Há alguns dias venho escalando a montanha que se chama Ulysses. É dessas elevações quase intransponíveis, mas com estoicismo e perseverança avanço palmo a palmo nessa viagem vertical. Não há, ainda, prazer, fascínio, delírio silencioso, à exceção de momentos esparsos: a sequência do enterro de Paddy Dignam, a descrição do cozimento de um rim de porco, as reflexões de Leopold Bloom sobre o filho morto e o pai suicida, as tertúlias de Stephen Dedalus envolvendo Shakespeare e o seu Hamlet. Ou trechos como esse abaixo, primoroso:
“Uma cidadada de gente falecendo, outra cidadada chegando, falecendo também: outra chegando, indo embora. Casas, filas de casas, ruas, milhas de andares, pilhas de tijolos, pedras. Trocando de mãos. Esse dono, aquele. O senhorio nunca morre dizem. Outro toma o lugar quando ele recebe a ordem de despejo. Compram tudo com ouro e ainda assim ficam com todo o ouro. Tem um engodo em algum lugar. Empilhados nas cidades, consumidos por eras e eras. Pirâmides na areia. Feitas à base de pão com cebola. Escravos. Muralha da China. Babilônia. Grandes rochas abandonadas. Torres redondas. Resta caliça, subúrbios senfim, malfeitos às pressas, as casascogumelo do Kerwan, feitas de brisa. Abrigo pra uma noite. Ninguém é coisa nenhuma.”
Joyce condensa, em um parágrafo, a história das civilizações e dos anônimos que as compõem. Os humilhados e ofendidos e seus senhorios, seus patrões, sua vida breve e sem posses. Ninguém é coisa nenhuma. Nada mais fiel ao nosso caminhar pela Terra. Em um bonito poema, intitulado justamente James Joyce, Jorge Luis Borges de certa forma dialoga com o trecho acima:
“Num só dia do homem estão os dias / do tempo, desde aquele inconcebível / dia inicial do tempo, em que um terrível / Deus prefixou os dias e agonias / até o outro em que o rio ubíquo / do tempo secular torne à nascente, / que é o Eterno, e se apague no presente, / no futuro, no ontem, no que ora possuo. / Entre a aurora e a noite está a história / universal. E vejo desde o breu, / junto a meus pés, os caminhos do hebreu, / Cartago aniquilada, Inferno e Glória. / Dai-me, Senhor, coragem e alegria / para escalar o cume deste dia.”
É o que preciso: coragem e alegria para escalar o cume dessa montanha. Uma tarefa árdua até mesmo fisicamente. O livro pesa em meus braços como um bloco de concreto maciço: calhamaço denso, sólido, espesso. Ao fechá-lo, após mais uma noite de escalada, o marcador indica que ainda não ultrapassei a metade do caminho. Bem, eu sabia que não seria fácil.
Alterno Ulysses com os poemas de Louise Glück, que me trazem alento e certo descanso físico e mental, apesar dos temas duríssimos descritos com simplicidade e afeto. Glück é uma grande poeta. São dela, entre outros que já andei citando neste espaço, versos como: “Ninguém de fato entende / a brutalidade deste lugar, / o modo disparatado de aniquilar vidas / por força do hábito.”
Já trilhei outros caminhos igualmente árduos e sempre saí deles enriquecido. Meus olhos singraram mares e escalaram montanhas tão díspares entre si, mas igualmente deslumbrantes. Poderia até estabelecer uma inusitada comparação entre determinados romances, tratando-os por mares (os de linguagem mais linear e caudalosa) ou montanhas (os experimentais, formalmente desafiadores).
Nesse sentido, Grande Sertão: Veredas seria uma montanha e Os Irmãos Karamazov, um oceano, assim como Vida e Destino e Moby Dick, ambos de águas tempestuosas e arredias. Já O Som e a Fúria e Conversa na Catedral são enormes paredões de pedra. Romances menores seriam colinas ou ondas, a depender da sua característica.
O importante, nisso tudo, é saber que esses e outros grandes clássicos perenizam a sabedoria humana e sedimentam nosso modo particular de ver o mundo. Porque são as antenas da raça que nos permite