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Desde quando a Bahia é Nordeste

(Ilustração: Morgana Miranda/Casa Grida)

No meio de um rebolado que seria criticado por Luiz Gonzaga, Xanddy roda e avisa, mesmo sem ninguém perguntar nada: “eu vim de lá do Nordeste, cabra da peste”. Talvez você problematize a postura preconceituosa do Rei do Baião – “lá no sertão, o homem só remexe daqui pra cima”, dizia a boys buliçosos em seus shows –, mas te convido a prestar atenção também na frase do cantautor do Harmonia do Samba. Há nela um ato falho, que aliás é bastante comum no soteropolitano que se enxerga fora de um lugar do qual ele mesmo faz parte: o Nordeste.

Ao dizer que veio “de lá”, o cabra da Capelinha de São Caetano talvez não tenha percebido, mas estabeleceu uma relação de alteridade, ao concluir que aqui é outro lugar. O curioso é que se a música ‘Joga o Laço’ tivesse sido feita há pouco mais de meio século, e Xanddy tivesse nascido de Petrolina pra cima, não haveria paradoxo, afinal, até 1970, a Bahia ainda não era um estado nordestino.

Pode parecer estranho, mas o baiano como nordestino só passa a existir a partir de uma decisão do IBGE, com aval dos governos, que é relativamente recente, em termos históricos. E a dificuldade de assimilar isso parece mais comum em Salvador e no Recôncavo, onde há uma identidade cultural própria, marcadamente influenciada pela africanidade (na dança, na religião), pelo dendê e outros ingredientes seculares, facilmente identificáveis e que, até hoje, tensionam a outra identidade regional, esta mais espalhada e ensaiando certa homogeneização – “Viva São João!”

“Na minha opinião, o soteropolitano, e muita gente da Bahia, se sente uma região autônoma: não se sente nem Nordeste, nem Sudeste. Se sente a Bahia”, afirma o professor Clímaco Dias, do Departamento de Geografia da Ufba, que não enxerga nisso um ‘orgulho bobo’ ou hierarquização da coisa. 

O poeta e radialista James Martins, de quem Caetano Veloso costuma reproduzir a frase “O Rio é o Brasil, São Paulo é o mundo, e a Bahia é a Bahia”, reforça esse entendimento. “A Bahia tem contornos tão específicos que não parece mesmo pertencer a nenhuma região, nem Nordeste, nem Sudeste, nem outra. (…) Nossas diferenças se aplicam tanto para cima como para baixo. Tanto assim que quando os sudestinos da TV Globo tentavam mimetizar nosso sotaque em novelas e séries, o faziam com um jeito, digamos, nordestino, mais afeito ao pernambucano ou alagoano. Como diria Gigica, ‘a Bahia é a Bahia’. E só. Um mini-Brasil até no mapa”, analisa.

Mal-estar
Bom, agora só falta combinar que é assim mesmo com os baianos identificados, historicamente, com a dita nordestinidade. É o caso da escritora serrolandense Cláudia Pereira Vasconcelos, doutora em Estudos de Cultura pela ULisboa/Ufba que escreveu ‘Ser-Tão Baiano: o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana’.

Professora de História da Uneb, ela discute no livro, lançado em 2011, esse mal-estar da população sertaneja ou não soteropolitana, quando ignorada na composição da identidade baiana, tanto de forma simbólica, quanto prática – ela mesmo uma vítima disso.

“Eu vivi em Serrolândia até os 22 anos, e depois de me formar em História na Uneb, fui para Salvador fazer Interpretação Teatral, na Ufba. E lá no curso a gente fala muito, sempre se expressando, e todas as vezes que eu falava, perguntavam ‘você é pernambucana, paraibana?’, todos os estados, menos a Bahia. Nunca ninguém achava que eu era baiana”, recorda.

