Para algumas mulheres, buscar a Delegacia Especializada da Mulher (Deam) para denunciar uma violência sofrida – seja física, psicológica ou moral, entre outras – significa passar por mais um sofrimento. Entre as maiores dificuldades estão não encontrar um ambiente acolhedor, policiais despreparados para lidar com traumas e o assédio. Diante dos problemas, a Lei Federal n° 14.541, publicada em 4 de abril (quarta-feira), estabelece diversas determinações para melhorar a assistência prestada às vítimas.
As baianas contam com 15 Deams em todo o estado, segundo dados da Polícia Civil da Bahia. Duas delas estão em Salvador – Paripe e Brotas – e são as únicas no estado com atendimento 24 horas, uma das determinações da nova lei. As demais estão espalhadas por outros 13 municípios. Agora, a lei estabelece que todas as unidades funcionem ininterruptamente, inclusive em feriados e finais de semana. Apesar do avanço, as Deam cobrem apenas 3,5% do território baiano, já que a Bahia tem 417 municípios.
Nelas, pela nova legislação, o atendimento passa a ser prestado obrigatoriamente em salas reservadas e, preferencialmente, por policiais mulheres. O que antes não acontecia. O texto define ainda que os policiais encarregados do atendimento deverão receber treinamento adequado para permitir o acolhimento das vítimas de maneira eficaz e humanitária. Nos municípios onde não houver Deam, a delegacia existente deverá priorizar o atendimento da mulher vítima de violência por agente feminina especializada.
Já nos municípios que têm unidades especializadas, fica estabelecido que as delegacias devem disponibilizar um número de telefone ou outro canal de comunicação eletrônico exclusivo para o acionamento da polícia civil em casos de violência contra a mulher. A guarnição deve atender a ocorrência imediatamente após ser notificada.
As determinações, no entanto, chegaram muito depois de Juliana* ter precisado fazer uma denúncia. Após dois anos vivendo um relacionamento aparentemente tranquilo, ela foi convidada pelo namorado para ir a um jantar entre casais. Ao chegar no restaurante, descobriu que havia apenas um amigo do companheiro. O encontro seguiu e ela preferiu não beber. Mesmo assim, foi pressionada diversas vezes a consumir álcool.
Quando decidiu ir embora, por estar se sentindo desconfortável, foi convencida pelo namorado a ir para casa dele. Lá, ele continuou insistindo para que ela bebesse. Ela bebeu e foi dopada. No dia seguinte, sentiu que algo de errado havia acontecido, questionou o parceiro, mas ele negou. Meses depois, descobriu que ele armazena fotos dela no celular, tiradas sem consentimento – assim como de outras mulheres. E que naquela noite ele havia armado um plano para estuprá-la junto com o amigo.
Quando buscou uma Deam de Salvador para denunciar o crime, teve a assistência negada e foi assediada pelo policial que a atendeu. “O cara não parava de olhar para os meus seios. Ele mordia os lábios. Eu fiquei tão constrangida que cruzei os braços. Ele me disse que como não apanhei, eu deveria correr atrás de outra forma e que aquilo acontecia o tempo todo”, contou Juliana*, que chegou a questionar se havia uma policial para atendê-la e teve como resposta um “não, é o que tem para hoje”.
A reportagem questionou a Polícia Civil sobre quais medidas eram tomadas nas unidades especializadas para evitar e punir este tipo de ação dos policiais, mas até o fechamento da edição, não obteve resposta.
Avanço limitado
Os dados da Rede de Observatórios da Segurança apontam que de 2021 para 2022, o índice de violência contra a mulher na Bahia cresceu 58%. Ao todo, foram 348 casos registrados no ano passado. Para Larissa Neves, pesquisadora da instituição, a sensibilização do atendimento prestado nas delegacias significa um avanço necessário. Pois a chegada à delegacia muitas vezes é um dos últimos passos que a mulher vítima de violência consegue dar.
“A chegada na delegacia já é um desafio. Daí chegar neste espaço e não conseguir ter um acolhimento de escuta, humanizado, e de enxergar o momento de vulnerabilidade que a mulher está passando, é preocupante, pois até essa mulher conseguir falar, ela já passou por diversas violências. E o testemunho negativo de uma, afasta ainda mais as outras do ato de denúncia”, destaca Larissa.
A presidente da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher da Ordem dos Advogados da Bahia (OAB-BA), Renata Deiró, salienta que a falta de Deams no estado e de estrutura para manter o atendimento 24h são impasses para garantir a segurança das mulheres. Apesar disso, vê a lei como um avanço, e acredita que se as determinações forem cumpridas como previsto nas unidades que já existem, a diferença será ainda maior.
“Sabemos que 50% dos crimes de violência doméstica são praticados após às 18h, por uma série de fatores socioeconômicos. Há aquele tensionamento durante o dia, com ofensas verbais, gritos, ameaças e quando chega a noite, desemboca para a violência mais grave. Isso faz as mulheres necessitarem de ajuda após às 18h. A lei se torna um divisor de águas, obrigando as delegacias a cumprirem o atendimento 24h”, ressalta Renata.
A presidente da Comissão da OAB Mulher participou do grupo de transição do Ministério da Justiça e apresentou como proposta de trabalho, uma nota técnica sobre o funcionamento do estado do Brasil, atualizada em 2010. Nela, estão presentes todas as medidas estabelecidas pela Lei Federal n° 14.541, exceto a que determina que o número de Deams em cada município seja calculado com base no número de habitantes. O que para Renata, é um déficit. “Todo município a partir de 50 mil habitantes deveriam ter uma Deam e os que tenham mais de 150 mil habitantes deveriam ter no mínimo duas.
Falta de efetivo feminino
Para o presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Estado da Bahia (Sindpoc), Eustácio Lopes, a publicação da lei federal n° 14.541 também é uma oportunidade de pressionar o governo estadual a investir na Polícia Civil. Conforme os dados apresentados por ele, em 2023, a Bahia conta com 5.300 policiais civis, quando o ideal seria o estado ter um efetivo de 11.000. Nesse contingente que já está em déficit, apenas 22% são policiais mulheres, ou seja, 1.200 para 4.100 homens.
Ainda segundo EustácioLopes, a polícia Civil também possui um batalhão formado por uma maioria de policiais prestes a se aposentar. Ao todo, 85% estão com 50 anos de idade ou mais. Apenas 15% dos policiais são jovens entre os 20 e os 40 anos de idade. Todos estes fatores juntos são vistos pelo presidente do Sindipoc como impasses para que a corporação consiga cumprir as determinações da lei publicada na quarta-feira.
“Nem sempre conseguimos fazer o acolhimento nas Deams com [policiais] mulheres. Não tem efetivo para o primeiro atendimento, para não constranger [as vítimas], para acolher. Não conseguimos ter centrais de flagrantes para trazê-las [as vítimas para as delegacias]. Em todas as delegacias falta servidores para o plantão, para o administrativo. Então, o governo [do estado] precisa estruturar, fazer concurso”, ressaltou o presidente do Sindpoc.
A reportagem entrou em contato com a Secretária de Segurança Pública (SSP-BA) e com a Polícia Civil (PC-BA), questionando sobre as medidas previstas para o cumprimento da Lei e o tipo de atendimento prestado às mulheres que buscam as Deams no estado, mas não houve retorno. O governo do estado também foi procurado para falar sobre as demandas do Sindpoc, mas não enviou resposta.
*A fonte pediu para ter sua identidade preservada
**Orientada pela chefe de reportagem Perla Ribeiro