São Paulo — Em plena expansão no mercado brasileiro, as fintechs, como são chamadas as empresas que oferecem serviços financeiros por meio de plataformas on-line, viraram o novo esconderijo do dinheiro de empresários que fogem de dívidas e impostos, de casas de apostas envolvidas em esquemas de lavagem, e até mesmo de facções que lucram com o tráfico de drogas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Uma apuração do Metrópoles mostra como companhias desse perfil têm vendido abertamente contas blindadas contra bloqueio judicial e rastreamento, deixando os saldos bancários dos clientes invisíveis para o Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (Sisbajud), que executa bloqueios em processos judiciais, e até para o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão responsável por identificar transações suspeitas.
Nos últimos meses, três operações policiais de grande repercussão identificaram, e bloquearam, quase R$ 18 bilhões de esquemas de lavagem de dinheiro que estavam escondidos em contas de fintechs, que operam com e sem autorização do Banco Central (BC). Duas delas envolvem suposto financiamento de campanha política e de operação de empresa de ônibus pela PCC e outra mira pagamentos milionários de uma bet para a advogada e influencer Deolane Bezerra.
Investigador com experiência em casos de lavagem de dinheiro, o promotor Fábio Bechara, que coordena o Grupo de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo (MPSP), afirma que “os novos meios de pagamentos substituíram o papel de doleiros”, que ganharam fama nos últimos anos ao serem presos por lavar e esconder dinheiro dos grandes escândalos de corrupção no Brasil.
Contas invisíveis e “protegidas”
Além de suspeitos de integrarem organizações criminosas, as blindagens em contas bancárias oferecidas pelas fintechs têm empresários em situação de falência ou recuperação judicial que buscam meios de proteger seus patrimônios de ações movidas pelos credores.
O produto mais quente desse mercado é a conta gráfica. Trata-se de uma conta corrente comum que é controlada pelo correntista, mas que não está em nome dele. Ela é aberta pela fintech, em nome de seu próprio CNPJ, e fica hospedada em um banco autorizado pelo BC.
Usualmente, quando alguém é investigado ou alvo de um bloqueio bancário em razão de dívidas, o Banco Central só consegue bloquear ativos que estejam em seu CPF. Com o dinheiro em uma conta gráfica, esse saldo não é encontrado.
Contas gráficas podem ou não ser, também, conta bolsão. Nessa modalidade, a fintech deposita em apenas uma conta o dinheiro de diversos clientes, o que torna mais difícil ainda de rastrear o saldo de quem está enrolado com dívidas e investigações. Somente a fintech, em suas planilhas internas, sabe de quem é o dinheiro.
Conhecida por empresários em situação de falência e recuperação judicial justamente por vender contas que blindam patrimônios, a Grafeno Digital é uma dessas empresas. Seus sócios e executivos têm longo histórico em bancões. Ela tem milhares de clientes e afirma movimentar bilhões de reais mensalmente. A Grafeno tem participação da multinacional e gigante do mercado financeiro Galapagos Capital, que tem R$ 21 bilhões sob sua gestão.
As contas vendidas pela empresa são hospedadas no Banco BMP, que opera no mercado financeiro desde 2009. A reportagem ligou para a Grafeno e sondou sobre seus produtos para escapar de bloqueios judiciais. A resposta da atendente foi clara: “Nós temos temos a ‘conta escrow’, que é uma conta que não fica disponível para consulta de bloqueio judicial. Nesse caso, você abre uma conta com a gente” (ouça a conversa abaixo).
A atendente ainda explicou que o bloqueio só acontece caso alguém denuncie a existência da conta para a Justiça, como, por exemplo, um funcionário insatisfeito. Do contrário, ela fica invisível para o Sisbajud, sistema do BC com o Judiciário para bloquear valores. “Ela não fica disponível igual Itaú e Bradesco, ela é como se fosse uma conta protegida”.