O sotaque marcado pelo T e D palatados era muitas vezes motivo de chacota e comentários xenofóbicos. “Na Escola de Teatro alguém disse pra mim: ‘olha, você só vai conseguir fazer papel de nordestina’. E eu olhava pra pessoa e pensava ‘meu Deus, essa pessoa não se vê como nordestina’… Outra situação que me marcou foi em meu primeiro emprego, que me botaram o apelido de Tieta do Agreste. Na época, eu não tinha a dimensão do nível de violência que isso era para o migrante na capital”, conta Cláudia.

Códigos diferentes
Na obra, a autora admite que os códigos da capital e desse interior sertanejo são diferentes, “mas isso não quer dizer que um é melhor ou pior, são diferentes”. Ela cita casos concretos dessa tentativa de inferiorização: “Alguém te aponta ‘ah, você é tabaréu, tabaroa’, e aí outro te imita falando ‘tia, dia’, e você começa a refletir: ‘nossa, o que isso quer dizer? Eu migrei dentro do meu estado, eu não migrei pro Sudeste’. ‘E por que essa baianidade centrada em Salvador não olha para o resto do estado?’”.

Centrando sua tese no que denuncia como negação da tradição sertaneja na Bahia, com comentários sobre a construção da baianidade nos romances de Jorge Amado, nas músicas de Dorival Caymmi ou na publicidade oficial, Cláudia admite se tratarem de “textos muito potentes, e que pra fora pegaram”. Mas ela não desiste de problematizá-los, e tá certíssima.

Críticas registradas, pergunto à professora se, do ponto de vista simbólico, dá para dizer que Salvador é uma capital genuinamente nordestina. “Que pergunta difícil! Eu acho que identitariamente, não. Salvador se construiu como um caso à parte. Porque eu acho que região é uma coisa que está para além de um desenho geopolítico. Eu acredito que essa capital continua descolada do ponto de vista identitário do resto do Nordeste, e nem tô aqui avaliando para o bem ou para o mal”, reitera.

Divisão regional
Mas que desenho geopolítico é esse? Quem explica é  André Nunes, professor da Licenciatura em Geografia do Ifba. “Uma coisa é o recorte oficial, para fins de planejamento, pra você pensar a economia, rodovias, aeroportos, por exemplo. Outra coisa é você depois de fazer esse recorte, saber como as pessoas se comportam dentro dele”, aponta o doutor em Geografia.

Agora, para entender como a Bahia – invadida por Lampião e Gonzagão, onde é mais fácil achar hater de Carnaval que de São João – só entrou para o #TeamNordeste em 1970, é preciso olhar para o processo de evolução do território nacional.

A primeira divisão regional do Brasil só foi oficializada em 1942, pelo IBGE, e coloca Bahia e Sergipe como região Leste, junto com Minas, Rio e Espírito Santo. O principal critério utilizado foi o físico-natural: vegetação, clima e afins. “Até ali não tinha problema, porque era um país de pouca mobilidade espacial, coisa que a partir dos anos 50 vai entrar em xeque”, comenta Nunes, se referindo aos processos de migração interna que vão mudar a cara do Brasil nas duas décadas seguintes. 

“Era um país ainda rural [nos anos 40], embora Getúlio Vargas tenha lançado as bases da modernização. Mas essa virada urbana só vai acontecer, de fato, entre 1950 e 1970. É um dos casos excepcionais no mundo de um país que se urbanizou em 20 a 30 anos, e isso vai ter um impacto na regionalização”, explica Nunes.

Com essa ‘revolução’ migratória, o IBGE inicia, nos anos 60, uma discussão interna para produção de uma nova regionalização, levando agora em consideração critérios econômicos e sociais, com foco em planejamento. Na década anterior, o Estado já havia criado instituições estratégicas como a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), que também vai envolver Bahia e partes de Minas e Espírito Santo, e o Banco do Nordeste.

