Ela acompanha os desdobramentos da explosão em Santo Antônio de Jesus desde 2001, quando a Justiça Global levou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Só em 15 de julho de 2020, a Corte, encarregada da promoção dos direitos humanos na América, condenou o Estado brasileiro e previu uma série de ações, como a implementação de políticas públicas para evitar a reprise de 1998. O prazo de dois anos para o cumprimento da sentença já não foi cumprido. “A sentença está sendo implementada com dificuldade, um [órgão] acaba atribuindo a responsabilidade a outro”, afirma Sandra Carvalho. Secretária da pasta social do município, Andressa Moese afirma que “está cada vez mais difícil conhecer os casos de trabalho infantil” na indústria pirotécnica. Segundo ela, o CRAS e o CREAS realizam programas de fortalecimento de vínculos e campanhas de conscientização entre as populações mais vulneráveis. Nenhuma das famílias atendidas por esses serviços está incorporada à produção de fogos. Se estão, é desconhecido pela Prefeitura. “Os fogos estão mais velados que o tráfico de drogas. Mas não temos poder de polícia e não tratamos essas pessoas [pobres que trabalham com fogos] como criminosas”, pontua Andressa. Ela diz que a Prefeitura faz buscas ativas para “acolher” famílias em vulnerabilidade e mapear o trabalho infantil. Santo Antônio de Jesus é transformada a partir dos anos 70, quando a BR-101 passa a atravessá-la e a cidade se torna polo regional do Recôncavo Baiano. “Nesse momento, a cidade precisa de mão de obra e as pessoas vão se mobilizando”, diz Sônia Tomasoni, doutora em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe e professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Até aquela época, o protagonismo regional e da produção de fogos era de Nazaré das Farinhas. Mas, na cidade com nome católico, essa indústria pirotécnica encontrou uma base. Por décadas, SAJ disputou a liderança da confecção de fogos com Santo Antônio do Monte, em Minas Gerais. Em SAJ, 38,5% dos 103 mil habitantes ganham menos de R$ 700, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. As vítimas de 1998 trabalhavam para Osvaldo Prazeres Bastos, que morreu em 2021 por problemas cardíacos. Ninguém foi preso pela explosão da fábrica. As vítimas se sentem injustiçadas. A Corte Interamericana mostrou que as mães que introduzem os filhos na fabricação de “traques” por duas razões: aumentar a produtividade e tê-los sob cuidados, já que não tinham com quem deixá-los. Depois de 1998, Sônia decidiu estudar os detalhes desse negócio em SAJ, onde passou a morar nos anos 90, como professora da Uneb. Entre 2010 e 2015, visitou bairros periféricos e conversou com mulheres e crianças a enrolar traques nas calçadas para entender as dinâmicas locais da produção de fogos. A pesquisa fez parte do doutorado dela em Geografia. Quase duas décadas depois da explosão da fábrica, o panorama socioeconômico se mantinha. As mulheres ainda eram a principal mão de obra. Sônia lembra de uma tarde, durante as pesquisas, em que perguntou para mulheres e jovens o porquê continuavam naquela atividade. “E ele dizia que não acreditava no Estado e ia continuar fazendo, porque ganhavam mais lá”. São permitidos, no Brasil, a fabricação, o comércio e o uso de fogos de artifício, nas condições estabelecidas por lei, como a idade de quem pode vender e produzir fogos – 18 anos. As fábricas só são permitidas nas zonas rurais e sob responsabilidade de profissional diplomado ou algum técnico reconhecido. Na última semana, duas ocorrências evidenciaram a continuidade da clandestinidade e a falta de material de proteção na cadeia produtiva de fogos. Na madrugada de 18 de junho, a Polícia Militar apreendeu duas mil espadas em um caminhão baú, na zona rural de Governador Mangabeira. Os policiais chegaram até lá guiados por uma denúncia anônima. O material foi apresentado na Delegacia de Cruz das Almas, onde a guerra de espada é uma tradição proibida desde 2011. Já os homens que estavam no veículo foram levados para SAJ. Na manhã seguinte, uma loja de fogos de artifício explodiu, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. As ocorrências se avolumam sem que um órgão informe quantas delas aconteceram, quem vitimou e o que foi feito a partir de então. No dia 14 de abril deste ano, uma adolescente de 13 anos saiu ferida de uma fábrica ilegal de fogos que explodiu, em Crisópolis. O Exército não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre a produção ilegal do material. A reportagem tentou contato com a Associação Brasileira de Pirotecnia, que reúne produtores brasileiros legalizados de fogos de artifício, mas não obteve retorno até o fechamento da publicação. O espaço segue aberto. Dois moradores dos bairros de São Paulo e Irmã Dulce, de onde saíam a maioria dos trabalhadores mortos pela explosão de 1998, acreditam que a exploração do trabalho infantil existirá enquanto houver pobreza. “Quando acontece as coisas, todo mundo critica, mas na hora de ajudar, é outra história”, disse um deles.

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