A explicação da funcionária da Grafeno à reportagem é semelhante a histórias envolvendo empresários que fogem de dívidas. Um desses processos diz respeito a uma grande destilaria de álcool de São Paulo. A empresa acumula um passivo tributário de R$ 90 bilhões e não tem pago nem dívidas menores, como uma de R$ 700 mil cobrada por um credor em uma ação.
Foram 9 anos até que esse credor levasse ao conhecimento da Justiça que a destilaria tinha uma conta aberta em nome da Grafeno que nunca apareceria no Sisbajud se não fosse descoberta pelo ímpeto de quem moveu a ação. Quando a Justiça notificou a Grafeno, a empresa informou que, de fato, havia uma conta no BMP com dinheiro da destilaria.
Intimado, o banco entregou o saldo da conta. Em uma ação de cumprimento de sentença, a juíza Renata Martins de Carvalho, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), afirmou que a destilaria “possui fluxo de caixa ativo e em valores consideráveis, de modo que os contratos apresentados caracterizam verdadeira blindagem de patrimônio, com a utilização de plataforma digital (Grafeno), a qual não é alcançada pelo Sisbajud”.
Outro banco encontrado pelo Metrópoles que vende a blindagem patrimonial é o Villela Brasil Bank, que, apesar do nome, também não é autorizado a operar como instituição financeira. A fintech faz parte do grupo ligado ao advogado tributarista Renan Ramos Villela, que já foi proibido no passado pela Justiça do Trabalho de obrigar funcionários a comparecerem a cultos religiosos dentro de suas empresas.
À reportagem, um atendente do Villela também ofereceu uma conta no banco Topázio, por uma taxa mensal de R$ 199. “Consigo ajudar para fecharmos a conta ou ainda o senhor não está com nenhum bloqueio?”, indagou o vendedor, buscando fechar negócio. O Metrópoles também chegou ao Villela por meio de fontes no mercado de recuperação judicial e falências.
Alvos da PF
Até mesmo uma instituição financeira cujos donos foram recentemente presos por fornecerem contas bolsão a empresas ligadas ao tráfico de drogas continua a oferecer a modalidade. Trata-se do T10 Bank, alvo da Operação Concierge, da Polícia Federal (PF), por ter movimentado R$ 4,5 milhões da UpBus, empresa de ônibus suspeita de elo com o PCC.
Dono do T10 Bank, o advogado e suplente de deputado federal pelo PP José Rodrigues foi preso na Concierge. Mesmo assim, qualquer um que venha a procurar o banco recebe, de cara, a mensagem para a abertura de uma “conta protegida”. O potencial cliente ainda pode apontar qual é sua situação entre duas possibilidades. “Estou com a conta bloqueada” e “quero me prevenir contra possíveis bloqueios futuros”.
No caso do T10, a conta do banco é aberta no Banco Rendimento, que é uma instituição financeira autorizada pelo Banco Central. Segundo a PF, o banco, neste caso, “lavou as mãos” em relação a atividades suspeitas do T10 com uso de sua estrutura. Somente alvos da Operação Concierge movimentaram R$ 7,5 bilhões sob suspeita de lavagem.
A Operação Concierge investigou a inação ou leniência de pelo menos cinco instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central com fintechs suspeitas de lavagem de dinheiro. Como mostrou o Metrópoles, a PF apontou que bancos deixaram de informar quantias altas em movimentações suspeitas em nome de um motorista de aplicativo condenado por tráfico e um beneficiário de auxílio emergencial com uso da máquina de cartão de crédito de uma fintech.
Uma dessas empresas de máquinas de cartão de crédito é a InovePay, do executivo Patrick Burnett, também chamada de InoveBanco, apesar de não ser um banco. Por meio da InovePay foram feitas até transações milionárias de imóveis e carros de luxo sob suspeita, tudo com lastro na Adiq e na BS2, duas instituições autorizadas pelo Banco Central.
Sob condição de reserva, uma testemunha da PF na Concierge relatou como levou investigadores a entenderem que até mesmo transações internacionais sem pagamento de imposto de renda podem ser feitas com uso de fintechs. Essa testemunha gravou um vídeo mostrando como usar uma financeira para fazer uma remessa de R$ 50 mil sem qualquer taxação para os Estados Unidos. O material está nas mãos de investigadores.