“É nesse momento que o IBGE vai articular a natureza com elementos sociais do mundo do trabalho e da produção: circulação, comércio, fluxo, migração, coisas do âmbito do estudo da sociedade. A dinâmica econômica, PIB, e vai fazer um cruzamento”, acrescenta Nunes, dando a senha para a entrada da Bahia no bloco nordestino.

Segundo o professor Clímaco Dias, a criação da Sudene “foi fundamental porque a Bahia se interessava para ter os benefícios, que não eram pequenos”. Ainda de acordo com ele, essa nova configuração também segue a mudança do polo econômico. “A gente não estava mais fazendo parte do polo hegemônico desde o início do século 20”, destaca. 

Quando a Bahia finalmente desembarca no Nordeste, em 70, o cuscuz e a canjica já estavam prontos, e novos ingredientes eram dispensáveis. “As pessoas [fora da Bahia] gostam de acarajé, mas não têm essa cultura do dendê. O dendê é uma coisa fundamental na nossa culinária”, comenta Clímaco Dias sobre Salvador, destacando que nas demais capitais nordestinas (quase todas litorâneas), a cozinha mais influente é a do semiárido.

Ainda assim, o professor destaca que essa entrada da Bahia na região “criou identidade”. “Mas ela não é uma identidade que a gente possa dizer que garante essa ideia de Nordeste, porque a Bahia tem várias regiões internas que têm posturas diferenciadas. Temos, portanto, uma unidade com contradição”, argumenta. 

***

Cultura nordestina foi ‘inventada’ à revelia da Bahia
Em seu livro ‘Ser-Tão Baiano: o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana’, que é fruto de uma dissertação de mestrado defendida na Ufba em 2007, a historiadora e professora Cláudia Pereira Vasconcelos também discute os conceitos de nordestinidade, a partir das ideias do escritor pernambucano Gilberto Freyre, e de sertanidade, através da obra do poeta baiano Eurico Alves. 

Além das ideias desses autores, ela embasa parte de sua tese no livro ‘A Invenção do Nordeste e Outras Artes’, do historiador e professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior, que ajuda na compreensão da produção cultural e artística sobre a região a partir do início do século passado.

“Segundo esse estudo, que é mais aprofundado, quem inventa essa identidade é um grupo de intelectuais ligado às elites a partir dos anos 1910, justamente por causa dessa crise [de perda da centralidade econômica de cidades como Recife, mas também Salvador]. Eles não são mais quase nada, do ponto de vista cultural, no Brasil, e se juntam para articular um movimento chamado ‘Movimento Regionalista do Nordeste’, encabeçado por Gilberto Freyre”, destaca a pesquisadora.

É Freyre quem vai fazer, segundo ela, toda uma ‘invenção’ discursiva do que faz o Nordeste ser Nordeste. “E aí eles elegem como personagem principal o vaqueiro e o cangaceiro, o homem rural. Por isso que existe o cabra da peste, uma mistura de vaqueiro, cangaceiro, jagunço, esse homem mais violento e bravo”, comenta.

Cláudia explica que esse mosaico começa a ser montado, por exemplo, por pintores e outros escritores, que forjam a literatura chamada regionalista, dos anos 1930, para criar essa região pautada também em questões relacionadas à seca e à pobreza, coisas que até os anos 1910 não eram instrumentalizadas.

A cereja no bolo vem nos anos 40, e atende pelo nome de Luiz Gonzaga do Nascimento, músico revolucionário filho de Exu (PE). “Vem esse cara genial, incrível, maravilhoso, performático, e divulga essa identidade. Eu diria que quem inventou foi esse grupo de intelectuais, do movimento regionalista, e o divulgador para o resto do Brasil foi Luiz Gonzaga”, complementa a escritora, sem deixar de enxergar o aspecto problemático de certas escolhas. 

“É uma identidade também muito violenta, muito masculina. Para as mulheres mesmo, a gente tem mais é que pegar uma peixeira e furar esse texto identitário”, conclui Cláudia, como quem aceita o desafio e fala ‘vem neném’ para o perigo.

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