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Em frangalhos, economia vai decidir a eleição na Argentina

Os argentinos vão às urnas neste domingo (22/10) para eleger o próximo presidente do país. Seja quem for o vencedor, já há uma certeza. O escolhido enfrentará uma encrenca descomunal. A economia argentina está em frangalhos e esse fato terá peso decisivo no pleito. “Não resta dúvida que as pessoas vão votar por uma mudança econômica”, diz Paulo Gala, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EESP). “Essa é a discussão central da eleição.”

E por que é assim? Um breve raio X da situação do país oferece uma resposta nítida – e ao mesmo tempo espantosa – a essa pergunta. Na Argentina, a taxa de inflação chegou a 138% em setembro, o maior nível em três décadas. Espera-se que ultrapasse 180% até o fim deste ano. Os juros básicos estão em 133% – e subindo. A título de comparação, no Brasil, a taxa já é considerada sufocante por inúmeros setores empresariais e está em 12,75% – e descendo.

Consequência direta da disparada dos preços, a pobreza alcançou 40,1% da população no primeiro semestre de 2023 e jogou outros 9,3% numa situação de indigência. Tais números eram de 36,5% de pobres, além de 8,8% de indigentes, no mesmo período de 2022.

Esses são os atuais sintomas, mas nem de longe os únicos. “O que vemos na Argentina é um ciclo de deterioração, com algumas idas e vindas, mas que nunca termina de fato”, diz o economista Livio Ribeiro, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e sócio da consultoria BRCG. “O pior é que não há perspectiva de solução para o problema no curto prazo.”

Recorde de recessões Uma demonstração clara de como os perrengues econômicos resistem por longos períodos na Argentina foi oferecida por um estudo do Banco Mundial, de 2018. Ele mostrou que o país ficou em recessão cerca de um terço do tempo entre 1950 e 2016. Esse foi o período mais longo registrado entre os países do mundo, à exceção da República Democrática do Congo.

Agora, o Produto Interno Bruto (PIB) está à beira de mais uma contração, a sexta em uma década. Daí, observa Ribeiro, a relação explosiva entre o quadro econômico e as urnas. Diz ele: “No cenário imediato pré-eleitoral, o que temos é uma imensa queda de confiança na economia, que está levando a patamares inéditos as cotações do câmbio, dos juros e consolidando a inflação nas alturas.”

Milei e Massa As últimas pesquisas de opinião mostram que a corrida presidencial se concentra em dois nomes, com um terceiro eventual azarão. Hoje, o favorito é o ultraliberal Javier Milei, que pode levar o pleito no primeiro turno. Ele é seguido pelo candidato do governo, o atual ministro da Economia, o peronista Sergio Massa. Por fora – e bem por fora –, corre a liberal Patricia Bullrich, aliada do ex-presidente Mauricio Macri, de quem foi ministra da Segurança.

Enfim, como diz o economista, a caixa de ferramentas populista foi amplamente aberta e utilizada na gestão de Massa. “Ocorre que a situação é mais grave porque a Argentina faz isso a cada três anos”, afirma. “Não há como ficar acima da marca d’água desse jeito.”

Voto de protesto Ribeiro destaca ainda que o país se encontra numa situação parecida com a do Brasil, em 2018. “Entre os argentinos, há um profundo cansaço com as opções políticas históricas, seja com o peronismo e o kirchnerismo (do casal Néstor e Cristina Kirchner, a ala mais à esquerda do peronismo) ou com o macrismo (associado a Mauricio Macri)”, afirma. “Isso cria uma demanda por um voto de protesto e ele vai para Javier Milei, assim como foi para Jair Bolsonaro, no Brasil.”

Para o pesquisador do FGV Ibre, o único debate efetivo em curso na Argentina é o “desejo extremo de ruptura”, em que tudo seria jogado para o alto, versus um medo igualmente extremo do que essa mesma ruptura pode causar. “Todo o resto está em segundo plano”, diz. “O detalhe é que, mesmo entre as pessoas que votam em Milei, existe o reconhecimento de que há uma chance estúpida de dar tudo muito errado.”

Dolarização Milei, que se define como “ex-keynesiano” (um ex-defensor de certo nível de interferência do Estado na economia) transmutado em “anarcocapitalista” (o que pode haver de mais radical em termos de liberalismo), quer resolver a encrenca argentina com a dolarização da economia e o fechamento do banco central.

De acordo com Ribeiro, porém, hoje, além dos Estados Unidos, apenas oito nações têm a economia dolarizada no mundo. E todas são pequenas, se comparadas à Argentina. “Se isso fosse uma panaceia, países muito ligados ao ciclo econômico americano, como o México e o Canadá, seriam dolarizados”, diz o economista.

Dólares sob colchões O fato é que proliferam entre especialistas críticas à proposta de dolarização de Milei. Para esses técnicos, embora a medida possa ter um efeito benéfico sobre a inflação no curtíssimo prazo, ela faria com que o país perdesse o controle sobre a política monetária e, num horizonte mais largo, desorganizaria a economia. 

Além disso, ressaltam esses mesmos especialistas, falta o essencial para a dolarização do país: os dólares. As reservas cambiais estão minguadíssimas. “Mas há uma crença de que existe um PIB em dólares debaixo dos colchões dos argentinos”, diz Ribeiro. “Acredita-se que, se a economia for dolarizada, esse dinheiro vai aparecer. Mas, como disse, isso não passa de uma crença.”

Paulo Gala, da FGV EESP, concorda que a dolarização aventada por Milei esbanja chances de fiasco. Para ele, a Argentina precisa de uma reforma monetária semelhante à realizada pelo Brasil, com o Plano Real, em 1994. “Enquanto eles não conseguirem retomar a estabilidade de preços, todo o resto fica comprometido”, diz o economista.

“Tudo pela janela” Na avaliação de Gala, porém, o difícil é iniciar a guinada, depois de tantos equívocos acumulados por anos a fio. “Nos anos 1990, os argentinos conseguiram uma certa estabilização, mas eles jogaram tudo pela janela depois”, diz. “Um dólar chegou a valer 3 pesos e 3 reais. Hoje, um dólar vale 1.030 pesos e 5 reais.”

Para o professor da FGV EESP, cavar o atual buraco econômico também não foi tarefa simples, embora executada com afinco. Isso só foi possível, nota o acadêmico, com a manutenção de longos períodos de gastos públicos polpudos, bancados pela emissão de moedas, além do comprometimento dos níveis de reservas cambiais. 

100% de populismo “Na prática, os argentinos passaram as últimas décadas por períodos populistas tanto de esquerda como de direita”, afirma Gala. “O primeiro veio com os Kirchner, que comprometeram até a credibilidade da medição da inflação. E o segundo com Macri, que torrou o pouco de reservas que o país tinha e aumentou o endividamento externo. Assim, fica difícil conseguir qualquer tipo de avanço.”

Tentar desatar esse nó é parte da tarefa dos argentinos neste domingo, quando ocorre o primeiro turno da eleição presidencial. Se nenhum candidato superar 45% dos votos, ou 40% com mais de 10% à frente do segundo colocado, os dois mais votados disputam a segunda etapa do pleito, em 19 de novembro. O próximo presidente tomará posse em 10 de dezembro, para um mandato de quatro anos, até dezembro de 2027.

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