Essa testemunha conta que empresários que usaram fintechs alvo da Operação Concierge chegaram a procurá-la para fazer transações suspeitas. Os mecanismos de sua empresa rechaçaram a tentativa e eles migraram para as empresas investigadas.
PCC e bets
Em outra investigação que envolve dinheiro do PCC até mesmo para financiar campanhas eleitorais, a Polícia Civil de São Paulo descobriu que o 4TBank, outra fintech não autorizada pelo BC, abria contas no Santander — que não é tratado como suspeito — para movimentar R$ 8,2 bilhões da facção criminosa.
O 4T está em nome de Matie Obam, uma jovem de 23 anos que tinha em seu nome oito empresas, muitas delas sediadas no Tocantins, e movimentou mais de R$ 100 milhões. Ela posava como executiva de um verdadeiro banco e oferecia serviços como aplicativo de gestão de contas e transferências bancárias. Segundo a polícia, a jovem é enteada de João Gabriel Yamawaki, suspeito de lavagem de dinheiro do tráfico de drogas da facção.
Outro megaesquema de lavagem de dinheiro envolvendo fintech foi o que levou à prisão da advogada e influencer Deolane Bezerra em setembro, em Pernambuco, além do mandado de prisão contra o cantor Gusttavo Lima. Donos de grandes bets, como a Esportes da Sorte, patrocinadora de times do futebol brasileiro, também estão na mira dos investigadores.
Nessa investigação aparecem ao menos cinco instituições financeiras. Uma das principais é a PayBrokers, fintech que foi apelidada pela Polícia Civil de “campeã da lavagem” das casas de apostas. Ela era a intermediadora de pagamentos da Esportes da Sorte e foi usada para que Deolane recebesse R$ 5 milhões da empresa, que pertence ao filho de um conhecido bicheiro.
O que dizem os citados
Procurada pelo Metrópoles, a Grafeno Digital afirma ser “incorreta, e absurda, a suposição de que a abertura de uma conta vinculada (conta escrow) seja uma forma de proteger clientes contra bloqueio de contas pelas autoridades competentes”.
“Essa modalidade de conta é oferecida por dezenas de instituições e devidamente regulada pelas normas aplicáveis. A Grafeno reitera que atua como correspondente bancário e que todos os contratos de abertura de conta preveem, de forma expressa, a possibilidade de bloqueio em caso de notificação judicial e realizamos esse tipo de bloqueio de contas sempre que solicitado pelas autoridades competentes, tendo feito mais de 130 bloqueios apenas nos últimos 4 meses”, diz.
A Grafeno afirma, ainda, “que todas as contas abertas pela plataforma são individualizadas e passam por um rigoroso processo de compliance e de know your client, com monitoramento em tempo real durante toda a jornada de seus clientes e atua de forma proativa em caso de mau uso de suas contas”. A empresa diz que “não oferece contas bolsão e não tem casas de apostas como clientes”.
Sobre a ligação gravada pela reportagem com a atendente, a empresa diz que a área comercial da Grafeno é a “apropriada para esse tipo de atendimento” e que “a conta escrow oferecida pela Grafeno é, sim, passível de bloqueio pelas autoridades competentes”. “De qualquer forma, a Grafeno promove treinamentos e se compromete a investir ainda mais para evitar qualquer tipo de mal entendimento em todos os seus canais de relacionamento com clientes”, completa.
O advogado Sergio Emerenciano, que defende o Banco BMP, afirma que ele é uma “instituição financeira autorizada e fiscalizada pelo Banco Central do Brasil e que, em 15 anos de atuação, nunca ofertou ou comercializou contas bolsão”.
Segundo ele, a “abertura de contas do tipo escrow é sempre demandada por instituições financeiras, fundos de investimentos ou securitizadoras que utilizam referidas contas para a gestão destes recebíveis e destinação ao credor original”.
