No dia 8 de abril, o norte-americano Justin Stevens fez um desabafo em sua página pessoal no Facebook: publicou a foto do próprio filho, Jason, de apenas 13 anos, respirando por aparelhos. “Se você tem filhos ou entes queridos, por favor, compartilhe esta imagem com eles na esperança de evitar que cometam esse mesmo erro”, escreveu. Segundo seu pai, Jason, que morreu quatro dias depois, havia tomado entre 12 e 14 comprimidos de um antialérgico em um desafio com que se deparara no TikTok.
O caso aconteceu em Greenville, nos Estados Unidos, mas gerou repercussão nas últimas semanas e encontrou eco em outros episódios que tiveram o mesmo desfecho em outros lugares do mundo – inclusive no Brasil. Por aqui, ao menos 34 crianças e adolescentes já morreram por jogos perigosos, de acordo com o Instituto DimiCuida, entidade fundada em 2014, após a morte do adolescente cearense Dimitri Jereissati, no Ceará, por participar de um “jogo do desmaio”.
No longínquo 2014, nem mesmo existia TikTok, que só foi criado em 2016, ainda com o nome de Douyin, na China. No entanto, os relatos vinculados à plataforma ganham uma proporção ainda maior porque ela é apontada a rede social mais usada por crianças e adolescentes com idades entre 9 e 12 anos, segundo a última pesquisa TIC Kids Online, lançada no início deste mês pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetig), ligado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil.
Entre os 11 e 12 anos, o TikTok é apontado como o favorito de 46% das crianças – é mais do que o dobro das 21% que apontam o Instagram na mesma categoria. Oficialmente, porém, esse público sequer tem idade para ter um perfil cadastrado: a idade mínima exigida pelo TikTok é de 13 anos.
“Desde os anos 2000, começam os primeiros relatos. Muda-se apenas a base. Sai do YouTube, vai para o TikTok, depois muda de novo. Mas o assunto começa com a imprensa leiga, que passa a noticiar histórias de meninos e meninas que estavam se sufocando, provocando desafios de asfixia”, narra o médico hebiatra (especialista em adolescentes) Benito Lourenço, chefe da unidade de adolescentes do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo e membro do Departamento de Adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Lourenço explica que, ainda hoje, os desafios de asfixia são os mais comuns – estima-se que mais de 80% dos casos sejam alguma variante disso, o que inclui desafios como o blackout ou o do desodorante. Os trabalhos científicos mais recentes apontam que entre 8% e 12% dos adolescentes fazem ou já fizeram, ao menos uma vez, um jogo de asfixia.
“A gente só sabe a dimensão desse problema pela fatalidade. E o que nos preocupa mais ainda é que, além dos que praticaram, há aqueles que foram plateia. É uma inquietação na área da saúde. Temos que trabalhar com quem faz e também com quem assiste e não ajuda a vítima”, acrescenta o médico.
Esta semana, a SBP emitiu uma nota de alerta sobre os desafios perigosos. No documento, a entidade reforça que a comunidade médica, especialmente os pediatras, devem estar atentos para prevenir os riscos desses jogos em cada consulta.
“As crianças e adolescentes devem ser orientados e aprender sobre regras de segurança e sobre como lidar de forma respeitosa com os colegas nas escolas, além de treinamento em habilidades de comunicação emocional e social para compreender e prevenir os principais riscos comportamentais na internet”, enfatiza o texto.
Desafios
Segundo a SBP, há principalmente três tipos de desafios perigosos. As práticas de asfixia, sufocamento ou apagão podem incluir uso de fios, cordas, sacos plásticos ou aspiração de desodorantes. Já os atos de agressão contra si ou contra outros envolvem desde os “jogos de quebra-crânio” à exposição de materiais tóxicos, enquanto as provocações são aquelas que vão de beber detergente a engolir chips e fazer fotos em locais arriscados.
No desenvolvimento de adolescentes, como explica o médico hebiatra Benito Lourenço, sempre houve a presença de brincadeiras e desafios perigosos. É o que ele chama de cultura dos desafios secretos e que inclui desde as lendas da ‘loira do banheiro’ até tocar a campainha de um vizinho e sair correndo. A isso, somava-se a pressão dos pares e a sensação de que nada ruim poderia acontecer.
“O problema hoje é que tem um quarto ingrediente, que é amplificação disso. Se você fazia uma coisa isolada com dois, três amigos na adolescência 20, 30 anos atrás, hoje você começa um desafio desse com o celular apontado para você. Ele vai atrás de fama, de favoritagem, de aplausos”, enumera.
No consultório da psicóloga clínica Débora Oliveira, especialista em Saúde Mental e no tratamento de crianças e adolescentes, o paciente chegou justamente depois de passar por uma experiência dessas.
“A criança que acompanho na clínica passou pelo desafio do blackout, que insistia na habilidade de conseguir suportar situações de sufocamento. No momento em que ela fazia, um cuidador chegou e interrompeu o processo, mas ela precisou ir ao hospital”, conta a profissional.