O advogado ainda afirma que a “Grafeno Pagamentos, que atua como correspondente bancário não exclusivo da BMP, não possui autorização para, em nossa representação, ofertar contas bolsão, mas sim contas pagamento dos tipos movimento e vinculada (escrow)”.
Ainda de acordo com ele, “a BMP não possui estrutura tecnológica para aberturas de conta bolsão ou contas gráficas, de forma que as contas pagamento abertas na BMP por fintechs como a Grafeno Pagamentos são independentes e em nome de empresas sempre identificadas por razão social e CNPJ”.
Ele ainda diz que a BMP “possui ferramentas que possibilitam constante controle e monitoramento das contas abertas no âmbito de parcerias e, sempre que localiza inconformidades, realiza o imediato encerramento da conta, rescisão com o parceiro relacionado e, dependendo da natureza do ocorrido, providencia a pronta comunicação ao Coaf”.
Segundo o advogado, “a BMP sempre atendeu às solicitações de bloqueio judicial recepcionadas pelo sistema Sisbajud ou mesmo ofícios judiciais”. Como exemplo, afirma que o banco já realizou o bloqueio de mais de 5 mil contas lastreadas em ordens judiciais, “o que reafirma nossa boa fé e atendimento às normativas do Banco Central do Brasil”.
Procurado, o Villela Brasil Bank não se manifestou. O Banco Topázio afirmou ser “instituição financeira autorizada a operar como Banco Múltiplo, oferecendo serviços bancários nos estritos termos da regulação do Banco Central do Brasil”.
“A atuação de instituições de pagamento e demais fintechs no sistema financeiro também é regulamentada pelo Banco Central do Brasil e a oferta de serviços bancários a estas entidades está em estrita observância a estas normas”.
“O Banco Topázio não disponibiliza serviços bancários para qualquer tipo de atividade ilícita e desconhece qualquer uso indevido dos seus serviços por parte dos seus clientes. Reforçamos que o Banco Topázio não compactua com atividades ilícitas e possui políticas e procedimentos de prevenção em consonância com a legislação e regulamentação vigentes e com as melhores práticas de mercado nacionais e internacionais”, diz.
O Banco Rendimento afirmou que “segue as regulamentações do Banco Central e órgãos competentes, também aplicadas desde o início da relação com a T10 Bank, onde todas as avaliações recomendadas foram executadas”. “No momento da operação realizada, o Banco Rendimento já não prestava mais os serviços investigados para a T10 Bank”.
Procurada pelo Metrópoles, a assessoria de imprensa do InoveBanco afirmou que a “empresa e o seu sócio, em sua atuação estritamente lícita e ética, não se confundem com a conduta de terceiros e jamais poderiam ser relacionados com qualquer atividade criminosa”.
“Comprometidos com princípios éticos, o Inove Global Group e seu sócio, Patrick Burnett, atuam no ramo da tecnologia há mais de sete anos, buscando trazer inovação e acessibilidade para seus clientes e traçando uma ilibada reputação perante o mercado”, diz.
Segundo a nota, tanto a empresa como Patrick “estão à disposição das autoridades para colaborar com as investigações, a fim de que os fatos sejam esclarecidos em sua integralidade”.
O BS2 afirma que, “dias após a deflagração da Operação Concierge, a juíza do caso autorizou o banco a efetuar o pagamento aos estabelecimentos comerciais clientes da I9Pay com os recursos que haviam sido bloqueados”.
“Isso demonstra claramente que o serviço prestado pelo BS2 era, de fato, regular e não tinha qualquer relação com as possíveis atividades ilícitas cometidas pela I9Pay. Reforçamos que o banco só tomou conhecimento de tais atividades quando da deflagração da operação. E, a partir desse fato, encerramos o serviço para a I9Pay em consonância com nosso código de ética e políticas de compliance”, afirma.
O BS2 ainda afirma que “nunca prestou serviços para o T10Bank, fintech objeto de denúncias da Febraban por ofertar blindagem de conta e investigada pela Polícia Federal por atividade criminosa”.