O tempo em que o paciente passou sufocado foi suficiente para provocar uma convulsão. Depois, ainda que não tenha ficado com sequelas físicas, desenvolveu um transtorno de ansiedade generalizada. O menino achava que seria julgado pelas pessoas da comunidade que fazia parte.
“Ele não conseguia mais navegar na internet de forma nenhuma, por conta da ansiedade. Ele ficou achando que as pessoas sempre o desafiariam e que ele sempre se colocaria em situação de risco, como também enfrentou diversas dificuldades para voltar a viver no contexto social, porque as pessoas sabiam o que ele tinha passado”.
O risco está relacionado, para a psicóloga, à própria construção social que protege muito as crianças e os adolescentes. Ao mesmo tempo, esses comportamentos são regulados por uma área do cérebro ligada ao prazer e aos vícios.
“Quanto maior essa experiência, maior a liberação. Além da experiência social, da necessidade de ser aceito e reconhecido, do like e de ter muitos seguidores, existe uma área do nosso cérebro que também contribuirá para que isso aconteça”, completa.
Regras
Os dados da TIC Kids Online apontam que 93% dos pais afirmam impor regras no uso da internet para crianças de 9 e 10 anos. No entanto, na faixa etária dos 15 a 17 anos, por exemplo, esse índice já cai para 57%.
Para a advogada especializada em direito digital Kelli Angelini, coordenadora do projeto @meusfilhosnanet, que oferece instrução para pais e educadores sobre como proteger crianças na internet, é um indício de que, quanto menor a idade, mais preocupados os pais estão. À medida que os filhos crescem, porém, começam a deixar um pouco de lado.
“Alguns pais sequer sabem desses riscos e perigos online, enquanto outros não se sentem empoderados ou aptos para instruir os filhos no manuseio dessas tecnologias. Isso acaba fazendo com que deixem de realizar esse acompanhamento essencial”, pondera.
Na pesquisa TIC Kids, 33% das crianças e dos adolescentes alegam ter passado por alguma experiência ruim ou de desconforto online. “Quando os pais deixam os filhos saírem na rua, fazem com bastante cuidado, com medo de serem abordados, que sejam atropelados. Mas no uso da internet, deixam soltos, sem saber com quem estão falando ou o que estão fazendo. Então, no ambiente físico, há proteção, mas no ambiente digital, há esse desamparo”, analisa.
Outro aspecto que pode influenciar na chegada de conteúdos inapropriados a crianças e adolescentes é o chamado autoplay – ou seja, a reprodução automática, a partir do que o algoritmo entende que o usuário mais se interessaria. Hoje, a maioria das redes sociais e das plataformas, como o TikTok, funcionam com autoplay.
“Não há um filtro avaliando as necessidades e a proteção dessas crianças e adolescentes, o que inclusive fere a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”.
Segurança digital
Numa busca direta pelos desafios perigosos mais conhecidos através da própria ferramenta de busca do TikTok, não é possível encontrar vídeos dos jogos. Se você procura por alguns casos específicos – como o do antialérgico, que teve mais visibilidade nas últimas semanas – o que vai encontrar, inclusive, é uma mensagem da plataforma de que a segurança do usuário importa.
Buscas por desafios do antialérgico são bloqueadas (Imagem: Reprodução) |
“Alguns desafios online podem ser perigosos, perturbadores ou até encenados. Saiba como reconhecer desafios perigosos para proteger sua saúde e bem-estar”, informa a mensagem, que oferece um link para que o usuário leia mais informações e tenha acesso ao suporte.
Entre os críticos da segurança digital do TikTok, porém, há uma avaliação de que isso não é suficiente. Para a pesquisadora Nirvana Lima, mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante da Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências (Recria), nem mesmo é possível falar em “segurança digital”.
Ela cita a ferramenta de controle parental lançada em 2020 pela plataforma, em que os pais podem gerenciar o tempo de tela, restringir conteúdos e limitar mensagens diretas.
“Na prática, além de não explicitar a quais riscos o público infantojuvenil está exposto na plataforma, o TikTok também vela a possibilidade de conteúdos inapropriados romperem os filtros algorítmicos de proteção. Acredito que isso é resultado de uma simbiose narrativa com o entretenimento, o lúdico e o cômico”, acredita ela, que defende debates na esfera pública e legislativa.
Ambiente
Com o TikTok, os “#challenges” (do inglês) ganharam novos contornos e mais visibilidade. Alguns dos mais famosos envolvem as famosas dancinhas ou receitas. Segundo a pesquisadora Nirvana Lima, o TikTok se torna um terreno fértil para crianças e adolescentes porque trata-se de um público presente no ambiente digital e que usa esse espaço para ressignificar suas próprias experiências.
“Os challenges são populares porque convocam a participação do público e, sendo também usuários assíduos, crianças e adolescentes sentem-se impelidos a cumpri-los”, afirma, citando a restrição de idade para maiores de 12 anos. “Mesmo sem cadastro formal, o consumo de vídeos no TikTok está disponível para qualquer faixa etária. Seria ingênuo pensar que o TikTok desconhece a existência do público infantil nesse ecossistema, bem como seu potencial ilegalmente rentável”.
Ela defende que a discussão sobre segurança digital para crianças implica também na popularização não só do acesso à internet, mas também de uma formação para a cidadania digital.
“Crianças não são nativas digitais. Elas não nascem sabendo mexer em celulares e em redes sociais. Crianças aprendem, em regime de tentativa e erro, geralmente sozinhas”, acrescenta Nirvana.
O TikTok informa que remove perfis de menores dessa idade quando os identifica, tanto por tecnologia quanto por moderação humana. Na App Store, o app classificação 12+, enquanto na Play Store, é listado como ‘orientação dos pais recomendada’.
Em nota, o TikTok reforçou que a segurança e o bem-estar da comunidade são prioridade da plataforma.
“Por isso, buscamos ajudar nossos usuários a se manterem seguros enquanto se divertem na plataforma. Proibimos conteúdo que promova ou incentive atos perigosos, e removemos vídeos que violam nossas Diretrizes da Comunidade a fim de desencorajar esse tipo de comportamento. Incentivamos toda nossa comunidade a ter cautela em sua conduta, seja online ou offline”, reforçam.
Além disso, a empresa também divulgou um posicionamento oficial sobre o caso do adolescente Jason Stevens, morto em abril, após o desafio do antialérgico. O TikTok informou que “nunca viu” conteúdo deste tipo se tornar uma tendência e que bloqueia as buscas há anos.
“Nossos mais profundos sentimentos neste momento vão para a família. Com a segurança da nossa comunidade como nossa prioridade no TikTok, nós proibimos estritamente e removemos conteúdos que promovam comportamentos perigosos. Nunca vimos este tipo de conteúdo se tornar uma tendência em nossa plataforma e bloqueamos as buscas durante anos para ajudar a desencorajar o comportamento de imitadores. Nossa equipe de 40.000 profissionais de segurança trabalha para remover violações de nossas Diretrizes da Comunidade e incentivamos nossa comunidade a denunciar qualquer conteúdo ou contas com as quais se preocupem”.
Famílias devem mediar e orientar uso de internet
Mãe de quatro adolescentes com idades entre 12 e 16 anos, a dona de casa e estudante Priscila Freitas, 40, definiu regras para o uso do celular, da internet e das redes sociais entre os filhos. A menina mais velha, de 16 anos, só passou a ter o aparelho quando completou 13 anos, enquanto a mais nova só ganhou no começo deste ano.
A necessidade veio também das demandas da escola, especialmente no período da pandemia da covid-19. “É um celular básico, nada desses chiques, mas que dê para eles se comunicarem e fazerem grupinhos de trabalho da escola. Aqui, eles têm o tempo de uso do celular, que vai de 1h30 a duas horas. Quando está perto de acabar, eu aviso”, conta.
Depois do período máximo diário, ela recolhe os quatro aparelhos e coloca para carregar em seu quarto. Outra regra é que ninguém pode usar o celular no quarto: o uso é sempre na sala e, à noite, na hora de dormir, os aparelhos também ficam com a mãe. Ela também monitora o que eles fazem. Todos têm perfil no Instagram e as duas filhas usam TikTok, mas em menor quantidade.
Fernanda explica que sempre conversa com os filhos para que eles entendam que a tecnologia pode ser tanto benéfica quanto perigosa.
“A gente tem que ter uma boa conversa e tem que dar limite, porque não dá. É um vício. A gente que é adulto fica bastante tempo no celular, quanto mais eles que são menores e estão em fase de construção. Eles reclamam porque são normais e todo mundo quer usar o celular, mas devagarinho você vai aprendendo a lidar com isso e com os limites. De mãe para mãe, fiscalize, porque a gente não pode perder para o celular”.
A conscientização dos pais de que é preciso fazer essa mediação é um dos aspectos mais importantes, na avaliação da advogada Kelli Angelini. As famílias, segundo ela, devem entender que não há separação de conteúdo apropriado para crianças e adolescentes nas plataformas digitais.
“Ao exercer essa mediação parental, eles devem promover meios de filtragem de conteúdo, devem se informar sobre o que os filhos gostam ou estão consumindo na internet e estabelecer tempo de tela”.
Segundo o médico hebiatra Benito Lourenço, os jogos perigosos são mais comuns entre adolescentes mais novos, com idades entre 12 e 14 anos. Para ele, os pais não precisam ser nativos digitais para orientar os filhos. “A questão é de sensibilidade, de responsabilidade pelo corpo, de autocuidado. É orientação de vida mesmo, que qualquer vovô e vovó consegue dar”, diz.
Outro ponto é estar atento a mudanças de comportamento e outros sinais. “Quando aparecem pintinhas vermelhas no rosto, que é sinal de aumento de pressão na cabeça e estouro de vasos sanguíneos, ou de começar a usar golas altas mesmo em dias de calor, são dicas para os pais ficarem mais atentos porque pode ser indício de que seu filho está praticando asfixia”.